17/04/2006

Carta dos Movimentos Sociais de MS em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

“Contra a discriminação e a violência; em favor da luta pela terra”


 


A Coordenação dos Movimentos Sociais do Mato Grosso do Sul vem a público se manifestar sobre o episódio ocorrido no último dia 01 de abril no município de Dourados, no acampamento indígena Porto Cambira, que resultou na morte de dois policiais civis do Estado.


 


Lamentavelmente, referido incidente tem sido constantemente noticiado de forma parcial e sem qualquer ponderação por parte da imprensa, fundamentada por declarações de alguns segmentos da Polícia Civil, fazendeiros e políticos do agronegócio e autoridades governamentais.


 


Com as recentes veiculações, o que se tem feito pela imprensa e por essas pessoas são verdadeiros “julgamentos sumários” sem nenhum levantamento contundente do que de fato ocorreu naquela ocasião de modo a se chegar a uma conclusão justa, amparada pela legalidade.


 


Mais grave ainda, é que com um fato isolado, completamente atípico no que tange ao comportamento das populações Kaiowá Guarani, tem-se criado, irresponsavelmente, um sentimento generalizado de repúdio e de discriminação na sociedade que, com certeza, irá gerar mais animosidade contra os indígenas do MS, que já possuem um quadro notório de violências contra suas comunidades, agravado pela miséria e principalmente pela falta de terra.


 


Para melhor compreensão dos fatos destacamos às versões que são relatadas pelos indígenas, completamente diversas das apresentadas pela Policia, onde vale destacar os relatos apurados pela FUNAI e que foram registrados em documentos oficias do órgão que nos chegou ao conhecimento de que:


 


“Aconteceu o ataque por volta das 16h00, por 03 pessoas, que não se identificaram, foram entrando até o fundo da aldeia, fizeram cavalinho de pau e saíram atirando. O primeiro tiro foi em cima da casa do homem chamado Pito, o segundo tiro foi disparado na frente de um barraco que estava sendo construído, acertando de raspão na ponta do dedo do pé do indígena de nome Márcio. Na saída ameaçaram uma mulher chamada Sandra e, seguiram rumo ao Porto Cambira, retornando por volta das 16h15 e quando passaram a ponte do rio Dourados, começaram a atirar novamente, se aproximando mais dos índios. Os índios pediram calma, mas os policiais continuaram atirando para cima. Quando estes se aproximaram mais, o que estava ao lado do motorista puxou uma arma maior que apontou sobre os índios; no momento em que engatilhou a arma, tinha um índio mais próximo deles e pulou sobre a arma bem no momento que ele foi puxar o gatilho, um dos índios ao apertar o cano da arma para baixo acabou disparando e acertando no outro, assim acontecendo o conflito”.


 


E ainda, em recente visita de lideranças indígenas Guarani-Kaiowá de aldeias pertencentes ao núcleo da FUNAI de Dourados-MS em Porto Cambira, membros da Comissão de Direitos Indígenas Guarani-Kaiowá registraram relatos em documento público encaminhado para a sociedade e para o Poder Público, onde denunciam abusos cometidos por policiais que constantemente ameaçam a comunidade Guarani de Passo Pirajú onde se encontram em sua grande maioria mulheres e crianças:


 


“Aos quatro dia do mês de abril de 2006, às três horas da tarde, as Lideranças Indígenas chegaram na Terra indígena Passo Piraju, que fica no Porto Cambira, município de Dourados-MS. Estavam reunidos nesta aldeia juntamente com o povo daquela aldeia, quando os policiais civis chegaram no local e sem nenhuma consideração e respeito invadiram as casas, fortemente armados com revolveres, pistolas e metralhadoras. Perguntaram pelo líder Carlito de Oliveira e queriam prendê-lo. Estiveram ali por mais de uma hora, alguns deles adentraram na mata, logo depois foram feitos vários disparos pelos policiais dentro da mata, onde prenderam um rapaz desconhecido que não era índio e nem morador da aldeia. Este foi brutalmente espancado e preso. Os policiais usaram três veículos oficiais, placa HQH-3527 e dois descaracterizados. Disseram ainda que caso encontrasse o Cacique Carlito de Oliveira iria peneirá-lo. Um dos policiais disse que se o Cacique Carlito saísse na frente dele iria matá-lo. A Comissão de Lideranças Indígena entenderam que foi abuso de autoridade dos policiais civis, por que não apresentaram nenhum mandado judicial. Os policiais foram agressivos mesmo na presença da Operação Sucuri (FUNAI) e da Imprensa (TV Sulamérica). Quando as Lideranças da Comissão de Mato Grosso do Sul se despediam das mulheres, as crianças e os idosos choraram implorando para que permanecêssemos com eles no local, para que pudesse ficar mais tranqüilos e poder dormir dentro das casas, já que desde o conflito estão dormindo na mata, todos estão sem cozinhar com medo de acender o fogo e estão dando somente cana para as crianças, onde há crianças com apenas dez dias de vida. Também disseram que a todo momento os policiais passam na estrada em frente a aldeia”.


