A Mística na Ação Missionária do Cimi [1]
A Mística na Ação Missionária do Cimi[1]
Paulo Suess
I.
O tema “Mística na Ação Missionária” se situa no interior da proposta deste seminário sobre a “Formação na Luta para a Luta”. A luta no Cimi é uma luta por todas as causas que visam a um mundo sem exclusão. A luta não é o nosso objetivo. O nosso objetivo é a vida dos povos indígenas num mundo que é de todos. Lutamos porque os poderosos construíram um muro entre uma parte da humanidade e a outra, entre incluídos e excluídos. Exclusão significa negação das condições necessárias à existência humana com dignidade. Nossa luta é decorrência do não-lugar dos povos indígenas na sociedade brasileira. A mística na ação missionária é mística no âmbito de uma missão profética. O profeta é o místico por excelência. Ele abre mão das mediações que, muitas vezes, fazem confundir conceitos, palavras, discursos, paradigmas e instrumentos com a realidade. O profeta-místico testemunha e antecipa, em sua visão, o conhecimento de uma nova realidade sem a mediação de tempo ou espaço. Tudo acontece num hoje, num tudo e nada, no meio de nós e por toda parte. Na mística vive-se o acesso imediato ao real. E o real é o Uno, a unidade dialética entre sabedoria e ignorância, entre o tudo e o nada, entre a vida e a morte, entre o ser humano e Deus. É a “mística maior” vivida no desapego radical, no desprendimento e no esvaziamento. Nesta perspectiva do “desnudamento”, o Mestre Eckhart (1260-1328) interpreta a purificação do Templo por Jesus (Mt 21,21-17; Jo 2,13-17). O Templo é o ser humano que deve livrar-se do “comércio” para que Deus possa nascer nele gratuitamente.
No Cimi, ao falar de mística, falamos de uma “mística menor” que acompanha nossas lutas e marca nossa vida neste mundo atravessado por diferenças, dualidades e contradições. Estamos ainda longe do “esvaziamento” de Eckhart e do “arrebatamento místico” de Santa Clara. Em vez de falar de “espiritualidade” procuramos simplesmente recuperar uma linguagem mais abrangente, ecumênica e inter-religiosa para a construção de uma outra sociedade que nos una com muitos setores marginalizados e excluídos no mundo de hoje. A mística que inspira, sustenta e norteia nossa ação missionária não tem fronteiras confessionais ou ideológicas. Ela tem raiz na nossa fé cristã, mas também nas outras religiões a humanidade procura a religação com o divino.
Observa-se hoje uma conjuntura que vai de um extremo ao outro, da mística ao misticismo, procurando responder a demandas de uma realidade secularizada. Diante da mercantilização total da vida cotidiana, também a palavra “mística” corre o perigo de se tornar mercadoria, chavão e moda. Já assistimos essa transformação do sublime em ridículo com palavras como “libertação”, “inculturação”, “diálogo” ou “opção pelos pobres”. “Mística” pode significar recitação de poesias, serenata, cantoria em cima de um trio elétrico ou reza de terço; pode significar também um olhar contemplativo à beira de um rio, um ritual festivo na aldeia e êxtase de um monge tibetano. A mística não se deixa prender por uma determinada religião ou cultura. A experiência mística pode ser uma experiência pré-cultural de Deus. A mística não é propriedade de nenhuma instituição. A palavra “mística” tem a mesma raiz que a palavra “mistério”. O mistério não se explica, vive-se, na contemplação e na ação cotidianas. A mística é como a utopia. Ambas não se deixam aprisionar em conceitos ou definições. Esotéricos e góticos, santos e militantes, movimentos sociais sem definição religiosa e comunidades religiosas se apropriam da palavra “mística”. Uns fazem mística, outros dizem que têm mística, outros, ainda, são místicos.
II.
No Cimi, a afirmação da mística poderia ser uma reação a pressões externas. Na Igreja institucional convive-se com setores que cobram “mais mística” para equilibrar um suposto envolvimento unilateral com questões terrestres e seculares, como terra, autonomia, direitos humanos. A reivindicação de “mais mística” daquele setor expressa uma visão dicotômica que separa a esfera espiritual da realidade material. Mais mística significa: mais reza, participação nos cultos da igreja local, mais afirmação de uma “identidade católica”.
