09/08/2006

Documento sobre educação escolar indígena no Mato Grosso


 


O CIMI Regional Mato Grosso, reunido por ocasião de sua XXXII Assembléia ocorrida em São Félix do Araguaia entre os dias 17 a 21 de julho do corrente ano, refletiu, a partir dos relatos trazidos pelos missionários das diversas regiões, sobre a precariedade da situação da educação escolar indígena no Estado. E diante desta omissão do Estado, a quem cabe a responsabilidade pela oferta da Educação Escolar Indígena, decidimos elaborar este documento a fim de urgir providências no sentido de cumprir os direitos indígenas garantidos na legislação (Constituição Federal/88; LDBEN/96; Resolução 03/99/CEB/CNE; Diretrizes para uma Política Nacional de Educação Escolar Indígena, MEC/93; Plano Nacional de Educação/01). Elencamos, a seguir, alguns pontos que demonstram a precariedade do atendimento oferecido pelo Estado de Mato Grosso.


 


1. CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA


 


O Conselho de Educação Escolar Indígena – CEI/MT, formado por representantes indígenas e indigenistas, constitui-se um fórum de discussão, deliberação, assessoramento e normalização das políticas de educação escolar indígena do Estado de Mato Grosso. Desde 2003, este Conselho não vem realizando suas reuniões ordinárias e não tem cumprindo seu papel conforme as atribuições expressas no regimento. O que se tem percebido é que ele está desarticulado, sem condições de exercer suas atribuições, especialmente porque não há recursos financeiros alocados para que ele responda as exigências que a educação escolar indígena demanda. O CIMI enquanto membro deste Conselho constata que as deficiências são crescentes a cada ano e que são de inteira responsabilidade da SEDUC, órgão responsável pela sua gestão e funcionamento.


 


2. PROJETO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS – PROJETO  HAYO


 


Denunciamos a séria omissão da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso no que diz respeito à formação de professores indígenas.


 


É responsabilidade do Estado oferecer cursos de magistério e, no entanto, após a conclusão do Projeto Tucum em 2001 a SEDUC não cumpre seu papel na formação de professores indigena.


 


A etapa inicial de julho de 2005 realizada nos pólos de Comodoro, Canarana, Campinapolis e Parque do Xingu ofereceu péssimas condições de alojamento, grave deficiência na programação e conteúdos inadequados ao nível de escolaridade e às diversas situações sócio-lingüísticas dos alunos. Os professores indígenas foram alojados em parques de exposição pecuária, tendo que dormir em pisos de cimento frio, sem cobertores e expostos à insegurança do local aberto. Alguns professores que participaram do pólo de Canarana disseram que o local ainda estava sujo com excremento de gado, pois havia acontecido recentemente uma exposição agropecuária.


 


Estamos cientes de que os povos indígenas dos diferentes pólos exigem número de vagas condizente com a demanda escolar de suas comunidades. É inadmissível barrar a oportunidade de formação para professores que, apesar de já atuarem em sala de aula, não têm condições de cursar o magistério. É caso, entre outros, dos professores Tapirapé, com 29 professores em sala de aula necessitando habilitação em magistério. Para essa etnia só foram ofertadas 06 vagas. Também o povo Myky que até hoje não teve  nenhuma oportunidade de formação para o magistério, necessita 8 vagas para seus professores e, apesar de já há três anos  requerer com insistência esse direito, só foi contemplado com 4 vagas no Hayio. Do mesmo modo, professores de vários povos estão pleiteando o direito de participar do curso de magistério e não estão sendo atendidos   Por sua vez, o Projeto Aranowa’yao do povo Tapirapé que prevê a habilitação em magistério para o conjunto dos professores tramita há dois anos na SEDUC e no CEEI – Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena sem receber sequer um parecer.


 


Exigimos do Estado um programa de formação de acordo, com os direitos conquistados pelos povos indígenas na Constituição de 1988 e bem como um Ensino Médio nas aldeias, com política definida, conforme as necessidades de sustentabilidade das comunidades indígenas e, para isso, os cursos de formação de verão respeitem as diversas culturas e preparem a nova geração para a construção de verdadeiras escolas indígenas. A negação da formação em nível de magistério para esses professores gera um quadro de extrema injustiça, pois ano após ano eles são contratados interinamente, recebem menos que o salário mínimo vigente, a análise dos seus contratos sofre um atraso considerável, e por isso, recebem sempre  quatro ou cinco meses após o início do ano letivo.


