03/08/2006

Histórias de vida missionária

A educação nos povos de pouco contato é repassada de pai para filho. É uma prática que se repete de geração em geração desde os tempos de seus ancestrais.           


Um exemplo bem referencial é a educação Suruaha. Seja familiar ou comunitária, é uma educação não agressiva. Independente de horário ou idade, as crianças e jovens aprendem de maneira livre e espontânea no espaço ocupado por eles, dentro ou fora da maloca.


            A terra, a mata, os rios, os igarapés e a maloca são importantes espaços ocupados pelos Suruaha, onde a convivência ocorre de forma participativa. Dali eles tiram seu sustento sem causar danos à natureza.


            A caça e a pesca fazem parte das suas atividades e do seu cardápio. Eles valorizam a qualidade e quantidade de sua alimentação nativa, por isso plantam grandes roçados, onde todas as pessoas trabalham, até mesmo as mais idosas, pois os Suruaha se preocupam em ter o excedente. 


            A educação Suruaha ocorre de forma bem natural. As crianças buscam materiais oferecidos pela natureza para confeccionar os seus instrumentos. Nesta escola da vida, o aprendizado é aperfeiçoado a cada dia. Na fase da adolescência, eles se tornam verdadeiros aprendizes.


            As meninas têm suas vivências de aprendizagem com as mães. Elas acompanham seus irmãos menores, participam da coleta de alimentos, de pescarias e de outras atividades caseiras. Isto não as impede de praticar outras atividades, como a cerâmica, confecção de paneiro, redes, tangas, etc. Ao se tornarem jovens, estão preparadas para assumir a responsabilidade familiar.


  Os idosos e pajés exercem um papel de fundamental importância no repasse de seus conhecimentos tradicionais. Com carinho, contam as histórias e os mitos e ensinam os cantos para os jovens e crianças, em momentos que exigem silêncio, respeito e atenção. Desta forma, a educação dos povos de pouco contato ocorre em vivências comunitárias, nos momentos de partilha de alimentos e saberes, de confecção de artesanatos, de plantio, de coleta…


A vida na maloca


Dentro da maloca, acontece o dia-a-dia: conversando, cantando, rindo, chorando, preparando alimentos, preparando rapé, confeccionando artesanatos (cerâmica, colares, paneiro etc.), fiando enviras para confecção de redes, fiando algodão para confecção de tangas, preparando flechas e zarabatanas, fazendo pinturas corporais, fazendo a distribuição do caldo, inalando rapé, contando mitos, histórias…


Quando os Suruaha se encontram, todos na maloca estão sempre trabalhando. Enquanto as mulheres exercem suas atividades femininas, os homens procuram se destacar em suas atividades masculinas. O homem assume o papel de chefe pelo prestígio: de bom caçador (de preferência matador de anta), de dono de grandes roças ou de melhor construtor de malocas. Os meninos e meninas imitam seus pais, usando brinquedos que são feitos pelos adultos ou pelas crianças. E assim vão aprendendo a exercer as atividades desde sua infância. Quando se tornam adolescentes, já estão aptos a desenvolver qualquer atividade. Em seus momentos de brincadeiras, as crianças imitam, inclusive, a prática de suicídio, provocando um clima de alegria, onde os adultos se divertem sorrindo.


Com a presença de todos, a maloca parece se transformar em uma verdadeira “fábrica natural”, com seus operários em atividades constantes. À noite, após a última refeição, acontece o momento sagrado: a inalação do rapé. Os Suruaha se reúnem formando pequenos ou grandes grupos de homens, rapazes, mulheres, moças, meninos e meninas. Cada pessoa procura o seu lugar certo para inalar o rapé. Os espaços escolhidos são iluminados pelo fogo para facilitar a distribuição do kumady (rapé). É um momento sagrado de conversa, escuta e mútuo respeito. É aí que ocorre a aprendizagem com a participação dos idosos, que repassam os conhecimentos de seus ancestrais para a nova geração.


Cada grupo fica sentado quase de cócoras, formando rodas visíveis pelo fogo, que fica no centro da roda. De vez em quando, alguém levanta e une as lenhas evitando que o fogo se apague. O rapé é colocado na mão de alguém e a pessoa que está ao lado ou à frente recebe a inalação, que é feita através do kuwasi (osso da asa de urubu-rei ou gavião-real). Neste momento comunitário, todos que estão presentes partilham do kumady. Pelo fato de ser muito forte, às vezes o rapé provoca vômito e mal-estar em algumas pessoas.


Após este momento, ninguém conversa mais. Todos procuram dormir. A maloca é tomada pelo silêncio e pelo frio da noite. A fumaça das lenhas, que ainda é consumida pelo fogo, percorre a maloca sozinha.


                                                                       


O suicídio


Segundo os Suruaha, muito antes do contato, todos os grupos foram reduzidos, principalmente por epidemia de gripes, sarampo, e arma de fogo, que exterminou com os líderes espirituais, isto provocou um sentimento de total abandono e insegurança que levaram os Suruaha ao desespero e optaram então pelo suicídio.


O suicídio consolida-se como elemento de superação do conflito social. Na prática cotidiana, a tentativa de suicídio aparece sempre ligada a situações de tensão e raiva originadas por problemas internos. Assim o Suruaha que experimenta um estado de insuportabilidade, nunca manifesta sua hostilidade em forma éteroagressiva. Pelo contrário, assume a tentativa de morte voluntária como mecanismo de autopunição e de superação da crise de relações. Vários indicadores permitem interpretar o suicídio como mecanismo de adaptação que substitui o feitiço, uma resposta eficiente e funcional após a crise histórica do massacre.


Atualmente o suicídio é opção idealista e otimizada do universo simbólico Suruaha onde eles buscam a “Terra sem males”. Na sua concepção mitológica, o paraíso dos suicídios (bai dokume) constitui o além mais valorizado. Na pedagogia familiar, os adultos transmitem às crianças a expectativa de suicídio como horizonte referencial. Todo Suruaha espera concluir sua vida com a ingestão de Kunaha. Há uma minoria de adultos não suicidas porque sofrem as conseqüências de um certo desprestígio social. 


  (Gunter Kroemer extraído do Livro Kunaha mady – O Povo do Veneno)


 


A ingestão do veneno acontece fora da maloca: no caminho da roça, de preferência onde há igarapé para facilitar a preparação do veneno. Após ingerir o veneno, eles procuram chegar na maloca, local apropriado para o ritual da morte, ou seja, passagem deste mundo para uma nova vida.


Neste momento, acontece a tentativa de salvamento tradicional envolvendo os parentes e outras pessoas que estão fora do parentesco, mas, nem sempre, os resultados são positivos.


Geralmente, a morte de uma pessoa leva a um suicídio coletivo. É uma forma de expressar o sentimento de perda. O enterro dos corpos é feito dentro da maloca onde ocorreram as mortes. Em seguida, os Suruaha se mudam, passando a morar em outra maloca, por causa do medo de asuma (alma), voltando lá para visitar seus mortos. Quando o suicídio é individual, após o enterro, eles permanecem na mesma maloca.


A prática do suicídio cresceu nos últimos anos. É provável que este aumento tenha a ver com as constantes saídas dos índios para as cidades, promovidas por alguns missionários evangélicos com apoio da Funai e Funasa.


 


Josefa Duarte Alves

Cimi – Lábrea

Fonte: Cimi
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