Relatório do Cimi: Violência contra indígenas também atinge crianças e adolescentes
No relatório que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou nesta terça-feira, 30 de maio, em Brasília, com dados sobre violações dos direitos dos povos indígenas, diversos itens incluem violências que atingem crianças, adolescentes e jovens. Destaca-se a presença de crianças e adolescentes nos casos de tentativas de assassinatos, assassinatos, violência sexual, suicídios, desassistência à educação escolar indígena, mortes por desnutrição e mortalidade infantil.
Entre os casos de tentativas de assassinato, quatro ocorrências podem ser destacadas: os atentados contra três aldeias inteiras, em Raposa Serra do Sol, em 2005, que atingiram também as crianças que ali viviam. Em 2004, entre as tentativas de assassinato figuram crianças do povo Katukina, no Acre, que foram ameaçados enquanto voltavam, acompanhados dos pais, da cidade para a aldeia, com dinheiro de aposentadoria, gasolina e mantimentos. Em 2003, no Mato Grosso do Sul, na noite em que o cacique Marcos Verón foi assassinado, seu sobrinho de 14 anos foi ferido por tiros. Em 2005, entre as 51 vítimas de tentativas de assassinato no Mato Grosso do Sul, 10 eram crianças ou adolescentes.
Entre os casos de assassinato, há um jovem de 19 anos, de Pernambuco, morto defendendo o cacique Xukuru, que sofreu um atentado em 2003; e um jovem Truká de 17 anos, morto ao lado de seu pai pela polícia de Pernambuco. Em 2004, no Mato Grosso do Sul, 7 das 18 vítimas de assassinato tinham menos de 18 anos, e as mortes repetem circunstâncias de violência comuns naquele estado. As causas da violência no MS são um dos pontos analisados pelo relatório do Cimi.
Em todos os casos em que comunidades inteiras são ameaçadas de morte, as crianças são submetidas a situações de insegurança e medo.
Da mesma forma, quando há casos de atraso nos prazos de demarcação de terras indígenas, as crianças ficam expostas a ações de reintegração de posse, à falta de local para plantio de alimentos, à vida em acampamentos em beiras de estradas. Um dado do relatório que demonstra esta exposição é o de homicídios culposos. Do total de 38 ocorrências levantadas entre janeiro de 2003 e julho de 2005, 30 referem-se a atropelamentos. Entre estes, 11 eram crianças ou adolescentes. Em 2004no Pará, um adolescente do povo Tembé, de 14 anos, sofreu um atentado após ter participado de um grupoi que expulsou madeireiros da terra indígena Alto Rio Guamá, no Pará.
Violências Sexuais
Crianças e adolescentes, na faixa de 6 a 13 anos de idade, são as maiores vítimas da violência sexual contra indígenas nos últimos três anos. De janeiro de 2003 a agosto de 2005, foram computados 41 casos de violência sexual, entre estupros, tentativas de estupro, atentado violento ao pudor e favorecimento da prostituição no Amazonas, Acre, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Rondônia, Roraima e Rio Grande do Sul. Os dados desse período revelam o crescimento desse tipo de agressão contra os povos indígenas.
Em 10 casos registrados em 2003, 60% das vítimas tinham menos de 18 anos, sendo 4 crianças e 2 adolescentes. Dois casos ocorreram em razão de conflito de terra. Um deles aconteceu no Amazonas: um Katukina, de 13 anos, foi vítima de atentado violento ao pudor, dentro da terra indígena, por um pescador da região. O outro caso ocorreu no Mato Grosso do Sul: uma indígena Guarani-Kaiowá foi estuprada por jagunços da fazenda Brasília Sul, por ocasião de um acampamento onde os Guarani tentavam fazer uma retomada de sua terra tradicional. Quatro ocorrências foram objeto de providências, isto é, tiveram registro de queixa em uma delegacia de polícia, e 3 resultaram em prisões.
Em 2004 foram localizadas 18 ocorrências de violência sexual contra indígenas. Houve um aumento de 80% em relação ao ano anterior. Das 19 vítimas, 68% eram menores de idade (12 com idade entre 6 a 13 anos, e uma de 16 anos). Em Mato Grosso do Sul o número de ocorrências dobrou em relação ao ano anterior. Este foi o estado com o maior número de violências, e 60% das vítimas foram crianças com idade entre 6 a 13 anos. Foi também o estado onde duas vítimas foram assassinadas após a violência sexual. Dentre as ocorrências 13 foram objeto de providências (registro de queixa em delegacia e prisões)
De janeiro a agosto de 2005, foram localizadas 13 ocorrências com 17 vítimas, dentre as quais 70% tinham menos de 18 anos (quatro crianças com idades de 8, 9, 12 e 13 anos e 8 adolescentes, com idade de 15 e 16 anos). Mato Grosso do Sul, como nos anos anteriores, foi o estado com maior número de ocorrências de violência sexual contra indígenas, e 85% das vítimas eram menores de idade. Nove ocorrências foram objeto de providências, com registro de queixa na delegacia, e 6 acusados foram presos. Dentre as ocorrências, uma está associada a conflito de terra. Uma indígena Guajajara, de 16 anos, foi estuprada por vários homens, por ocasião de uma invasão na terra indígena Bacurizinho, no Maranhão.
Esses dados revelam que o número de ocorrências vem crescendo a cada ano e as maiores vítimas são as crianças e adolescentes. Das 46 vítimas localizadas neste período, 67% eram menores de idade (20 crianças com idade entre 6 e 13 anos e 11 adolescentes com idade entre 15 e 17 anos). O Mato Grosso do Sul é o estado com maior número de ocorrências de violência sexual contra indígenas e, entre elas, 79% foram cometidas contra menores de idade. Na Paraíba, Paraná e Mato Grosso do Sul há casos de favorecimento da prostituição de indígenas.
Do total das ocorrências, 24 foram estupros e 6 tentativas de estupro. Os agressores são invasores de terra indígena, como jagunços e funcionários de fazendas; um prestador de serviços na Casa do Índio de Rio Branco (AC); parentes das vítimas. Há ainda casos com autoria desconhecida.
Os casos de assédio sexual[1] foram 4 e os envolvidos eram um chefe de posto da Funai (AM), um soldado do exército (RR), um ex-assessor da prefeitura de Boca do Acre (AM) e um auxiliar de enfermagem (RO). Nos três primeiros casos, a conseqüência foi o nascimento de crianças. No caso de Rondônia, a vítima foi uma indígena de 13 anos que acompanhava a avó em tratamento de saúde, na enfermaria do hospital em Guajará Mirim (RO).
Quatro foi o número das ocorrências de atentado violento ao pudor. As vítimas eram menores de idade em três casos. Os agressores foram: um pescador que invadia o lago dentro de terra indígena (AM); um médico do hospital de Boca do Acre (AM), duas crianças foram molestadas por seu pai (MS) e um indígena de 77 anos, que foi assassinado após a violência sexual (MS).
Casos de favorecimento de prostituição foram observados na Paraíba, Paraná e Mato Grosso do Sul. Na Paraíba, o crescimento desordenado do turismo no território indígena favorece a infiltração do crime organizado e o aliciamento de meninas para a exploração sexual. No Paraná, motoristas de caminhão que cruzam a BR-277 induzem as menores indígenas que vendem artesanato na beira da estrada a se prostituir. Em Dourados (MS), uma jovem de 15 anos foi aliciada por traficantes e obrigada a se prostituir para pagar pelas drogas que usa.
Um dado preocupante é a ocorrência de violência sexual praticada por indígenas. Não há registro dessa prática entre índios de pouco contato ou mesmo entre outros de maior tempo de contato mas que vivem em terras distantes dos centros urbanos. A maioria dos casos verificados aconteceu no Mato Grosso do Sul, em terras localizadas próximos aos centros urbanos, onde violências desse tipo acontecem com maior freqüência.
Cerca de 67,5% das ocorrências foram objeto de providências, tendo sido feito registro de queixa na delegacia de polícia com prisão de 13 acusados.
SUICÍDIOS
Em 2005, houve um caso de suicídio praticado por um adolescente viciado em cocaína. No mesmo ano, três casos entraram em averiguação pela Fundação Nacional do Índio, pela Fundação Nacional de Saúde e por autoridades policiais. Eles estão relacionados a duas possíveis situações: uma versão remete à suposta existência de uma seita, sob influência da qual os jovens se encontram em cemitérios durante a noite e teriam feito um pacto de morte; a outra versão aponta que um homem, que se apresentava como pastor, estaria incentivando os jovens a se matarem. Estes 3 casos ocorreram no Amazonas e as vítimas eram todas jovens: um menino de 14 anos, viciado em cocaína; uma menina de 12 anos e outra de 13 anos.
DESASSISTÊNCIA NA ÁREA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
O levantamento sobre a situação da educação escolar indígena aponta para alguns fatores que estão presentes nos três anos avaliados. O principal deles é a falta da implantação de educação diferenciada para os indígenas nas escolas das aldeias. Os dados referentes aos estados do Amazonas, Paraíba, Mato Grosso, Pará, Tocantins, Santa Catarina e Paraná apontam que as aulas que são dadas em português, e não nos idiomas indígenas.
Além de os currículos não serem adaptados à realidade indígena, em Santa Catarina e no Paraná o calendário letivo não contempla as datas ritualísticas, apenas os feriados nacionais, sendo ainda que na escola a língua materna só é usada para conversação, enquanto a alfabetização acontece em português.
É recorrente também o fato de as escolas indígenas possuírem somente até a 4ª série do ensino fundamental. Casos assim foram levantados entre no Pará, no povo Tikuna, no Amazonas. No Tocantins e no Mato Grosso do Sul, aparecem também reivindicaçaões de ensino médio nas aldeias. Os alunos que freqüentam escolas nas cidades sofreram discriminação por alguns professores. No Maranhão, a Secretaria da Educação não atendeu à proposta de reforma do ensino fundamental e implantação do ensino médio em escolas das aldeias.
Um dado relevante contido no levantamento é o de atraso no pagamento dos professores, funcionários, merendeiros, motoristas e assistentes. Nos anos de 2003, 2004 e 2005, este foi um fato presente em Pernambuco. Os funcionários das escolas do Ceará e do Maranhão tiveram seus salários atrasados em 2004 e, no ano de 2005, Bahia e Ceará passaram pelo mesmo problema.
No estado do Amazonas, os professores perdem até 10 dias para ir receber o pagamento na cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Um outro problema diz respeito à estrutura física das escolas. Em 2003, no Ceará, uma escola da terra indígena Pitaguari, do povo Tapeba, foi despejada por falta de pagamento do aluguel, que deveria ser feito pela Secretaria da Educação. Na Paraíba, as escolas que foram construídas permaneceram fechadas. Em Pernambuco, em 2004 e 2005, as condições físicas das escolas eram precárias. Em 2005, no Tocantins faltam escolas e estrutura física para as aulas, merenda, material escolar e transporte, em decorrência de má gestão dos recursos públicos.
A falta da merenda escolar foi relatada em 2003 por comunidades do Ceará e Amazonas. Em Pernambuco, em 2005, houve falta de merenda e, quando os alimentos estavam disponíveis, houve casos em que eles não eram apropriados para a alimentação indígena e geraram problemas de saúde nos estudantes.
Mortalidade infantil
Os dados oficiais sobre mortalidade infantil indígena no Brasil dão conta de que, em 2003, de cada mil crianças nascidas vivas, 56,6 faleciam antes de completar um ano de idade. Em 2004, o índice caiu para 47,71 por mil e, em 2005, voltou a subir para 50,85 por mil.
Os casos apresentados no relatório não representam – e nem pretendem representar – a totalidade de casos de mortes de crianças. O que pretendemos, ao contrário, é agrupar informações publicadas pela imprensa ou conhecidas pelas equipes do Cimi que atuam no interior do país para contribuir na composição de um diagnóstico da situação dos povos indígenas no Brasil.
O levantamento realizado em 2003 sobre mortalidade infantil possui apenas dados referentes ao Estado do Pará, onde ocorreram 11 casos, sendo 3 de infecção respiratória, 1 caso de malária, e 7 por falta de assistência.
Em 2004 foram registrados 156 casos de mortalidade infantil, sendo que 80 crianças Xavante (MT) morreram de febre e tuberculose. Faleceram 63 Yanomami (RR/AM): 13 por pneumonia e 50 por doenças infecciosas, provenientes de alimentação por causa de água contaminada por mercúrio. Foram registrados outros 6 casos no Pará, 4 no Amazonas, 2 no Acre e 1 em Rondônia.
No ano de 2005 foram levantados 42 casos de morte infantil, sendo 16 casos no Amazonas, 11 por pneumonia e 5 por diarréia ; 8 crianças no Mato Grosso do Sul; 7 no Maranhão, sendo 6 por doenças respiratórias e 1 por pneumonia; 6 no Pará, sendo 5 mortes por pneumonia; 2 em São Paulo e em Tocantins, Bahia e Rondônia tendo ocorrido 1 caso em cada estado.
Mortes de crianças indígenas por desnutrição
Foram levantados em 2003 os casos de morte de crianças causadas por desnutrição no Mato Grosso do Sul, entre os Guarani-Kaiowá; no Pará, entre os Xikrin; em Roraima, entre os Yanomami; no Mato Grosso, entre os Kayapó e em Alagoas entre os Geripankó.
As mortes de crianças Guarani-Kaiowá e Geripankó estão diretamente relacionadas à situação de indigência das comunidades. A escassez de terras para plantar, alcoolismo, moradia precária e desemprego também são fatos relevantes no levantamento dos casos ocorridos no Mato Grosso do Sul. Em Alagoas, os fatos agravantes devem-se ao prolongado período de estiagem que destruiu as plantações tradicionais e à falta de água.
Em Roraima, Mato Grosso e Pará o principal motivo da mortalidade infantil por desnutrição é a vulnerabilidade da população, que faz com que a desnutrição venha acompanhada –e seja agravada – por doenças como tuberculose, verminoses e doenças de pele.
Em 2004 foram registrados casos entre os Maxakali, em Minas Gerais; Yanomami, em Amazonas e Roraima; Xikrin, no Pará; e Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Ficaram evidenciados que, além da desnutrição, são fatores agravantes a contaminação da água e a degradação da terra. Importante ressaltar que a devastação da floresta pelo garimpo, bem como a contaminação da água por mercúrio, prejudicaram a pesca e a caça, fontes de alimentação do povo Yanomami.
As informações coletadas em 2005 são referentes aos seguintes estados e povos: Mato Grosso, Xavante; Pará, Munduruku; Mato Grosso do Sul, Guarani-Kaiowá e Terena; e Amazonas, povos do Rio Negro.
Entre os Xavante, um problema frisado foi a dependência em relação às cestas básicas doadas pelo governo que, além de serem entregues com atraso, não são suficientes para a população. Entre os Terena, um caso pontual foi de uma criança internada para ser atendida pelo Sistema Ùnico de Saúde (SUS), após a família ser informada que não teria atendimento da Funasa, pois a família morava na cidade e não na aldeia.