02/05/2006

Do encontro das águas nasce o rio-mar da teologia:

Teologia Índia como Teologia Cristã[1]


Paulo Suess


 


Nos apontamentos que seguem, procura-se, a partir do campo religioso, fortalecer o projeto dos povos indígenas, no interior das Igrejas e de sua reflexão teológica. Trata-se, a rigor, de fazer da inculturação recíproca das teologias uma ferramenta de interculturação, de autodeterminação e resistência.


 


1. O objetivo desta reflexão é o fortalecimento do projeto de vida dos povos indígenas. Esse projeto está ameaçado não só pela hegemonia política e econômica do projeto neoliberal, mas também por processos de uma nova colonização cultural no âmbito do mundo globalizado.


 


2. O amplo processo de inculturação da fé, e das expressões dessa fé através de ritos, liturgias e teologias, pode ser compreendido como um processo de resistência contra essa nova colonização, às vezes, propagada em nome de uma mal entendida universalidade ou unidade. A bandeira da Teologia Índia visa à “voz ativa” (Redemptoris missio 54b) dos povos indígenas no campo da teologia através de uma inculturação recíproca entre teologias índias e teologias cristãs. Esse processo pode ser compreendido como uma verdadeira interculturação.


 


3. O antagonismo entre teologias índias e teologias cristãs prejudica o objetivo de ambas as teologias, que é a construção da vida. A Teologia Cristã não seria universal sem a Teologia Índia, e a Teologia Índia não teria o respaldo que merece em razão de sua originalidade. Precisa-se, portanto, verificar se esse antagonismo é artificialmente construído ou se realmente existe incompatibilidade ou inconveniência que impeçam de acolher a Teologia Índia, protagonizada não apenas por alguns peritos, mas pelos respectivos povos que refletem o sentido da fé (cf. Redemptoris missio 54b), no interior do rio-mar da Teologia Cristã.


 


4. A articulação entre as duas teologias, o reconhecimento da Teologia Índia como Teologia Cristã, e o reconhecimento da Teologia Cristã como uma possibilidade da Teologia Índia podem ajudar o projeto dos povos indígenas. A autodeterminação dos povos passa não só pelo campo político, mas também pelo campo da afirmação cultural. Uma dessas afirmações culturais acontece por meio dos diferentes processos de inculturação da fé.


 


5. Aparentemente existem dificuldades e incompatibilidades não tanto entre os projetos indígenas e os projetos cristãos nem entre as Teologias Índias e as Teologias Cristãs, mas entre as ferramentas utilizadas em ambas as teologias. Existem, nas Igrejas Cristãs, questionamentos sobre a correta utilização e a validade de alguns desses instrumentos e sobre a necessidade ou não de sua adaptação, transformação ou substituição.


 


6. Como costurar a unidade teológica na diversidade das expressões culturais? Fala-se, na Teologia Índia, de experiências míticas e históricas de Deus, de ritos e liturgias, de memórias históricas e teologias. Essas ferramentas, que são expressões culturais da experiência de Deus, devem ser avaliadas pela força que têm para o reaquecimento da experiência de Deus e do mistério da presença de Deus entre os povos indígenas como referenciais importantes na luta pela vida.


 


7. Aqui cabem alguns lembretes fundamentais:


 


a) Deus salva cada povo em e através de sua história.


b) História e cultura – também a cultura na qual o Evangelho é apresentado – são ambivalentes: atravessadas por estruturas de pecado (cf. Santo Domingo 13, 243, 245).


c) A história e o projeto histórico dos povos indígenas, muitas vezes, são codificados em mitos e vivificados (e nem sempre totalmente decodificados) em ritos, liturgias e celebrações.


d) Os mitos são expressões históricas primordiais de cada povo que reproduzem culturalmente a sua experiência de Deus. Com suas imagens e linguagens simbólicas, podem ser considerados verdadeiras teologias.


e) Nos mitos se reflete a visão consistente da ordem do universo; se reflete a afirmação da vida no mundo.[2] Eles respaldam uma ordem moral nas crises individuais e coletivas da vida e costuram laços sociais. Os mitos são guias que ajudam a passar por medos e a delimitar os desejos.


f) A Teologia Cristã não considera mais o mito como antítese do logos. Reconhece expressões míticas, também no Novo Testamento, como afirmações específicas de verdades cuja leitura é historicamente situada. As ciências – pode-se pensar em nomes como Galileu, Darwin e Freud – obrigaram a teologia matizar, desmistificaram e reler muitas das suas afirmações anteriores. Muitas certezas pré-modernas perderam a sua razão de ser.


 


8. Quando os povos indígenas foram incorporados às Igrejas, as expressões de sua experiência de Deus foram, muitas vezes, substituídas, suprimidas ou cooptadas por uma visão não só salvífica, mas também culturalmente exclusivista. Os missionários disseram que nas religiões não-cristãs não existe salvação (cf., por exemplo, as Cartas de S. Francisco Xavier[3]).