Por outro lado, também os povos indígenas nos envolvem em seu universo místico. Não escondem suas orações, peregrinações, festas religiosas, ritos ancestrais e mitos dos missionários que os acompanham. E esperam desses missionários, mesmo que não tenham plena participação, um envolvimento além do “olhar distanciado” (Lévi-Strauss) do mestrando em antropologia. A aproximação missionária visa assumir integralmente a causa do outro. Assumir, porém, pressupõe aproximação e longas caminhadas, uns com os outros. E, a partir da nossa fé, que nos ensina a fazer “tudo para todos”, participamos dessas “místicas” dos povos indígenas além da formalidade profissional.
Uns nos exigem, outros nos sugerem, e nós afirmamos que “temos” mística, como a baiana, de Dorival Caymmi. O que é que o Cimi tem? Tem colar de índio, tem! Tem documentos de denúncia, tem! Tem luta pela terra, tem! Tem Plano Pastoral, tem! Tem mística, tem! Mas, não podemos ter místicas como se tem uma propriedade ou um objeto. Somos místicos. A mística não pode ser funcionalizada. O ser não nos foi dado para funcionar em benefício de alguém. O ser é sempre um vir a ser, ou melhor, um ser a vir, um servir. O Cimi luta contra uma visão de mundo em que tudo é avaliado por sua funcionalidade ou pela utilidade que tem.
Na controvérsia entre “ter” e “ser”, os povos indígenas estão ao lado do ser. Eles não têm nenhuma utilidade sistêmica. Rezar e fazer poemas não têm utilidade, não têm preço, não pode ser vendido. Mas tudo que não tem preço tem dignidade (Kant). Somos “servos inúteis” porque nosso ser místico não é útil nas categorias do mercado, mas é um “servir” que encontra sua expressão simbólica no lava-pés de Jesus de Nazaré.
Temos mística ou somos místicos? Talvez temos e fazemos místicas e ainda não somos suficientemente místicos. Ninguém de nós é místico vinte e quatro horas por dia. A mística é como o Reino de Deus: está no meio de nós, mas como dom, não como posse. Não somos os donos de um olhar místico que abre objetos e ações para sua verdadeira realidade. A cura do cego foi o último milagre de Jesus. Essa cura podemos viver em um e outro momento de nossa vida. Definitivamente, porém, ela está preservada para aquele momento em que veremos Deus face a face. Eis o mistério, a mística da nossa fé!
III.
A mística aponta para as fontes energéticas da nossa fé, aponta para a terra e para o céu. Ela nos envolve no mistério da realidade e da consciência. A mística nos faz inteiros e inteira a realidade. Na mística, vivemos antecipadamente o fim da dicotomia entre o campo espiritual e o campo material, entre coisas de Deus e outras, que não sejam de Deus. Por isso, o nosso tema não é “mística e realidade”, mas “mística na realidade”, não é “luta e contemplação”, mas “luta na contemplação” ou “contemplação na luta”. A integração entre o material e o espiritual, através da mística, aponta também para a integração entre ética e estética. Na luta pelo justo e pelo bem, na luta ética, não abrimos mão da estética, da luta pelo belo, pela harmonia e pela paz. O fim da luta pela justiça é a recuperação de um mundo em harmonia, de um mundo belo. O estético tem um horizonte ético e o ético tem um horizonte estético.
Num mundo em que para muitos tudo já passou (pós-histórico, pós-metafísico, pós-moderno, pós-utópico), não paramos de sonhar, de lutar, de agir, de interferir e de derrubar tudo que divide, exclui e privilegia. A utopia é a antecipação de um mundo inteiro e holístico para todos. A redução do horizonte utópico para um suposto realismo no “aqui e agora” cria uma miopia estrutural para os desafios históricos do pobre e do outro. Faz perder a esperança, compromete a fé e enfraquece a caridade. Quem vê longe também enxerga claro nas decisões de cada dia. As perspectivas dos “confins do mundo” e do “fim dos tempos”, a espacialidade e a temporalidade limitadas nos fornecem os parâmetros para uma autocrítica lúcida e uma conversão permanente, que permitem acompanhar com perseverança os processos históricos.
No envolvimento com o mundo real, cujo significado só entendemos no distanciamento e através de símbolos, vivemos a mística de cada dia. Nesse distanciamento, tudo pode se tornar transparente e apontar para uma realidade além das aparências. A romaria simboliza a caminhada; a caminhada é partilha; a partilha aponta para a transformação dos privilégios em direitos, transformação da acumulação em participação, do latifúndio em posse coletiva da terra. Nós, peregrinos da América Latina, contemplamos nos crucificados da história o crucificado de Nazaré. Em sua Historia de las Indias, Las Casas recorda-se desde a longínqua Valladolid: “Deixei nas Índias Jesus Cristo, nosso Deus, açoitado, afligido, esbofeteado e crucificado, não uma, mas mil vezes, pelos espanhóis que assolam e destroem aquelas gentes (…)”.[2] Os outros e os pobres são o lugar da revelação de Deus. A mística, que tem seu lugar na transparência do nosso serviço desinteressado à causa indígena, nos faz simples, despojados, leves. A contemplação das vítimas da história é ao mesmo tempo a contemplação de sua resistência contra a morte e a afirmação da possibilidade de uma justiça definitiva, codificada no imaginário da ressurreição.
