Carta Compromisso de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
X Conferência Nacional de Direitos Humanos
Brasília – 2006
1. Reunidos na X Conferência Nacional de Direitos Humanos, nós defensoras e defensores de direitos humanos, que militamos e lutamos todos os dias em nossas entidades, movimentos sociais e instituições públicas para que sejam respeitados, protegidos, promovidos e garantidos os direitos humanos de todos os povos, mulheres e homens, crianças, jovens e idosos, migrantes, trabalhadores e trabalhadoras rurais, urbanos e domésticos, pessoas com deficiência; nós que lutamos sem parar para que todas as pessoas tenham liberdade para professar sua fé religiosa sem restrição, para que tenham a liberdade de orientação sexual sem qualquer constrangimento; nós que lutamos para que educação de qualidade, saúde acessível e de qualidade, trabalho e renda, dignidade e respeito sejam garantidos a todos, homens e mulheres sem qualquer discriminação e exceção; nós que exigimos a regularização imediata das terras quilombolas e o reconhecimento dos direitos indígenas; nós que queremos um país sem racismo, sexismo e violência, nos unimos para manifestar nossa mais veemente indignação com os assassinatos e o extermínio do qual São Paulo foi vítima por causa da ação do crime organizado que matou dezenas de policiais civis e militares, mortes estas seguidas de execuções sumárias, de jovens pobres e negros da periferia, típicas de grupos de extermínio formados no interior do aparelho de segurança. O massacre de São Paulo é, infelizmente, só uma pequena mostra, hoje a mais aparente, de um problema que atinge a todos e todas e que vem se transformando em uma questão fundamental a ser resolvida se quisermos construir um país verdadeiramente democrático, justo e solidário.
2. A exclusão social tem sido a marca histórica e permanente do desenvolvimento econômico, político e social do país, na última década a política neoliberal adotada no Brasil tem agravado a preponderância de políticas que não priorizam a justiça social com impacto forte sobre os direitos humanos. Precisamos inverter as prioridades, em vez de aumentar e garantir o lucro dos banqueiros e das transnacionais, precisamos de recursos dirigidos a políticas públicas de educação de qualidade, de segurança pública, garantia de acesso humano e digno à saúde, programas de geração de trabalho e renda, efetivação de uma verdadeira reforma agrária, implementar a demarcação das terras indígenas e quilombolas e respeitar e garantir os direitos dos povos da floresta e de ribeirinhos. A violência é um fenômeno complexo e não se restringe às péssimas condições de vida dos pobres e miseráveis, mas essa condição, em si, já é marca da violência. A mudança nesse quadro exige que se destinem recursos e orçamentos prioritariamente às políticas sociais e para que se tenha também a segurança pública como parte essencial das políticas sociais e de construção da cidadania. Entendendo que os operadores de segurança pública devem ter um salário digno e melhores condições para cumprir sua missão. Precisamos de um outro modelo econômico, uma outra lógica de políticas públicas, queremos uma política de segurança com participação e controle social, que respeite a vida e a dignidade das pessoas livres e dos internos em instituições prisionais.
3. A efetiva implementação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, requer a imediata aprovação de uma lei de responsabilidade social que vincule a administração pública a metas de implementação de políticas públicas nessas áreas. Aprovar essa nova lei é criar uma política de Estado que permita avançar de forma sustentável e permanente na redução das desigualdades sociais.
4. O extermínio de jovens negros, seletivo, dirigido e planejado deve ter fim. Não é possível existir democracia e cidadania com a permanência dessa situação, que é resultado do racismo que se manifesta também na segregação no acesso à educação, ao trabalho, que se exprime também nos salários menores para negros e negras. O Poder Legislativo pode ter um papel importante nesse processo se criar e dar condições de trabalho a uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o extermínio de negros e indígenas. A sociedade civil também tem papel nessa luta, a crítica, a vigilância e a pressão são fundamentais, por isso recomendamos a criação da Rede Nacional de Combate à Violência Letal Juvenil, reunindo organizações não governamentais, movimentos sociais, fóruns e articulações de direitos humanos, de negros e negras afrodescendentes, de mulheres e indígenas, entre outros.
5. O resgate da dívida histórica com os afrodescententes originada com a escravidão e a superação do racismo e da desigualdade racial deve ser uma prioridade do Estado e da sociedade que será reforçado com a aprovação do Estatuto da Igualdade e a criação do Fundo Nacional para a Igualdade Racial, com o objetivo de financiar políticas, programas e projetos visando a reparar a histórica dívida histórica e promover a igualdade racial.
6. A violência de gênero doméstica e intrafamiliar contra as mulheres constitui uma grave forma de violação dos direitos humanos, portanto recomendamos a aprovação imediata do projeto de lei da Câmara dos Deputados 37/2006 que representa a tentativa de criação de mecanismos efetivos para coibir a violência contra as mulheres.