 


9. Hoje, essa postura pode se considerar superada (cf. Lumen gentium 16, Ad gentes 7a). A maioria da humanidade vive em religiões não-cristãs. Ao afirmar que Deus é um Deus da vida e que a sua vontade salvífica é universal (cf. 1Tm 2,4), pode-se dizer que a maioria da humanidade se salva através de religiões não-cristãs.


 


10. A vontade salvífica de Deus se manifestou em Jesus Cristo, que a Igreja considera o salvador universal da humanidade. Seguidores de outras religiões são, segundo os ensinamentos da Igreja Católica, salvos “em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa relação com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela (…). Essa graça (…) é comunicada pelo Espírito Santo: ela permite a cada um alcançar a salvação, com a sua livre colaboração” (Redemtoris missio 10a). Para não cair num triteísmo, que separa a divindade de Deus Pai da divindade do Filho e do Espírito Santo, podemos afirmar que tudo o que é feito por Jesus Cristo e pelo Espírito Santo é feito por Deus. A graça salvífica de Deus atua sobre toda a humanidade, portanto, não somente sobre os cristãos, mas também no interior das religiões e fora delas.


 


11. Cada cultura produziu, originalmente, a sua própria religião. A maior parte dos/das indígenas presentes no V Encontro Continental da Teologia Índia se considera cristã. Nos séculos que se passaram, as suas culturas entraram numa negociação com o cristianismo. Cederam em alguns pontos, em outros não. Muitas vezes praticam a convivência entre a sua religião original e o cristianismo, como praticam a convivência entre a medicina tradicional e a moderna. Existem situações que os faz optar por uma (a via tradicional), e existem outras oportunidades que os aconselha a escolher a outra (a via moderna). Ao se considerarem indígenas e cristãos, esses povos indígenas não vêem a necessidade para uma dupla pertença. Querem ser indígenas cristãos. Querem fazer valer sua experiência indígena de Deus, codificada em seus mitos e ritos, como cristãos.


 


12. Para viabilizar essa “confluência”, essa unidade indígena cristã, precisa-se distinguir entre a experiência de Deus que é essencial, e a expressão dessa experiência, que é cultural. Vejamos o que aconteceu na Páscoa com os discípulos de Jesus. No início está a experiência personal da ressurreição. Essa experiência é pré-cultural. Ela encontra a sua expressão cultural contextualizada em fórmulas de um Credo (1Co 6,14: “Deus ressuscitou Jesus”), em narrativas e conceitualizações teológicas. No decorrer dos anos, a experiência da fé caminha de sua expressão oral até uma fixação escrita. Como os diferentes evangelhos mostram, a experiência pré-cultural é transmitida em tradições culturais e contextos sociais diferentes. Encontra sua expressão, tradução e tradição em diferentes linguagens e línguas e até em narrativas que modificam os fatos (ver, por exemplo, o fato e a data de Pentecostes nos diferentes evangelhos!).


 


13. No cristianismo, as expressões culturais da fé foram cedo canonizadas e normatizadas na cultura de Israel, na cultura grega e latina: a partir da cultura dominante que abrigou o cristianismo, ritos, liturgias, ministérios, organização eclesial e teologias foram, em nome de uma suposta unidade, uniformizados. A helenização e a romanização do cristianismo produziram assimilações culturais que nem sempre transmitiram corretamente o conteúdo do Evangelho.


 


14. A hegemonia cultural da época pós-constantina (imperial) e da colonização produziu uma hegemonia cultural sobre os povos posteriormente integrados ao cristianismo. Ela se esqueceu de que


 


a) as expressões religiosas (mitos, ritos, liturgias, símbolos, narrativas, parábolas) são culturais;


b) nenhuma cultura é normativa para a outra; impor uma cultura como a cultura é alienante e incompatível com a atitude contextual de Jesus;


c) entre as múltiplas culturas não existe uma cultura especificamente evangélica, católica ou cristã.


 


15. Também as teologias são expressões religiosas culturais; as teologias são culturais em sua linguagem (conceitual, simbólica, mítica, corporal). A definição da Santíssima Trindade só pode ser compreendida no âmbito de um contexto cultural e histórico (Jesus “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”); afirmar que existe somente uma teologia válida seria afirmar que existe só uma cultura válida para expressar a reflexão teológica.


 


16. Emergem novamente alguns questionamentos. Pode-se cambiar a roupagem cultural  sem mudar o conteúdo (significado, sentido)? Pode-se expressar o mesmo significado com signos diferentes? Pode-se expressar o conteúdo teológico normativo da fé em roupagens teológicas diferentes?


Sim, porque a essência das culturas indígenas não é contra a normatividade da fé cristã.


