O outro lado da história
‘Meu povo queria apenas a paz,
um pedaço de chão para sobreviver.
Hoje estão assustados, humilhados pela sociedade
por esta não conhecer a verdade”(Antonio J. Rodrigues – Guarani , 18 anos)
A caminho de Dourados iam se projetando, como um reprise permanente, o cenário de violência que envolve os Kaiowá Guarani da região do cone sul do estado de Mato Grosso do Sul: assassinatos, suicídios, expulsões, homicídios, mortes por fome e desnutrição, alcoolismo, droga, mortes e ferimentos por atropelamento, estupros. No jornal, vemos as notícias do suicídio de um índio de 26 anos e outro da mesma idade estirado no asfalto, morto por atropelamento. Ao mesmo tempo, podia-se ler uma declaração do governador do Estado qualificando de “ridícula” a ação dos índios de Nhanderu Marangatu, que no Dia do Índio fecharam a estrada BR 384, à beira da qual estão vivendo. Enfim, uma conjuntura de extrema violência conspirando contra a vida dos índios.
Estado de comoção antiindígena
Uma rápida visita a acampamentos Kaiowá Guarani da região e algumas aldeias, inclusive com uma das irmãs de Carlitos, uma preocupação comum: temor pela vida do cacique Carlitos preso, juntamente com outros oito membros da aldeia Passo Piraju, no presídio de segurança máxima Harry Amorim Costa. A incomunicabilidade em que estão os índios aumenta ainda mais os temores. Uma das lideranças que esteve na comunidade para se inteirar dos fatos, ocasião em que chegou um grupo da polícia civil, tendo seu coordenador afirmado diante dos índios que caso Carlitos passasse por aí ele iria “peneirá-lo”.
A versão veiculada pelas autoridades policiais e políticas, falando de emboscada e barbarismo dos índios, fez com que as manifestações de repulsa e ódio aos índios aumentassem aceleradamente, transformando-se num estado de comoção antiindígena.
Enquanto isso
A cidade sedia o 2o. Simpósio Internacional de Religiosidade, Religiões e Cultura. Não dá para refletir sobre o tema – lembrando a importante experiência dos jesuítas junto aos Guarani, no século 18, presentes inclusive na região com as reduções de Itatim – sem ser envolvido pelo clima de hostilidade , temores e ameaças que pesam sobre os Guarani presos na cidade (fala-se que existe mais de 50 Guarani presos na região), acampados na beira da estrada, ou confinados em espaços mínimos, como é o caso da Terra Indígena de Dourados, a maior concentração e favelização indígena do país.
Uma chiadeira geral em função de um novo foco de aftosa identificado no município de Japorã ameaça o bom desempenho do boi na economia regional. Não faltam os choramingos em função da quebra da safra da soja agravada com a queda do preço da mesma no mercado internacional. Fala-se em mais de dois milhões de toneladas estocadas aguardando o melhora do preço. Nas andanças pela vastidão da região o que se vê mesmo é o verde do milho, de todos os tamanhos, desde o recém nascido ao que já está pendoando, o já espigado ou já quase no ponto de colheita. O bom preço do milho estimulou o plantio massivo desse alimento indígena hoje sob o controle das multinacionais (sementes) e do agronegócio (produtores).
Passos e compassos da justiça
Outra questão que chama atenção é a agilidade com tem sido concluído o inquérito e pronunciado a denúncia dos índios, no caso das mortes de policiais no Passo Piraju. Hoje mesmo se realiza a audiência de interrogatório de quatro dos índios presos. Na fase do inquérito, foi negado aos índios o direito de serem ouvidos na sua própria língua, conforme lhes garante a Constituição. Isso será uma vez mais peticionado. Por que no caso do assassinato do indígena Dorvalino e de tantas outras lideranças indígenas assassinadas não se viu a mesma agilidade da justiça? É a pergunta que se fazem as comunidades Guarani. E também não entendem porque todos os matadores de índios estão soltos, enquanto seus parentes estão presos e incomunicáveis.
O outro lado da história
É importante ressaltar que da parte dos Kaiowá Guarani, entendendo que a versão mais difundida sobre os fatos está marcada por essa história de hostilidade e ódio ao seu povo, foram à comunidade para ouvi-la. Fizeram relatos demonstrando uma realidade dos acontecimentos bem diversos dos veiculados pela imprensa. Mostraram o contexto de medo e ameaças, além de violências que a comunidade já sofreu nesse processo de retorno ao seu tekoha, sua terra tradicional. E só esse estado de apreensão, medo e ameaças tornam-se compreensíveis a violência e as mortes ocorridas.
Vejamos alguns dos depoimentos registrados e escritos por estudantes indígenas que estiveram na comunidade de Porto Cambira, dia 13 de abril
“A imprensa mostrou, na última semana, que os acusados se entregaram aos policiais confessando o crime, mas, não contaram e nem refletiram a maneira que os policiais podem ter usado para alcançar esta atitude com os 9 indígenas que ainda estão presos…
Isso para nós é inaceitável, mostrar apenas uma versão e não ver o outro lado da história, não respeitarem um povo que sofre. Que sofre com o preconceito, com a falta de incentivo, mas que por outro lado luta. Luta pela terra, pelos seus direitos, pela sobrevivência”(Alcir R.)
“O meu povo estava vivendo em paz, plantando o seu alimento, e agora depois do acontecido precisam buscar ajuda para esclarecer toda situação, pois certas pessoas que tem o poder nas mãos, pessoas que na verdade teriam que defender os índios, estão do lado do poder e não fazem o que teria que ser feito”(Antonio João Rodrigues – Guarani, 18 anos)
“Agora como fica essa situação? Vai ficar como se os índios fossem os únicos culpados? Tudo bem que eles erraram, mas e os policiais que chegaram atirando, ofendendo os índios, vão sair como heróis?”(Micheli Alves Machado)
No dia 1 de abril, logo após o conflito que lamentavelmente resultou na morte de dois policiais o cacique Leonardo deu um depoimento no qual diz “Esses 3 policiais vieram sem viatura, vindo sem uniforme, com short, quando entrou aqui já xingou a nós, atacou em armas aquele homem, policiais atiraram próprio seu companheiro, fui atingi na perna, falaram que foram os índios, não é não….E também nós índios não vamos sair daqui, nós vamos morre aqui nessa terra, se nós morre, tem nossa geração como filho para luta de novo essa terra”(Leonardo , 1/04/06)
Egon Heck – Cimi MS
Dourados, 26 de abril de 2006