7. O racismo também atinge os indígenas, que continuam a sofrer violência exacerbada e ainda são vítimas de massacre e vivem sob a ameaça de extinção de vários povos. Denunciamos a violência contra indígenas, a criminalização das lideranças e dos movimentos indigenistas e reivindicamos que seja criada rapidamente, pela Presidência da República, uma Secretaria de Política Indigenista, nos moldes das secretarias de Direitos Humanos, de Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres e que se construa, de forma participativa e democrática, uma política indigenista que tenha por primazia o respeito aos direitos humanos.
8. Denunciamos o processo de esterilização imposto às mulheres indígenas. Reivindicamos da Divisão de Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde, especial atenção com políticas específicas para proteger e garantir o exercício dos direitos reprodutivos das mulheres indígenas.
9. As pessoas com deficiência continuam fazendo parte do ciclo de invisibilidade que engloba em seu contingente populacional 600 milhões de pessoas no mundo inteiro, sendo 24,5 milhões só no Brasil e que corresponde, em nossa realidade, a 14,5% da população. Esta situação não pode ser desconsiderada pelo discurso e pelas práticas de direitos humanos. No âmbito da Organização das Nações Unidas já foi reconhecida a necessidade de garantia de direitos humanos, gerais e específicos, e de visibilidade ao seguimento. Estamos em meio a um processo histórico da elaboração da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, iniciado em 2001, cujo texto estima-se finalizar na VIII Sessão do Comitê ad-hoc instaurado, a ser realizada em agosto de 2006. É preciso trabalhar a temática de direitos humanos de forma transversal e inclusive garantindo o acesso de todos aos seus direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, além dos direitos peculiares de cada segmento. A eficácia das normas, no entanto, dependem da mudança de paradigmas culturais. Por isso a grande relevância da inclusão das pessoas como público beneficiário de direitos humanos. Ressaltamos a necessidade de que nos relatórios de monitoramento de direitos humanos, políticas e cadastros para fins estatísticos seja sempre considerado o recorde específico das pessoas com deficiência, sem prejuízo dos demais recortes da diversidade humana.
10. Recomendamos a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 1151/1995, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
11. Recomendamos que o Programa Brasil Sem Homofobia, programa este atualmente com ações interministeriais seja tornado um Plano Nacional com fundo próprio a fim de promover ações de desconstrução do preconceito por orientação sexual e identidade de gênero.
12. Há 16 anos, o povo brasileiro conquistou um novo marco legal e político de priorização da infância e juventude, como determina nossa Constituição. As crianças e adolescentes têm de ser nossa prioridade absoluta. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina e dá os critérios para o tratamento de adolescentes em conflito com a lei. O que exigimos é o respeito à lei, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, com a extinção dos atuais internatos-prisões e sua substituição por instituições verdadeiramente sócioeducativas e a priorização de projetos em meio aberto de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade. É fundamental a criação de programas de proteção da criança e adolescentes ameaçados de morte, bem como o país deve cumprir as decisões dos organismos internacionais relacionadas à vida e à integridade física dos adolescentes internados.
13. A violência sexual contra crianças e adolescentes contitui uma das mais cruéis formas de violação dos direitos humanos. É preciso efetivar políticas públicas de prevenção e enfrentamento dessa realidade no sentido de garantir os direitos desse segmento infanto-juvenil.
14. É critério de justiça e respeito aos direitos humanos o acesso pleno à saúde. Especificamente em relação aos portadores de sofrimento mental, o Ministério da Saúde deve instituir mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios e para o efetivo cumprimento da reforma psiquiátrica. É necessário ampliar o acesso, sem que implique na interdição judicial dos Benefícios de Prestação Continuada, é imperativo garantir o acesso gratuito ao tratamento necessário, inclusive os de alto custo e é essencial que se garanta que as pessoas portadoras de transtornos mentais, que cometam delitos e são consideradas inimputáveis, sejam tratadas com as mesmas condições definidas na reforma psiquiátrica, ou seja, nos hospitais gerais e serviços substitutivos.
15. Os presídios não devem ser lugar onde a sociedade se vinga de pessoas que cometeram algum delito, dos mais brandos e ligados à condição de necessidade aos mais graves, aos crimes contra a vida. Não se trata de vingança, se trata de justiça. Devemos manter constante vigília da sociedade civil para que as garantias previstas na Lei de Execuções Penais e na Constituição Federal sejam efetivadas em relação às especificidades da mulher presa, como também aos presos e egressos. Manifestamos especial recomendação para a ampliação da aplicação de penas e medidas alternativas.
16. Precisamos de uma política de direitos humanos, ao mesmo tempo clara, publicizada, abrangente, permanente e possível de ser monitorada, com metas e prazos para serem cumpridos e respeitados. É necessário promover a atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos, com ampla participação da sociedade. O novo posicionamento do Estado e da sociedade deve incorporar desde os instrumentos legais para a responsabilização dos estados brasileiros nos casos em que a União for condenada por violação aos direitos humanos em instâncias internacionais, além de promover a ampliação de espaços de justiciabilidade internacional dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhescas), e reforçando ações que garantam a divulgação e a informação a todos os órgãos e instituições do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para o conhecimento e apropriação das decisões e acordos internacionais e das recomendações do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
17. Reafirmamos nosso compromisso com a política de desarmamento como instrumento efetivo de diminuição dos índices de criminalidade e violência, que deve ser reforçada com uma profunda alteração nas políticas mantidas com base na letalidade e na violência da ação dos aparelhos de segurança.
18. A institucionalidade dos direitos humanos requer a criação e o fortalecimento de conselhos de direitos humanos, no âmbito federal, estadual e municipal, bem como de ouvidorias, com funções deliberativas e vinculantes, instituições democráticas, com participação da sociedade civil, com composição no mínimo paritária, com orçamento e estruturas adequadas. Os conselhos devem ter função e responsabilidade de monitoramento, avaliação e formulação de políticas públicas de direitos humanos. Devem ser espaços de controle social, participação e construção dos direitos humanos.
19. Recomendamos a aprovação imediata do projeto de lei que cria o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Destacando, porém, que o Conselho Nacional deve ser composto com maioria de membros representantes da sociedade civil, com orçamento próprio e atuação autônoma.
20. A educação é terreno próprio e fecundo para a promoção e irradiação da cultura dos direitos humanos, por isso é importante a promoção da educação em direitos humanos desde a educação infantil até a universidade, abrangendo educação formal e não-formal, considerando todos os recortes de diversidade de religião, raça, etnia, gênero, orientação sexual, deficiência e geração, com focos na formação de professores e professoras, com salários e condições de trabalho dignos, contemplando a transversalidade das temáticas e especificidade do processo pedagógico.
21. É preciso garantir a defesa e promoção do direito humano à comunicação, cuja importância está ligada à construção de identidades e subjetividades, bem como à conformação das relações de poder. Sua realização passa pela garantia de meios e de condições para que os diversos segmentos da população possam ouvir, falar e ser ouvidos, inclusive garantindo que a TV Digital seja construída a partir de plataforma livre, sem o o uso e pagamento por patentes e tenha seu modelo implementado de tal forma que se garanta a democracia e a diversidade cultural na produção de conteúdos. Por isso é preciso reconhecer o direito humano à comunicação na construção da política nacional de direitos humanos. Também é preciso reforçar a adoção de medidas administrativas, legislativas e judiciais, que visem a prevenir, coibir e punir o uso indevido da internet e de outros meios de comunicação para a prática de crimes contra os direitos humanos.
22. Construir um país democrático pressupõe o resgate de nossa história, especialmente o conhecimento, reconhecimento e reconstituição do período recente da ditadura militar. Memória e verdade são condições necessárias para a permanência da democracia. Justiça e verdade são condições necessárias para o resgate histórico da resistência do povo brasileiro contra a ditadura militar, com o julgamento e punição dos torturadores a exemplo do que já vem sendo feito em outros países da América do Sul, como Argentina e Chile. A abertura dos arquivos da ditadura já tarda. E deve ser complementada com o respeito ao direito daquelas pessoas que ainda não tiveram seus processos de anistia analisados e daquelas cuja anistia ainda não foi completamente implementada.
23. Manifestamos nosso apoio ao Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, aumentando a participação da sociedade civil, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário nos processos de elaboração, monitoramento e avaliação da política externa brasileira, que juntamente com o Poder Executivo deverão assegurar que seja respeitado o princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos.
24. Vivemos um momento importante e delicado hoje no Brasil. Os defensores e defensoras de direitos humanos somos vítimas do rancor e da ação política retrógrada, anti-humana e antidemocrática do ressurgimento de forças ultra-conservadoras que se aproveitam do sentimento de insegurança da população para criminalizar as pessoas e movimentos que defendem que a segurança pública seja um direito democrático e cidadão de todos e todas, que a segurança esteja integrada e relacionada com políticas de respeito e garantia dos direitos humanos, como educação, saúde, acesso à terra e ao trabalho, liberdade e justiça. Deixar que vença o conservadorismo é fazer o Brasil retroceder na construção da democracia, é fazer vencer o racismo, a homofobia, a injustiça, o fundamentalismo.
A valorização e o reconhecimento do papel dos defensores e defensoras dos direitos humanos é condição essencial para o avanço da democracia e da cidadania no Brasil. Temos consciência de nossa responsabilidade, vamos continuar nossa luta!
Reafirmamos como Fernando Pessoa:
“Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena!”
Plenário da X Conferência Nacional de Direitos Humanos, auditório Nereu Ramos, Câmara dos Deputados, 2 de junho de 2006.