 


3. QUADRO INFORMATIZADO DA SEDUC


 


Desde 2003 a SEDUC informatizou o processo de contratação dos professores da rede estadual. O que à primeira vista parece um salto tecnológico qualitativo, tem-se constituído num sério entrave ao desenvolvimento das propostas curriculares em curso nas escolas indígenas estaduais. O primeiro ponto diz respeito ao calendário, que, conforme reza a legislação, pode ser definido pelas comunidades, respeitando-se as atividades tradicionais e os rituais etc. O Quadro traz um calendário com datas definidas para início e final do ano letivo e para as férias. Dele constam também todos os feriados nacionais, que não fazem sentido para as comunidades indígenas, como Carnaval e outros. O programa informatizado não aceita alterações, o que já constitui um grave desrespeito ao direito de cada escola elaborar o seu calendário com autonomia. A matriz curricular também já vem definida e neste ano de 2006 foi obrigatório incluir disciplinas como Ensino Religioso e, a partir da 5a. série, uma Língua Estrangeira como espanhol ou inglês.  Isso se constitui num flagrante desrespeito aos direitos lingüísticos garantidos aos povos indígenas, uma vez que eles são falantes de suas línguas maternas e o português já se constitui numa segunda língua para eles, ou seja, eles já estudam uma língua estrangeira. O desrespeito também se faz sentir em relação à propostas pedagógicas de cada escola, pois ou se incluía estas disciplinas ou o programa não aceitava a matriz curricular. Fato mais grave ainda quando se chega ao item da contratação dos professores. Em 2005 o Quadro só aceitava como nível de escolaridade para os professores indígenas a opção “analfabeto”. Como é possível um professor ser analfabeto?  Enquanto o professor não possuir a habilitação magistério, mesmo que esteja já em fase final de conclusão do Ensino Médio, como é o caso dos professores Tapirapé, o sistema só aceita a opção: Ensino Fundamental completo, o que causa uma redução absurda dos salários. Como já dissemos antes, os professores e professoras indígenas estão recebendo menos que o salário mínimo. Entretanto, o próprio Estado está se omitindo de sua responsabilidade de oferecer a formação em nível de magistério como já demonstramos acima, o que causa uma situação de flagrante injustiça em relação aos demais professores da rede.


 


Exigimos que a Seduc além de corrigir estas disparidades, elabore um programa informatizado no recurso humano (um Turmalina Indigena) que contemple as especificidades das escolas indígenas.


 


4. CONSTRUÇÃO DE PRÉDIOS ESCOLARES


 


A maioria das escolas indígenas funciona em prédios inadequados, ou nem sequer contam com prédios construídos para as atividades escolares. Algumas construções foram iniciadas, porém esquecidas e outras vêm sendo requeridas desde 2000. No caso da Escola Estadual Indígena Itxala (povo Karajá, município de Santa Terezinha)  a escola funciona sem prédio próprio desde a sua regularização. As aulas funcionam em um prédio construído pela Funai e que funcionava para o atendimento de saúde. Esse prédio se encontra em estado lastimável, correndo o risco de desabar a qualquer momento. Vale dizer que duas colunas já caíram em pleno horário de aula, colocando em risco a vida de alunos e professores.  O caso já foi encaminhado para o Ministério Público que urgiu ao Estado a construção de um prédio adequado para essa escola. Até o momento nada foi feito.


 


São muitas as comunidades indígenas que vivem uma situação de precariedade em relação à construção de escolas e que apesar de insistirem em relatar essa situação continuam sem atendimento. A construção de prédios adequados para o funcionamento das escolas indígenas é uma obrigação do Estado e, por isso, os povos indígenas têm o direito de exigir isso do governo.


