16/08/2006

Como não cair na cana


 


“Terras que produziam de tudo para o mercado local agora se consagram a um único produto para a demanda estrangeira.


Nós nos desenvolvemos para fora e nos esquecemos de dentro.


O mono-cultivo é uma prisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, é muito mais.


A diversidade, por sua vez, liberta.


A independência se reduz ao hino e à bandeira, se a soberania alimentar não é assentada. A autodeterminação começa pela boca.


 Só a diversidade produtiva pode nos defender das súbitas despencadas de preços que são costume, mortífero costume, do mercado mundial”.


(Eduardo Galeano, Salva vidas de Chumbo – agosto de 2006)



 


Fala-se que serão implantadas 32 usinas de álcool e açúcar aqui no Mato Grosso do Sul nos próximos anos. Começo a imaginar os imensos canaviais com aquele cheiro horrível, aquela monotonia mortal da monocultura, repetindo a lúgubre paisagem de extensas regiões dos estados de São Paulo e mesmo regiões do Nordeste. Seremos solenemente encobertos pelo verde cana, pela fumaça das queimadas e por seres cobertos de fuligem e pretume na feroz concorrência com as máquinas. Aliás, até esse cenário desumano da semi-escravidão parece estar com os dias contados, não por vontade ou benevolência de nenhum capitalista, mas pela própria lógica financeira que impõem a modernização da produção, que significa a mecanização total do processo, desde o plantio até a colheita. Isso até já está previsto em lei. Aí o discurso falacioso de gerar bastante emprego desaba como tufão sobre as cabeças e braços cansados dos trabalhadores.


 


As usinas e os índios no Mato Grosso do Sul


 


É bem provável que o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), criado no início do século passado (1910), não tivesse a clara intenção de criar um batalhão de mão-de-obra para as usinas de álcool e cana-de-açúcar. Apenas iniciavam uma fase de confinamento que disponibilizaria mão-de-obra farta, fácil e barata para os processos produtivos, fossem quais fossem. Primeiro foi a erva-mate, depois as fazendas, depois os processos de produção agrícola e finalmente as usinas de álcool e açúcar. Hoje talvez estejam disponíveis mais de 20 mil indígenas para esse trabalho. Alguns milhares já estão inseridos na colheita da cana, num regime caracterizado por instituições de direitos humanos, como de semi-escravidão e por antropólogos e outros estudiosos, como altamente desestruturadores da base de organização social desses povos, especialmente de desestabilização dos laços sociais fundamentais que são os laços familiares. Apesar de algumas pequenas melhorias nas relações de trabalho (contratos coletivos, por exemplo), o que se percebe é que o próprio regime de ausência de mais de dois ou até três meses das aldeias gera conseqüências que vão desde a fome a que são submetidas mulheres e crianças que permanecem na aldeia, até a introdução de inúmeras doenças e acentuação de vícios como alcoolismo, drogas dentre outros.


Em 2004 o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Marçal de Souza, a partir de um relatório produzido depois de visitas a algumas usinas que empregam mão-de-obra indígena, fez graves denúncias sobre as precárias e desumanas condições de trabalho.


 


A bondade dos patrões


 


É conhecida a preferência de vários usineiros pela mão-de-obra indígena, por ter a vantagem de ser, além de bem competitiva, disciplinada e submissa. Diante das críticas do que representa o afastamento prolongado dos trabalhadores indígenas das aldeias, eles agora vêm com o discurso de que procurarão localizar as usinas próximas às áreas indígenas, possibilitando desta forma o retorno do trabalhador às suas casas no final de cada dia ou semana, ou seja, as aldeias irão virar definitivamente dormitório das usinas. E quando a mecanização da colheita for imposta? Bem, a partir daí os índios estarão novamente à disposição da oferta e da procura, porém não mais lhes restará a procura da terra, pois esta estará decididamente ocupada por mais esse “belo processo produtivo”. Num debate em Campo Grande, no ano passado, um dos representantes dos usineiros falou com entusiasmo sobre os benefícios, para os  índios, com a implantação de usinas próximo às aldeias.


 


Terra ou etnocídio


 


Esse novo cenário em Mato Grosso do Sul tem, sem dúvida, a nítida intenção de impedir aos índios o acesso às suas terras, aos seus tekoha. Existe um descompasso e uma contradição entre o discurso do governo federal e sua prática. Por um lado a Funai continua dizendo que os Kaiowá Guarani são prioridade para a demarcação das terras, mas por outro lado não foi constituído nenhum grupo de trabalho para identificação das terras, que são mais de 50 nessa situação. Há mais de 20 anos o governo deveria ter demarcado e garantido todas as terras indígenas no país. No atual ritmo, em que os Kaiowá Guarani são prioridade nos planejamentos da Funai, com certeza as usinas serão implantadas antes que as terras indígenas sejam demarcadas e garantidas. Além disso, com um judiciário local dando ganho de causa aos fazendeiros em praticamente todas as ações, vislumbra-se um quadro de etnocídio no Mato Grosso do Sul. Temos os exemplos de Ñande Ru Marangatu, em que a comunidade indígena foi despejada mesmo com sua terra homologada, e Yvy Katu, em que os fazendeiros foram beneficiados com uma liminar logo após terem sido colocados os marcos e placas da demarcação dessa terra indígena.


 


E mesmo nas poucas terras que os índios conseguiram recuperar com duras lutas, a perda de inúmeras lideranças, a criminalização e a prisão de uma centena de índios no estado, as possibilidades de sobrevivência continuam extremamente difíceis. Basta imaginar as enormes dificuldades enfrentadas pelas comunidades indígenas, nas áreas recuperadas, com a “terra morta”, na visão dos Kaiowá Guarani, pois estão totalmente desmatadas e cobertas de capim. A indignação é por não se implementar nenhuma política ampla, articulada e integrada a curto, médio e longo prazo. O professor Antonio Brand, que tem longa experiência em atividades de recuperação ambiental e economia Kaiowá Guarani, é incisivo: “se não houver ações que levem em conta as atividades articuladas de produção para autonomia alimentar, recuperação mínima do meio ambiente, proteção das águas, de nada resultará grandes investimentos que estão sendo anunciados”.


 


Campo Grande (MS), 16 de agosto de 2006.


 


Egon Heck


Cimi Regional Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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