Depoimento missionário: voltei para o mundo yanomami após 15 anos de ausência
Subsídio para um debate, por Pe. Luis Laudato,sdb
Revi as aldeias, onde não estavam mais morando os xamathari. Mudaram os nomes das aldeias e vão mudando as lideranças. As únicas a permanecerem ainda são a do Antão, com um numeroso núcleo de parentescos e a de Davi; ambos velhinhos vivos e atuantes. Pessoalmente teria desejado visitar ambos os velhos. Somente que o meu passo não é mais o mesmo e as distâncias também aumentaram.
Minhas rápidas observações são:
- O processo de envolvimento com o mundo branco está sendo rápido, acelerado e com diferentes presenças governamentais e particulares, que visam diferentes e, às vezes, contrastantes objetivos.
- A diferente presença cria no mundo yanomami: questionamentos, aliciamentos e desafios.
A) Questionamentos
- Os motivos da presença de napë diferentes não somente pela idade e mentalidade, mas especialmente pelo preparo técnico-profissional, pela competência cultural, pela capacidade comunicativa e de aproximação e a convivência interpessoal e comunitária. Aqui entra todo o profundo processo do subconsciente etno-centrista com todo o seu pipocar na ação-comunicação entre brancos e yanomami.
- O testemunho religioso dos brancos das várias organizações presentes no mundo yanomami.
- Os vários apelidos dados e recebidos por parte da comunidade yanomami. No meu conviver com os xamathari recebi vários apelidos: marokoxi (careca), kaë wik (barbudo), napë (branco), xori (cunhado), xoabë (titio), hapemi (papaizinho, padre).
- Freqüentemente os xamathari questionavam minha solidão e o sentido de minha presença prolongada no meio deles.
- Os karawethari questionavam o meu estilo de reza. A capela estava aberta e todas as vezes que se celebrava a missa ou se rezava o breviário tinha liberdade de participar.
- Os karawethari questionavam os recursos técnicos e o uso dos mesmos nas celebrações rituais deles: o gravador, a máquina fotográfica, os papéis cheios de perguntas e especificamente a minha surdez para captar claramente os sons e os tons!
- Os karawethari questionavam minhas ausências e chegaram até ao uso de retaliações: as saídas prolongadas deles, quando eu voltava para a missão.
B) Aliciamentos
- No mundo humano e não somente no mundo yanomami o maior e as vezes o pior aliciamento é o presente. Ele é dado por simpatia, por cálculo, por interesse, por trocas. Aqui se abre toda a ampla, complexa e complicada dinâmica dos matohi (objetos), com o famoso uso e abuso de objetos úteis ou descartáveis.
- O outro aliciamento é o dos recursos tecnológicos da pastoral missionária. Minha impressão é que quanto mais somos isolados maior é a tentação de tecnologia sofisticada e depois fala-se aos outros de pobreza, desprendimento, sacrifícios, etc..
- As promessas que imitam e concorrem despudoradamente com as dos políticos. Lembrem-se que promessa é dívida!
- As fianças são terríveis; as conseqüências no instaurar nas trocas o estilo de dar fiado; é melhor dar logo sem mais cobrar….O que é impossível no mundo comercial-financeiro pragmatista. Então é melhor educar pequenos e grandes ao sentido do justo, honesto e correto valor de cada objeto e de exigir de todos co-responsabilidade com prestação de contas e com equilíbrio no respeito da dignidade humana de todos, adultos e crianças.
- Último aliciamento pouco simpático é o das ameaças. O bendito mal do mundo atual do terrorismo psicológico, econômico, político, cultural e religioso. Gostaria explicitar, mas devo pular por falta de tempo.
