18/07/2006

Artigo: Se Deus está conosco, quem estará contra nós?

“Se Deus está conosco, quem estará contra nós?“ Rom 8,31


 


Erwin Kräutler, Bispo do Xingu


 


A defesa dos direitos humanos e do meio-ambiente é na região do Xingu, na Amazônia, um empenho que muitos políticos e empresários combatem com todos os meios. Calúnias, difamações e ameaças de morte são as armas que empregam na tentativa de calar a quem faz ouvir sua voz contra as agressões à dignidade humana, em favor da sempre protelada reforma agrária, contra a destruição inescrupulosa do meio-ambiente, contra a pilhagem, a depredação e o saque das riquezas naturais, contra um modelo de desenvolvimento e progresso que, sem um mínimo respeito à pessoa humana e às comunidades locais, somente visa os interesses de uma poderosa oligarquia à procura de lucros imediatos e fabulosos.


 


1- Continuamos chorando o assassinato de uma defensora da Vida.


 


O que inspirou Irmã Dorothy Mae Stang foi o Evangelho que sempre entendeu como Boa Nova anunciada aos pobres e excluídos. Viveu vinte e três anos na Transamazônica e morreu assassinada em Anapu, PA, no dia 12 de fevereiro de 2005. Testemunhou sua Fé com a vida e a morte. Sabia que Deus estava com ela. Na última entrevista que deu a um jornalista afirmou: “Eu acredito muito em Deus e sei que ele está comigo! Sei que eles querem me matar, mas não vou fugir. Meu lugar é aqui, ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas por gente que se considera poderosa!“


 


Muitos enigmas em torno deste brutal assassinato ainda não foram desvendados. Por ocasião do primeiro aniversário de morte da Irmã exigi das autoridades judiciais um inquérito mais abrangente e o esclarecimento completo do crime.[1][1] Não nos contentamos  com a prisão dos executores e de três acusados de serem os mandantes. A morte da Irmã foi programada por um consórcio, até os mínimos detalhes. Os culpados não são apenas os que estão presos, condenados ou aguardando julgamento. Há muito mais gente envolvida nesse crime, inclusive políticos que hoje como prefeitos e vereadores exercem seus mandatos sem serem importunados. Durante anos e meses prepararam deliberadamente um terreno propício para o assassinato da Irmã. Agora negam qualquer participação e como Pilatos lavam suas mãos. “Estou inocente deste sangue. A responsabilidade é vossa” (Mt 27,24)


 


Para a nossa maior surpresa, um dos acusados de ser mandante do crime, Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, há poucos dias foi posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal. O Ministro relator do Habeas Corpus, Cezar Peluso, argumentou[2][2] que a prisão preventiva não pode ser utilizada como antecipação da pena e como justificativa para a “sede de vingança coletiva”. Essa argumentação não deixa de ser uma agressão gratuita e leviana a todos nós que nos empenhamos em favor dos direitos humanos. Jamais nos deixamos guiar por vingança! O que queremos é justiça! Com a soltura de Regivaldo Pereira Galvão, os aliados do crime cantam vitória e se sentem corroborados pela mais alta corte da Justiça neste País em sua guerra aberta contra aqueles que defendem a Amazônia, os povos indígenas, os pobres colonos, contra as investidas mortíferas dos saqueadores e grileiros, invasores e pseudo-proprietários com seus jagunços que agem ao primeiro aceno de seus comandantes. Essa gente de mãos dadas com políticos da região, semeou e continua semeando o ódio contra quem exige justiça, a apuração dos fatos e o fim da impunidade. Quem abre a boca, corre risco de vida.


 


2- Lamentamos a vil destruição e devastação programada da Amazônia e a maneira como vem sendo imposta a construção da Hidrelétrica Belo Monte.