A mística missionária militante está enraizada na realidade do mundo em construção, sem vítimas. O Crucificado rompeu com os sacrifícios humanos e desautoriza qualquer pessoa ou sistema que cria vítimas. Nessa contemplação enquanto resistência contra a morte, nossa mística forja o horizonte do sentido. A vida faz sentido, apesar das contingências, das mortes “antes do tempo” e do desespero de muitos. O sentido é gerado nas estações da luta, do sofrimento e do grito sobre o mundo como é. Mas o sentido é também construído na festa e no silêncio. A mística como sentido estruturante tem dois braços. É mística da terra, da realidade material, da luta e das marchas e é mística do transcendente que se fez e se faz carne a cada dia; é luta simbólica presente na transfiguração das estrelas, do céu, da poesia, das canções, dos bonés e das palavras de ordem.
Toda terra conquistada é símbolo do planeta terra a ser conquistado para a humanidade que se procura emancipar do mundo mercantil, da alienação e do fetichismo que faz dos objetos (máquina, mercadorias) sujeitos e dos sujeitos (operários, povos indígenas) objetos, emancipar daquela formação/educação que tem duas tarefas:
– fornecer os conhecimentos e adestrar as pessoas necessárias à máquina produtiva do neoliberalismo em expansão;
– produzir valores e normas que legitimam os interesses hegemônicos da classe dominante.
O saber organizado que se “tem” nas universidades não dá nem quer dar conta da sociedade complexa de exclusão. É um saber organizado para os mercados, para a profissionalização a serviço do sistema excludente, para a reprodução da ideologia dominante, para a repetição de um saber sem sabedoria. Não podemos mais simplesmente assumir o que a cultura dominante nos oferece. As formas sedimentadas do comportamento coletivo, que o sistema pedagógico nos faz aprender e repetir, servem simplesmente para continuar aquele jogo cujas cartas estão marcadas pela classe dominante. A luta pelas quotas, desligada das lutas populares, é uma luta corporativista pela integração sistêmica. É a luta para entrar e participar num sistema injusto. Pela participação seletiva, pela transmissão de valores elitistas que sustentam a violência da sociedade, e pelo saber sistêmico em função do mercado. A luta para entrar na “universidade” é a luta para participar de uma “particularidade”. Essa luta porém, quando articulada com o movimento popular que procura transformar a “particularidade” em “universidade”, quer dizer, transformar uma sociedade apropriada pelas elites num mundo para todos, tem um valor simbólico que aponta para uma chaga social histórica que até hoje marca a sociedade brasileira. Os que passaram pelas “universidades” podem tornar-se sempre inimigos dos movimentos populares: advogados e juízes, jornalistas e políticos, filhos de fazendeiros e de donos dos meios de comunicação que não estão minimamente interessados no rompimento “com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana”.[3] A política das quotas precisa romper o círculo do mal menor, da inclusão ao conformismo e da domesticação sistêmica.
Nas transformações que se fazem necessárias, precisamos transformar nossa maneira de apreender. Não podemos recorrer ao saber oficial e hegemônico. Autodeterminação e autonomia dos povos indígenas e de todos, exigem, nessas circunstâncias, encontrar-nos a nós mesmos. Trata-se de uma conscientização no sentido radical. Na ação militante, materializa-se uma nova consciência, a partir da experiência da negatividade, do não-lugar, do u-topos. Trata-se da construção de uma identidade aberta e histórica. Ter identidade além de alguns momentos revolucionários só é possível numa sociedade sem alienação. A aquisição da capacidade de agir e de construir uma identidade é um processo de formação permanente, de formação na luta pela luta para uma sociedade sem luta (de classe). Dizer: “a luta continua” significa que a construção da identidade é um processo permanente. Se um ou outro dos missionários e das missionárias do Cimi corre para a universidade, é, então, para afinar os instrumentos forjados na luta, afinar o olhar adquirido na ação, como fizeram Gandhi e Lumumba em seu tempo.[4] Para a nossa “formação na luta pela luta” precisamos inventar novas “formas” e construir outras universidades para o saber excluído e assumir com espírito crítico o saber da época.
IV.
O horizonte de um outro mundo necessário à vida dos povos indígenas e de todos os setores excluídos cria um descontentamento estrutural com o mundo assim como é; com o mundo que cria vítimas e exclui; com o mundo que despreza a vida dos inocentes e privilegia os violentos. Da mística que permite ver longe e ver nas profundezas do possível, emerge a energia de uma indignação profética. Ela é o antídoto para o conformismo, a indiferença e o esquecimento. A memória, a contemplação e a indignação são as primeiras pontes sobre o abismo que separa os excluídos do resto da humanidade. Indignação significa compaixão, misericórdia e justiça. A indignação se dirige contra aquilo que aflige os pobres; contra a fome das multidões; contra o conformismo de uma história fatal; contra o providencialismo do “Deus quer assim”; contra a hegemonia do capital, das armas e da tecnologia a serviço do lucro. Os povos indígenas, os pobres e os excluídos desmentem a ideologia neoliberal que apregoa que a liberdade dos mercados beneficia a todos. A desigualdade pode ser crônica, mas não precisa ser perpétua. A história está cheia de possibilidades. A fé inspira sempre novas razões de esperança que podem alimentar a paixão missionária. A indignação preserva a missão da adaptação e da submissão à falácia da ideologia dominante.
A indignação profética e visionária é marcada pela alegria profunda de poder participar da construção de um mundo novo. Mística é visão acoplada à ação. Tudo pode ser diferente. A partilha e a opção pelos pobres apontam para tarefas básicas neste mundo: a redistribuição da terra pelos povos índios e os sem-terra e o reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. Essa visão se transforma em ação através da presença no meio dos outros-pobres e através da palavra, profética e misericordiosa, ao mesmo tempo. A mística missionária militante produz sinais de justiça e imagens de esperança; cria referenciais de sentido num mundo migratório onde, com perda generalizada de espacialidade e de temporalidade, se perde os territórios de sentido. Grande parte da humanidade mais pobre vive numa situação de migração ao exílio ou no exílio. Despejo, dispersão, migração e exílio tornaram-se metáforas da condição humana no início do século 21. A perda dos referenciais espaciais ameaça a suposta identidade convencional dos indivíduos e de grupos sociais. No mundo, onde os privilegiados perdem o sentido de vida, e os excluídos a visão de um horizonte e a força de resistência, o querigma missionário elementar é a esperança.
Precisamos transformar a visão de um outro mundo numa linguagem que a sociedade, os povos indígenas, as Igrejas entendam. Isso é muito difícil. Linguagens e discursos são sempre regionais. A partir do particular da nossa luta, da nossa Igreja e do nosso contexto precisamos, para nos unir com outros setores da sociedade, com outras causas e com outros continentes, encontrar uma linguagem menos regional (menos eclesiástica, menos guerreira, menos moldada em chavões locais) e mais conectada com o mundo de hoje. A rigor precisamo-nos esforçar para entender e falar, ao lado do nosso regionalismo, múltiplas linguagens regionais inteligíveis nos diferentes contextos. Assim, poderemos contribuir, a partir da causa indígena, para uma nova consciência humana, marcada num globo finito, cujas reservas de terra e água, de minérios e de fontes energéticas são finitos, reconhecer as diferenças e dizer sim à repartição dos latifúndios da terra, do capital e do saber. O esvaziamento visa à plenitude.
V.
A mística faz parte da nossa responsabilidade, quer dizer, da nossa habilidade para responder aos grandes desafios que atravessam o mundo de hoje. Somos herdeiros, nascemos no grito; somos livres, portanto, responsáveis. Fazendo algo ou fazendo nada, no silêncio e no grito, sempre somos responsáveis. Somos responsáveis pelo grito dos outros, pelos muros, pelo muro que separa a verdadeira humanidade da vida humana; somos responsáveis pela indevida apropriação dos latifúndios e pela corrupção dos administradores. Sempre somos responsáveis, ou como profetas ou como cães mudos, como diz o profeta.[5] Somos condenados a escolhas, opções, decisões.
Nessa situação, saber significa saber interferir; saber fazer diferente. Formação compreendemos como uma ação para fazer novas formas de pensar, novas formas nas quais cabe um mundo para todos. Formação significa, através da ação informada, reformatar o mundo. Formação significa a negação da negação naturalizada de uma existência humana. A essa negação chamamos resistência, recusa e rebeldia. O feito pode ser desfeito e refeito. O muro da separação não é algo natural. Foi construído e será derrubado. Formação visa à transformação de um mundo dado para poucos num mundo construído por todos e para o bem de todos.