 


5. GESTÃO DAS ESCOLAS INDÍGENAS PELAS SECRETARIAS MUNICIPAIS


 


A maior parte das escolas indígenas do Estado de Mato Grosso estão jurisdicionadas pelas Secretarias Municipais de Educação. Isso tem ocasionado interferências na gestão dessas escolas, provocando conflitos em todos os aspectos da vida escolar. Apresentamos aqui a situação educacional do Povo Nambikwara do Vale do Guaporé e Cerrado que ilustra de modo dramático a ingerência das secretarias municipais nas escolas indígenas.


 


As doze escolas indígenas do Povo Nambikwara (Capitão Pedro, Negarotê, Manairisu, Wanunsu, Alantesu, Kithaulu, Camararé, Nambikwara, Sawatesu, Barracão Queimado, Taquaral, Aroeira e salas anexas), reconhecidas através de decretos de criação votados e aprovados pela Câmara Municipal de Comodoro, MT, ainda são enquadradas como escolas rurais, obedecendo a uma grade curricular e metodologias de ensino alheias à realidade indígena, contribuindo para o alto índice de evasão escolar e a precariedade do ensino oferecido às comunidades do povo Nambikwara. O programa educacional oferecido pela Secretaria Municipal de Educação não possibilita aos professores e às comunidades em geral uma participação mais ampla nos processos decisórios relacionados à elaboração de propostas político-pedagógicas próprias, calendários escolares compatíveis com a realidade das diversas aldeias. Assim, professores e alunos não encontrando na escola respostas à suas expectativas, se sentem frustrados porque percebem que os programas impostos desestruturam a sua cultura, interferindo negativamente no sistema educacional tradicional. Além disso, não os capacitam para resolver os problemas derivados da situação pós contato.


 


O sistema de avaliação dos alunos, que estava sendo feito em forma de relatórios descritivos, foi proibido pela atual secretária, que exigiu a transformação destes relatórios em notas, em flagrante desrespeito à própria LDB que garante a qualquer escola o direito de estabelecer outras formas de realizar o processo avaliativo de seus alunos. Fato mais absurdo ainda é que esta transposição está exigida retroativamente para os últimos 04 anos, quando era outra a equipe de administração municipal. As escolas que eram cicladas, passaram a ser novamente seriadas. No final do ano é elaborada uma avaliação pela Secretaria Municipal de Educação sem a participação dos professores das aldeias. Essa avaliação é feita em língua portuguesa, desrespeitando assim os direitos lingüísticos do povo Nambikwara.


 


A situação vivida por este povo, infelizmente não é a única. Ressaltamos que a consulta para as escolas se tornarem estaduais ou continuarem municipais foi feita através de uma carta que pedia para as diferentes comunidades se manifestarem a respeito. Nenhum encontro foi programado entre a equipe da Seduc e as diferentes comunidades para discutir profundamente a questão. E sabemos que as prefeituras têm o maior interesse em manter como municipais as escolas indígenas devido ao repasse de verbas feito pelo FNDE que é calculado por número de alunos matriculados.


 


Exigimos que o Estado assuma realmente o seu papel de oferecer educação indígena de qualidade para as comunidades indígenas, não delegando esse papel para os municípios, devido à ingerência negativa que as secretarias municipais de educação exercem sobre as escolas indígenas. E pela resolução 03/99 Conselho Nacional de Educação – CNE, os estados tinham apenas 03 anos para regularizar as escolas indígenas nas redes estaduais.


 


6. CONCURSO PÚBLICO PARA PROFESSORES INDÍGENAS


 


A exigência de concursos públicos específicos para professores indígenas foi estabelecida pela Resolução 03/99/CEB/CNE. O Estado de Mato Grosso realizou o seu primeiro concurso somente neste ano de 2006. Entretanto, apontamos vários fatos que ocorreram durante este processo seletivo que permitem questionar a especificidade deste concurso:


– não foi feito um diagnóstico anterior das vagas reais a serem preenchidas nas escolas indígenas. Como se chegou ao número de 80 vagas para todo o Estado?