 


O projeto Belo Monte parece ser sacrossanto, intocável, inquestionável e assumiu ares de verdadeiro sujeito histórico. O ser humano, as famílias, as comunidades deixam de ser sujeitos de sua própria história, não contam, tem que se calar diante do projeto planejado e elaborado alhures sem nunca ter levado em conta os legítimos anseios da população local. O ser humano atrapalha, é estorvo, obstáculo, e assim, já que não pode ser eliminado, vira objeto irrelevante para o qual se busca, na melhor das hipóteses, soluções “menos traumatizantes“. Na realidade, os idealizadores e promotores deste tipo de projeto estariam bem mais à vontade se, em pleno terceiro milênio, esses índios “da era da pedra lascada“ e esses ribeirinhos “atrasados e obsoletos“ desaparecessem de uma vez por todas. Ai de quem tiver a “petulância“ de pôr em dúvida o projeto e de querer saber o que realmente foi programado para a região! É imediatamente taxado de “inimigo do progresso“, “contrário ao desenvolvimento“, alguem que quer “engessar a Amazônia“.


 


Nos últimos meses e semanas tornei-me alvo de campanhas virulentas. Empresários e políticos declararam guerra contra o bispo do Xingu e os movimentos sociais. Gritaram do alto de seus palanques: “Vamos para a guerra!“ e prometeram “descer o cacete“ numa explícita incitação à violência. Alicerçaram esta sórdida investida num artigo publicado pelo jornal de maior circulação na Amazônia, “O Liberal”, assinado pelo economista Armando Soares[3][3]: “Os poderosos, os traidores da pátria, os maus brasileiros soltaram seus cães para censurar e obstaculizar quem luta pela libertação da Amazônia do engessamento econômico em curso arquitetado pelas forças do mal. (…) Altamira, pela suas riquezas e localização estratégica, é um dos focos preferenciais dos nossos inimigos, localidade onde reina um religioso do tempo da inquisição, ditador autocrático que se acha com direito de interferir na vida econômica do município criando um clima de terror e medo. A sociedade de Altamira precisa reagir com firmeza e coragem e expulsar da região todas as pessoas que de alguma forma estão promovendo o caos econômico, o desemprego, a angústia e o sofrimento a milhares de pessoas. Ensinava o pai de Cícero, o grande tribuno romano, que homens iníquos têm que ser eliminados da sociedade, sob pena de contaminarem toda a sociedade…”


 


3- Denunciamos o abuso sexual de menores.[4][4]


 


Mais uma vez Altamira tornou-se manchete nos noticiários nacionais. Junto com as famílias desta cidade, mulheres e homens de bem, a juventude, mormente a estudantil, junto com as lideranças da sociedade civil, fiquei estarrecido por mais uma série de crimes de abuso sexual de menores. Vim saber dos fatos por relatos de pessoas que depositam toda a confiança no bispo, mas têm medo de vir a público para revelar o que sabem e de que são testemunhas qualificadas. Esses crimes, ao que tudo indica, já acontecem há mais tempo e só nos meses passados vieram à tona. Por incrível que pareça, fotos das orgias realizadas pela quadrilha podem ser encontradas em qualquer lugar de Altamira nas mãos de qualquer pessoa. Clandestinamente são vendidos DVDs com fotos das sessões perversas.


 


Convoquei o povo a manifestar a solidariedade com as famílias aflitas, tão duramente provadas e disse que, infelizmente, neste nosso tempo, caracterizado por todo tipo de libertinagem e permissividade, nenhuma família pode mais considerar-se imune diante das propostas obscenas a que suas filhas e seus filhos diariamente estão expostos.