As expressões, os signos (as teologias), são polissêmicos, quer dizer, têm a possibilidade de expressar o verdadeiro e o falso por múltiplas maneiras. A compreensão das expressões religiosas (dos signos) depende da interpretação e da leitura do respectivo “leitor”. Em teologias formalmente reconhecidas e nas não-reconhecidas existe sempre a possibilidade de uma compreensão correta ou não. Por isso, optamos por uma leitura coletiva (Igreja Povo de Deus) que ajuda a evitar erros da leitura individual. Segundo os ensinamentos da Igreja, no ato da fé, o conjunto do povo de Deus não comete erros que atingem a essência (normatividade) dessa fé. A Teologia Índia é a expressão cultural de uma experiência pré-cultural de Deus. Expressões culturais não devem ser interpretadas em chave verdadeiro/falso, mas em chave igual/diferente. O diferente, porém, é a condição da identidade de ambos.


 


17. O que falamos de Deus, também em nossos relatos e nas narrativas sobre a experiência de Deus, falamos com palavras analógicas. Todas as expressões e conceitualizações são aproximações ao mistério cujas diferenças, segundo o IV Concílio Laterano, são maiores que suas semelhanças.[4] As afirmações teológicas são sempre também negações. “Reino de Deus” e “pachacuti” são expressões que apontam, em linguagem mítica, poética ou simbólica, para a negação da ordem sistêmica dominante. A analogia é uma estrutura fundamental do conhecimento humano que sabe que os mistérios de Deus cabem, às vezes, melhor no silêncio do que nas palavras. Eis o mistério da fé!


 


18. Voltemos para a Teologia Índia como expressão de uma experiência de fé e como ferramenta para fortalecer o projeto de vida dos povos indígenas! Qual é a prática histórica que a Teologia Índia sustenta? Nós nos salvamos na religião da JUSTIÇA MAIOR e do AMOR MAIOR, na religião samaritana, que nos cobra não só a afirmação de Deus, mas a experiência de Deus no pequeno, na vítima, no pobre e excluído.


 


19. O diálogo entre Teologia Índia cristã e Teologia Cristã é um diálogo sobre a validade e o reconhecimento recíproco das expressões culturais dos pequenos e sobre a parcialidade de todas as culturas, como linguagens e projetos humanos, na expressão dos mistérios de Deus. Não existe uma cultura na qual se possa expressar a totalidade do mistério divino.


 


20. Falamos de Deus a partir dos nossos silêncios, da nossa pobreza (cultural e humana), da nossa consciência da distância entre criador e criatura; falamos do Deus, que se revela nos pequenos e na pobreza. A ortodoxia cristã se reveste não de eficácia, mas de sinais de pobreza do próprio Deus: kénose e encarnação, presépio e cruz, pão eucarístico e os pobres de cada época. “A pobreza é a verdadeira aparição divina da verdade”,[5] escreveu o então Cardeal Ratzinger, e, a partir da teologia latino-americana, acrescentaríamos: a pobreza na sua concretude dos pobres. Lugar da epifania de Deus, por excelência, são eles os crucificados da história, os que caíram nas mãos dos ladrões, os irmãos e as irmãs menores de Jesus que souberam, das adversidades da vida, construir oportunidades do Reino. Neles, a Igreja reconhece “a imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (Lumen gentium 8c). A essência da ortodoxia cristã está, além da pobreza, do despojamento e dos pobres, na gratuidade (Ad gentes 2b: “chamou-nos gratuitamente à comunhão de Sua vida e de Sua glória”), na comunidade (Trindade) e na fraternidade (reconciliação universal em Cristo). Pobreza, gratuidade como reciprocidade, comunidade e fraternidade são sinais transversais dos povos indígenas das Américas. A pobreza dos pequenos, sua gratuidade, comunidade e fraternidade, cria uma proximidade particular com Deus. Nessa proximidade está a sua força espiritual, sua habilidade política e sua vocação histórico-eclesial.


 


(Teologia Índia como Teologia Cristã cI – 24.4.2006)


 






[1] Apontamentos apresentados no V Encontro Continental de Teologia Índia (“A força dos pequenos, vida para o mundo!”), organizado pela Articulação Ecumênica Latino-americana de Pastoral Indígena/AELAPI em Manaus, de 21 a 26 de abril de 2006.



[2] Cf. CAMPBELL, Joseph. Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo: Landy, 2002, p. 27-52.



[3] ZUBILLAGA, Felix, Cartas y exritos de San Francisco Javier. Madrid: BAC, 1968.



[4] Pois entre o criador e a criatura não se pode observar um grau de semelhança que a diferença entre ambos não seja ainda maior [Quia inter creatorem et creaturam non potest tanta similitudo notari, quin inter eos maior sit dissimilitudo notanda]. In: DENZINGER-SCHÖNMETZER, Enchiridion symbolorum. Definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, n. 806.



[5] RATZINGER, Joseph Kardinal. Der Dialog der Religionen und das jüdisch-christliche Verhältnis, in: IDEM, Die Vielfalt der Religionen und der Eine Bund. 3ª ed., Bad Tölz: Urfeld, 2003, p. 93-121, aqui 116.

Fonte: Paulo Suess
Share this: