04/09/2006

Especial Bolívia 1 – Anseio por mudanças se concentra na Assembléia Constituinte


SUCRE (BOLÍVIA) – Três semanas após ter sido instalada e depois de uma série de impasses, a Assembléia Constituinte boliviana, reunida no teatro Gran Mariscal na cidade de Sucre, conseguiu chegar na madrugada de sexta-feira, 1, a um acordo geral sobre as regras de funcionamento do fórum que determinará a nova Carta Magna do país vizinho.


 


Em linhas gerais, prevaleceram as posições defendidas pelo Movimento ao Socialismo (MAS), partido majoritário de sustentação do governo do presidente Evo Morales, mas falta ainda definir o critério de aprovação das propostas ordinárias. O MAS propõe que elas sejam submetidas ao crivo da maioria absoluta (50% mais um), exceto o texto final, que será submetido à votação com exigência de confirmação de dois terços dos constituintes. Já a a oposição, liderada pelo Poder Democrático e Social (Podemos), principal partido oposicionista com 60 cadeiras, mantém-se firme na defesa do mínimo de dois terços de votos.


 


A polêmica sobre a abrangência dos trabalhos dos constituintes também permanece em aberto. O Podemos insiste em colocar limites ao caráter “originário e refundacional” da Assembléia, ponto crucial defendido pelos representantes do MAS.


 


Uma assembléia originária tem o poder de alterar toda a estrutura do Estado e não apenas de reformar a Carta atual. O consenso sobre este ponto havia sido obtido com a inclusão da garantia de que os constituintes manterão e respeitarão os mandados dos três Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) até que a população aprove, mediante referendo, a nova Constituição. Ao que tudo indica, a Comissão Redatora, instaurada em 18 de agosto, deve continuar enfrentando dificuldades para definir o detalhamento das regras. O MAS segue mobilizando suas bases e, sobretudo nos departamentos (equivalente, na divisão federativa, aos estados do Brasil) onde há maior oposição ao governo Morales, seguem organizados (com amplo espaço na mídia) os Comitês Cívicos, que apóiam uma Assembléia não originaria e a exigência de dois terços dos votos para aprovar qualquer tema.


 


Afora as desavenças, a formação de 17 comissões temáticas já foi acertada. São elas: Tipo de Estado, Cidadania, Direitos, Deveres e garantias, Poderes do Estado, Descentralização e autonomias, Educação, Desenvolvimento social; Recursos naturais; Meio ambiente; Terra e território; Desenvolvimento amazônico, Coca, Financeiro; Segurança e defesa, Fronteiras e Relações internacionais.


 


Outro ponto acordado desde a última semana é que a Constituinte aceitará propostas vindas da população desde que sejam confirmadas por pelo menos a mesma quantidade de assinaturas de apoio que os votos obtidos pelo constituinte menos votado na localidade de onde venha a proposta.


 


Composição e desafios


O MAS elegeu 142 dos 255 constituintes. Do total de eleitos, 22% são indígenas e camponeses. Desse grupo emergiu a presidenta da Assembléia, Silvia Lazarte. Sindicalistas, agricultores, motoristas, dirigentes comunitários, dirigentes camponeses, artesãos e estudantes, ao lado de advogados, professores, administradores e jornalistas, com idades que variam entre 22 a 64 anos, participam da Assembléia, instalada em 6 de agosto, mesmo dia em que foi proclamada a independência da Bolívia, em 1825.


 


“Nosso maior desafio será estar de acordo com o que as pessoas querem. Existem muitas posições diferentes, mas as maiorias indígenas e trabalhadoras querem uma mudança profunda. Outros grupos, que estiveram no poder antes, não vão querer mudanças profundas, ainda que o modelo deles tenha fracassado”, coloca disse Dunia Ignacio, constituinte de 24 anos, liderança camponesa ligada a grupos produtores de quinua, cereal utilizado para alimentação há centenas de anos que só se produz em regiões de três a cinco mil metros de altura, comuns na parte oeste da Bolívia. “Nós buscamos igualdade de direitos e eles não entendem isso”.


  


Para o constituinte Luiz Alfaro, advogado e dirigente camponês eleito pelo departamento (estado) de Tarija, as principais propostas são de distribuição dos recursos econômicos para a população, novo sistema político com eleições diretas em todos os níveis de Estado, sistema de saúde e educação universais, incorporação de mecanismos para eliminação da corrupção.


 


Novos na praça


Na praça central de Sucre, é comum encontrar constituintes durante os intervalos dos debates. Mais fácil ainda é confundir representantes eleitos com a população camponesa e indígena comum que circula pelas ruas da cidade. Homens atendem às sessões de ponchos e chapéus. Mulheres camponesas e indígenas mantêm suas longas tranças negras e as tradicionais saias rodadas e coloridas, as poleras.


 


A presença destes novos atores na política tem um significado especial para Sucre. Até as reformas de 1952, indígenas e camponeses eram proibidos de andar por esta mesma praça que ainda mantém os prédios brancos da época colonial, que são os cartões postais da cidade.


 


No Gran Mariscal, teatro de estilo neoclássico no centro do Sucre, as forças agora estão lado a lado – à direita da mesa diretora estão os chapéus, poleras e camisetas dos eleitos pelo MAS e por outros partidos e organizações populares e indígenas (alguns foram eleitos sem filiação partidária, já que a legislação boliviana permite a candidatura sem ligação direta com partidos políticos). À esquerda, onde está sentada a oposição, se vê a maioria da tradicional elite trajada de ternos e gravatas.


 


O crescimento da presença de representantes camponeses e indígenas na política institucional boliviana é fruto das mobilizações lideradas por eles nos últimos seis anos. Iniciadas com protestos contra a privatização da água e de recursos naturais, eles levaram ao questionamento de todo o modelo neoliberal, aplicado no país desde a redemocratização, em 1985. Também partiu destes protestos a ascensão de lideranças provenientes dos setores sociais que encabeçaram o movimento de mudança do Estado boliviano, que levou à criação de um partido composto por movimentos sociais, o MAS, e à eleição do líder cocalero Evo Morales.


 


“A Assembléia é uma conseqüência das lutas camponesas e indígenas. O setor operário, nestes últimos tempos, praticamente desapareceu. Foi o movimento camponês e indígena que combateu nesses últimos anos, a partir da crise econômica e social e da crescente marginalização econômica que sofreram estes setores”, avalia Freddy Sempertegui, diretora da Fundación Aclo, entidade que trabalha com o desenvolvimento rural de indígenas e camponeses na Bolívia e que faz parte do grupo de organizações que, reunidas sob o nome de Apostamos por Bolívia, atuam na difusão de informações sobre a Assembléia Constituinte.


 


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(texto publicado pela Agência Carta Maior – a autora, Priscila D. Carvalho, é assessora de comunicação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi).


 

Fonte: Agencia Carta Maior
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