 


Insisti ainda que todos os cristãos e cristãs participassem mais intensamente da luta pela moralidade e ética na sociedade, empenhando-se em favor dos bons costumes e denunciando todas e quaisquer infrações que agridem a dignidade da mulher, da criança e de toda pessoa humana


 


Textualmente declarei: „Sejam quais forem os criminosos e tenham eles acentuado poder político ou financeiro, exigimos das autoridades judiciárias que tomem, com máxima urgência, as medidas necessárias para elucidar esses crimes contra a dignidade humana e identificar e prender todos os criminosos para livrar a sociedade altamirense desses monstros.“


 


Como bispo do Xingu em nenhum momento podia silenciar ou omitir-me diante dos delitos abomináveis cometidos contra adolescentes. E a reação de quem foi acusado não tardou. Ato contínuo surgiram as retaliações. As ameaças de morte contra a minha pessoa não são apenas conseqüência de meu empenho em favor da Amazônia e da minha defesa intransigente dos direitos dos povos indígenas e ribeirinhos, dos pobres do campo e da cidade, mas sim também deste meu grito contra a imoralidade e abusos tão estarrecedores de que foram vítimas as meninas de Altamira.


 


* * *


 


Estou passando por um Getsêmani que nunca pude imaginar. Getsêmani, porém, é uma hora especial de graça, pois é no Monte das Oliveiras em que Jesus reafirmou sua fidelidade irrestrita ao Pai e exclamou “Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita“ (Lc 22,42), se bem que em sua angústia “o suor se tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caíam por terra” (Lc 22,44). O Pai lhe “enviou um anjo do céu, que o confortava” (Lc 22,43). É o mesmo Pai que hoje me envia não apenas um anjo, mas uma multidão de anjos. É o Povo de Deus do Xingu, gente simples, humilde, carinhosa, que me conhece há décadas e nunca duvidou do meu amor a essa terra e do meu empenho em favor de seu desenvolvimento. É o povo muitas vezes abandonado e esquecido que tive e tenho o privilégio de visitar ao longo dos rios e igarapés, ao longo das estradas e suas vicinais até os últimos rincões no Alto e no Baixo Xingu, no Amazonas, na Transamazônica e nas outras rodovias que cortam as selvas da Amazônia. Já sofri com este povo e por este povo querido. Agora mulheres e homens, crianças, jovens e pessoas idosas da cidade e do interior tornam-se os anjos, enviados pelo Pai, para confortar-me e para pedir que não me deixe intimidar pela iniqüidade e as injúrias de alguns exaltados e muito menos que abandone o Caminho.


 


Não me arrependo de nada que falei nestes tempos e não retiro uma só palavra! As posições que assumo foram e são sempre sustentadas pela oração contínua. Sei que Deus está comigo! “Se Deus está conosco, quem estará contra nós!” (Rom 8,31) ou para usar as palavras do Salmo 117: “Na minha angústia eu clamei pelo Senhor, e o Senhor me atendeu e libertou! O Senhor está comigo, nada temo!” (Sl 117,5-6).


 


Anapu, 15 de julho de 2006


 








[1][1] Homilia “Um ano depois”, durante a Eucaristia celebrada por ocasião do aniversário de morte da Irmã Dolrothy, Anapu, 12 de fevereiro de 2006.


[1][2] O HC nº 87041 foi impetrado em 27/10/2005 e teve como MInistro Relator CEZAR


PELUZO (1ª Turma do STF).Hoje 29/06 no inicio da manhã o HC foi julgado pelos ministros: Cezar Peluso (Relator), Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto. Os três primeiros ministros citados votaram pelo deferimento ou seja a favor do HC e da soltura do Regivaldo, os outros dois ministros tiveram seus votos vencidos, a decisão foi por maioria (3X2).  O Ministro relator do HC, Cezar Peluso argumentou que a prisão preventiva não pode ser utilizada como antecipação da pena e como justificativa para a “sede de vingança coletiva”.Disse ainda “Considero a prisão preventiva absolutamente ilegal”, concluiu o ministro determinando a soltura imediata de Regivaldo Pereira Galvão. (fonte: ultimas noticias do STF)


[1][3] Armando Soares, economista, “Reagir é a palavra de ordem” em O LIBERAL, 5 de junho de 2006, p.11.


[1][4]  Pronunciamento de Dom Erwin Kräutler no programa “Cidade Livre”, Altamira, através da TV Nazaré e TV Canção Nova, 27 de março de 2006.


 

Fonte: Cimi
Share this: