04/09/2006

Especial Bolívia 2 – Constituinte busca dar concretude a Estado plurinacional

SUCRE (BOLÍVIA) – A mais profunda mudança que os movimentos indígenas – que representam na 62% da população boliviana – pretendem introduzir na Assembléia Constituinte em curso no país é a definição da Bolívia como um Estado plurinacional. Não se trata apenas de levar em conta as demandas da maioria indígena no planejamento das políticas governamentais, mas também de garantir a participação direta dos povos indígenas em toda a estrutura dos poderes públicos.


 


A mudança, se consolidada, levará à reformulação da própria idéia de Estado, para que nela caibam as formas de representação política dos 37 povos originários que vivem no território boliviano. “Nosso objetivo não é incidir em um ministério específico, mas que as propostas dos povos indígenas sejam transversalizadas nas ações dos governos, e isso significa o reconhecimento verdadeiro de nossas identidades como povos”, afirma Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação de Povos Indígenas da Bolívia (Cidob).


 


“É uma situação muito diferente do Brasil. Se lá 0,4% da população indígena, aqui temos 62%. A temática indígena será algo que tem que estar presente em toda a Constituição. Esta é a novidade. Não poderá ser um regime especial e não será um capítulo para indígenas. Terá que haver referências às especificidades indígenas no poder judiciário, no ordenamento territorial, agrário, nos recursos naturais. A Bolívia talvez seja o primeiro país com este tipo de características”, avalia o padre jesuíta Xavier Albó, antropólogo que acompanha de perto os movimentos indígenas há quatro décadas e é uma das maiores autoridades do país no tema.


 


Entre os 62% da população boliviana que, no censo de 2001, afirmaram pertencer a um povo indígena, 36% aprenderam idiomas originários como sua primeira língua e 11% não falam espanhol.


 


O termo mais utilizado para explicar esse pleito é a interculturalidade, definida por Albó da seguinte maneira: “Entre gente culturalmente distinta, as estruturas do governo têm que ter espaços para os distintos grupos culturais. Isso implica que quem toma decisões têm de respeitar a diversidade. Não através de cotas, mas garantindo que a problemática de todos os grupos esteja presente, seja na educação, na saúde ou na justiça. Um tribunal não pode ser só de advogados brancos, mas tem que haver gente que entenda de direito consuetudinário (de costumes)”, exemplifica.


 


Passado recente


Reformas constitucionais anteriores já haviam aberto espaço para algumas mudanças na relação do Estado com as comunidades indígenas. Em 1994, a Constituição boliviana incluiu em seu artigo 1º a definição do país como “pluriétnico e pluricultural”. A reforma fez parte de um movimento que ocorreu dentro do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, que também aumentou o poder dos municípios e reformou a educação, incluindo a formação bilíngüe nos currículos.


 


Mas mesmo estas reformas são bastante criticadas por parte dos indígenas, porque vieram acompanhadas de outras que lhes tiravam poder de decisão sobre recursos naturais. “Fundamentalmente, queremos que se acabe isto de direitos apenas na teoria. Em 1994, colocam o artigo 1 (que define o país como multiétnico e pluricultural) e o artigo 171 (que reconhece e os direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas e permite o reconhecimento de terras indígenas). Mas neste mesmo ano foi feita a Lei de Capitalização, que não foi outra coisa que dar de presente nossos recursos naturais e nossas empresas às transnacionais, definitivamente. Foi algo assim: ‘meu filho, te reconheço, te dou o sobrenome mas não te dou nada, e que morra de fome’. Foi nefasto”, afirmou o indígena eleito para a Constituinte Miguel Peña, do povo Mojeño, eleito pelo departamento de Beni, que faz fronteira com o Acre.


 


No que diz respeito aos recursos naturais, o que os indígenas querem incluir na Constituinte é a obrigatoriedade de participação dos povos na definição sobre o uso e apropriação dos recursos naturais não renováveis existentes em seus territórios.


 


A Lei de Capitalização, citada por Miguel Pena, aprofundou o processo de privatizações na Bolívia e permitiu ao Estado a privatização de empresas consideradas estratégicas, por meio da criação de empresas de economia mista. Entre as empresas, estavam a petroleira YPFB, as empresas nacionais de eletricidade, telecomunicações e metalurgia. E as privatizações foram, em parte, os motivos para as mobilizações que deram força aos movimentos camponês e indígena que, desde o início dos anos 90 do século passado, levaram ao fortalecimento das características étnicas dos movimentos na Bolívia. “Se as transnacionais têm que entrar no país, que não entrem roubando. Têm direito a ganhar, mas não a assaltar o país, e é isso que acontecia até agora”, afirma o constituinte.


 


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(por Priscila D. Carvalho – texto publicado pela Agência Carta Maior – a autora é assessora de comunicação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi).

Fonte: Agência Carta Maior
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