Essa formação para a transformação acontece nas pequenas práticas cotidianas que conseguem brecar o sistema. A mística é ao mesmo tempo visão (“teoria”) e ação. A visão para dentro de si e o despojamento são a condição da inserção militante no mundo. Nesta perspectiva, São Paulo articula a encarnação com o mistério da cruz de Jesus Cristo: “Ele tinha a condição divina e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo” (Fl 2,6s). Presença, palavra, sinais, imagens, sonhos e desejos negados em nome da nossa fé são areia na máquina do tempo. Meras reformas ou remendos novos em odres velhos não mudam o curso da história. Uma nova sociedade sem alienação só pode ser pensada num horizonte assistêmico, além da “utopia” da sociedade consumista, da sociedade produtora de objetos à custa das pessoas.
Os sistemas, instituições e organizações sempre estão cheios de contradições. A contradição faz parte do mundo factual. Os fatos são momentos estagnados de um processo amplo de libertação. A tarefa-pergunta relevante que envolve nossa mística na ação: Como produzir rupturas? Como plantar os sonhos dos povos indígenas e dos excluídos nas rachaduras do sistema? Ruptura significa desprogramação, desinstalação, desalienação. Como abrir mão das nossas representações prestigiosas e viver a solidariedade como expressão radical de gratuidade sem retorno? Gratuidade significa não só ruptura com a sociedade domesticada por lucro, competição e controle. A gratuidade rompe com o desejo mimético de incorporação, identificação e reciprocidade. A gratuidade é a estrutura da mística e a condição de um mundo sem violência, “porque a vida só se dá pra quem se deu”.[6]
Ao contribuir para a organização do movimento indígena, articulamos um potencial perturbador para o sistema. As esperanças e os sonhos alimentados através da mística na ação missionária são fatores de resistência. Para a organização dessa esperança, não vale a normatividade da “qualidade total”, que é concorrencial e eliminatória, mas a excelência dos povos indígenas e a assunção de sua diversidade na rede de relações igualitárias.
A mística é uma viagem que relativiza projetos, gramáticas e lógicas. Em cada etapa dessa viagem que se torna caminhada, voltam antigas e novas perguntas. São sinais da nossa subjetividade em construção e da busca de sentido. Só o sujeito faz perguntas, questiona a si e ao mundo. Afinal, quem somos? A caminhada é um aprendizado para conviver em paz com cada vez mais perguntas e com uma indignação profunda. No caminho se perde a ansiedade de soluções imediatas, a ansiedade de encontrar respostas para tudo.
A mística questiona a fragmentação do sentido e o mundo dividido entre ricos e excluídos. Questionar significa saber fazer perguntas sobre esse mundo dilacerado ao próprio Deus: “Até quando, Senhor?” Também na mística não encontraremos respostas, além de um convite: Sai da tua terra e vai. Abandone teus trilhos. Procure desterritorializar-te. Perguntando caminhamos. Ao sair do “nosso” lugar, mudamos o olhar para o mundo, reforçamos a nossa vontade de lutar e ganhamos uma nova perspectiva de viver. O mundo globalizado e virtualmente conectado em redes de comunicação nos faz sempre de novo refletir o significado do Reino que “é semelhante a uma rede lançada ao mar” (Mt 13,47). Uma rede de novas relações sociais? Só isso? Tudo isso! Na mística, antecipamos a coincidência entre plenitude e vazio; superamos, como possibilidade real, as dicotomias entre o tudo e o nada, entre exclusão e inclusão, entre vida e morte. Nas lutas estamos enredados com os mártires que deram a vida pela causa do Reino para que a chama da vida nunca se apague. Caminhemos perguntando.
[29.7.2006]
[1] Contribuição para o “Seminário Nacional de Formação do Cimi: Formação na luta para a luta”, de 24.7. a 28.7.2006, Luziânia/GO.
[2] LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias. 3 vols., Caracas: Biblioteca Ayacucho (108-110), 1986, vol. 3 (liv. III, cap. 138), pág. 510.
[3] MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 45, cf. também p. 66ss.
[4] Gandhi, considerado pai da independência da Índia, estudou Direito na Inglaterra e foi assassinado em 1984. Lumumba, lider da independência do Zaire (1960) e primeiro-ministro da República Democrática do Congo, estudou em Paris e foi assassinado em 1961.
[5] Cf. Is. 56,10: “Todas as sentinelas são cegas, nada percebem; todas elas são uns cães mudos, incapazes de latir; vivem a resfolegar deitados, gostam de dormir”.
[6] Vinícius de Moraes/Toquinho, Como dizia o poeta.