C) Desafios
- São inúmeros, tentarei fixar e frisar alguns que parecem óbvios, mas estão sempre presentes. Espero que sejam possivelmente superados. Ser missionário ad gentes é um dom de Deus e uma vocação cultivada e alimentada na vida religiosa. Não se manda para terras e povos ainda não evangelizados por “obediência” mas é por opção pessoal em constante e dinâmico diálogo entre os responsáveis religiosos com os Bispos e com os seus irmãos e irmãs. O superior como o Bispo devem ter um suficiente, normal e objetivo conhecimento da realidade concreta – a concretude de Maritain, de Marcel, de Sartre e de Heidegger.e seus desafios. Situação especial, por exemplo, das missões do Rio Negro.
- Atualização constante e dinâmica dos planos e dos planejamentos, superando o risco de cair no legalismo e do terrorismo ideológico, que nos afastam terrivelmente do vivido, do sofrido e até chegar aos limites da exasperação e do fracasso recíproco e concluir com a clássica, trágica e ilógica expulsão.
- A tentação do reformismo. Nosso esforço ao chegar na missão Sagrada Família foi recolher dos próprios xamathari a ação evangelizadora do padre Antônio Góes. Foi um trabalho paciente e humilde para tentar de ter um sumo cuidado com o passado, sem queimar papéis e etapas; e sobretudo sem imprimir o terrível ritmo da PRESSA. Aprendamos dos últimos papas, que se fecham ou até se prostram no solo da capela particular para rezar e pedir a iluminação do Espírito Santo. Hoje sei de padres ad gentes que não têm tempo para celebrar a missa cotidiana, pula facilmente a oração do breviário e a meditação e chega até a esquecer as orações populares.
- Último desafio dessa conversa é o conhecimento aprofundado e dinâmico da concretude do povo, onde se trabalha. Grande tentação é querer docilidade, disponibilidade, obediência dos que trabalham conosco, no lugar de oferecer aberturas, criatividade e responsabilidade. Com os termos de moda: diálogo, partilha, co-responsabilidade, clareza de planos e planejamentos arrisca-se de dobrar experiências e novidades, porque não possuem o selo de qualificação, de competência, de eficiência. Com o selo de diaconia, de coinonia, ágape, metanoia, corre-se o risco de fechar a busca de calar-se no vivido, sofrido. Hoje com esses nomes tão ricos biblicamente, teologicamente e pastoralmente se corre o risco de percorrer ou abrir o caminho do fundamentalismo evangelizador, arriscando de atropelar as sementes do Verbo encarnado e a ação iluminadora do Espírito Santo em comunhão com o Pai.
Conclusão
Passo inicial é o levantamento sócio-catequético-pastoral nas áreas rionegrinas yanomami, recorrendo ao trabalho de levantamento de fichas e questionários.
No campo educacional, exige-se um profundo e contínuo conhecimento crítico e político da legislação escolar oficial para estudar com pessoas qualificadas, incluindo as lideranças yanomami, e recorrendo a um processo lento, paciente e iluminante e assim elaborar diretrizes e planos de estudo que respeitem e salvaguardem o mundo yanomami em dinâmico envolvimento com o mundo globalizado.
Cultivar e Educar as lideranças nos vários níveis para continuar o processo de aproximação e envolvimento sem descaraterizar ou destruir as raízes étnicas comunitárias e religiosas.
Elaborar um projeto bíblico-mistagógico para facilitar o processo catequético-litúrgico-ministerial para a implantação de uma vivência sacramental que testemunhe a caminhada autenticamente cristã das comunidades que já “receberam” alguns sacramentos, mas que precisa revitalizar, revivificar e torná-los a ser sinais eficazes de graça e de caridade, para que as comunidades vivam e testemunhem o Cristo ressuscitado que morreu sob Pôncio Pilatos mas apareceu com toda a novidade de sua mensagem para anunciar o Reino de Deus ao Povo yanomami e para enviar o Espírito Santo para que esse mesmo povo se torne Templo santo de Deus e Moradia Divina.
(Depoimento no Seminário Salesiano de Animação Missionária, em Quito, 2.5.2006)