– exigiu-se a habilitação em nível superior para a inscrição, sendo que na realidade há ainda muitos professores atuando nas escolas indígenas que não possuem esse grau de escolarização. Ou seja, foi aplicado um critério exigido normalmente  para os professores não-indígenas, desconsiderando-se a realidade da maioria dos professores indígenas. Como vimos acima, o próprio Estado não favorece a escolarização formal dos professores em nível de magistério, o que lhes garantiria maior facilidade de acesso ao curso superior;


– as provas foram todas realizadas em língua portuguesa, sendo que esta é a segunda língua para muitos dos professores, o que dificulta o entendimento do que estava sendo pedido. Acrescente-se a essa dificuldade, o fato de as questões serem de forma objetiva, como múltipla escolha, em que o candidato tinha que assinalar apenas uma das cinco alternativas. Essa modalidade de prova foi extremamente prejudicial aos indígenas, pois sabemos que a língua portuguesa possui nuances de significado de difícil percepção para pessoas que não são falantes nativos da língua. E fato mais grave ainda é que a parte objetiva da prova era eliminatória, isto é, o candidato que não alcançasse 15 pontos nesta primeira parte era eliminado, não se corrigindo sequer a sua redação. Ora, sabemos que os professores indígenas conseguem se expressar com mais facilidade no gênero discursivo e esta possibilidade foi negada a grande parte dos candidatos.


– as questões da prova objetiva foram preparadas como se fossem para candidatos não-indios, não se notando nada adequado à realidade indígena, a não ser nas questões de Conteúdos Específicos. Ora, um dos princípios da educação escolar indígena é a interculturalidade e porque na hora de se selecionar professores indígenas só são privilegiados conhecimentos da cultura ocidental?


 


O resultado de um concurso assim preparado só podia ser o que vimos: dos 132 inscritos somente 68 professores conseguiram ser aprovados. Ressalte-se que estes professores acabavam de colar grau em nível superior pela UNEMAT, Universidade do próprio Estado e, desses, 64 foram eliminados. Como o Estado elabora um concurso em que a metade de seus próprios alunos não consegue passar? Isso nos parece um sinal inequívoco de que o concurso foi inadequado à realidade dos professores que pretendia selecionar.


 


7- PRESTAÇÕES DE CONTAS


 


As escolas indígenas, desde que contem com Unidades Executoras registradas em cartórios, recebem verbas para sua manutenção e para a oferta da merenda oferecida aos alunos. Entretanto, o sistema de prestação de contas é extremamente complexo em se tratando de gestão das escolas indígenas pelos próprios indígenas. Acresce-se a isso a constante troca dos formulários a serem preenchidos, o que dificulta o aprendizado por parte dos gestores das escolas indígenas, pois uma vez que se domina uma forma de prestar as contas, ela já não serve mais e tem que se recomeçar tudo outra vez. Os prazos também são difíceis de serem cumpridos, pois, em geral, as escolas indígenas estão situadas longe das cidades mais próximas, o que dificulta a compra dos produtos e a obtenção de notas fiscais e extratos bancários para se saber a situação das contas.


 


Sugerimos que se pense numa forma de, ao mesmo tempo, atender as exigências fiscais e propiciar aos gestores das escolas indígenas uma forma menos complicada de se fazer a prestação de contas.


 


Ainda em relação à prestação de contas, denunciamos um grave fato a respeito dos repasses financeiros, que via de regra são depositados em grande número no mês de dezembro, quando as escolas já estão entrando em recesso. E as prestações de contas devem ser concluídas até o dia 31 de dezembro. Isso inviabiliza um planejamento correto dos gastos a serem feitos bem como deixa as escolas sem recursos durante boa parte do ano.


 


Exigimos que os órgãos governamentais mudem a sistemática dos repasses financeiros, cumprindo o que foi firmado nos Termos de Compromisso, a fim de assegurar a regularidade da manutenção das escolas.


 


Os pontos acima elencados não esgotam toda a problemática da situação da educação escolar indígena em Mato Grosso. Mas mesmo assim, eles nos mostram que algo deve ser feito urgentemente a fim de que cessem as violações aos direitos indígenas garantidos em um amplo aparato legal e que o Estado cumpra com suas obrigações em relação a uma oferta de ensino de qualidade aos povos indígenas. Só assim Mato Grosso poderá resgatar um mínimo da dívida histórica que tem para com os povos originários desta terra.


                           


                                                São Félix do Araguaia, 21 de julho de 2006.


                                                    Cimi Regional Mato Grosso

Fonte: Cimi MT
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