 


No que tange às fatalidades, se trata de uma ocorrência lamentável, mas que no decorrer das investigações deverão ser levadas em consideração os relatos dos indígenas e as circunstâncias em que ocorreram as fatalidades, com todas as cautelas possíveis para aferição de eventuais responsabilidades.


 


É notório pela sociedade que em face de muitos massacres de lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul, os Guarani jamais se utilizaram de qualquer violência contra a população não-indígena. Mas isso não foi repercutido pela imprensa regional.


 


Esperando que não ocorram tragédias semelhantes no futuro, deve-se refletir que o clima na aldeia de Porto Cambira (Passo Piraju) é de muita tensão com constates ameaças de fazendeiros e pistoleiros, portanto, não se pode deixar de analisar que o incidente poderia ter sido evitado pelos seguintes motivos:


 


Em 18.02.2006, foi composto Grupo de Trabalho de Segurança Pública por representantes dos Órgãos de Segurança Pública do Estado, FUNAI, FUNASA, Prefeitura Municipal de Dourados e do Ministério Público Federal, onde ficou acordado que quaisquer diligências policiais que tivessem de ser realizadas dentro de áreas de conflito ocupadas por indígenas, seriam realizadas apenas com o acompanhamento da FUNAI, por meio da Operação Sucuri Deve-se observar que houve a desconsideração, de forma imprudente, por parte dos policiais de tal determinação acordada entre os seus superiores.


 


Em face disso se torna intolerável, inclusive passível de punições, as veiculações que transmitem uma imagem negativa dos índios, invocando-os como se fossem selvagens e truculentos e que matam por motivos banais, afirmações totalmente desconexas da realidade e que somente alimentam o ódio e a discórdia na sociedade.


 


Repudiamos as declarações de autoridades governamentais criticando a atuação do Ministério Público Federal, inclusive havendo manifestações no sentido de “solicitarem” o afastamento de membros da Procuradoria de Dourados. Demonstram completo desconhecimento das atribuições da instituição, que possui total independência e autonomia, a inamovibilidade de seus membros e principalmente, o dever de defender os direitos e interesses das populações indígenas conforme o inciso V do artigo 129 da Constituição Federal.


 


O que esperamos é que seja imediatamente providenciada o deslocamento da competência das investigações para a Polícia Federal, para que haja isenção nos trabalhos, tendo em vista a clara suspeição da Polícia Civil, cujos membros estão emotivamente ligados com o caso, possuindo interesse coorporativo no deslinde da causa em seu favor, em razão mesmo das declarações de Delegados de Polícia e de recentes protestos de policiais em Dourados.


 


Essa solução encontra pleno amparo na legislação vigente, em face do que dispõe os incisos I, III e IV do artigo 109, combinado com os incisos II e V do artigo 129 da Constituição Federal.


 


Por fim, outra preocupação que afeta os Movimentos Sócias do Mato Grosso do Sul são os interesses dos grupos anti-indígenas que, aproveitando de tragédias como essas, tentam deslegitimar e desmoralizar os povos indígenas em suas lutas pela conquista de seus direitos.


 


A sociedade deve se contrapor a esses grupos compreendendo que enquanto não se resolver definitivamente a questão das demarcações das terras indígenas, proporcionando para essas populações condições dignas de sobreviverem, acabando com a miséria que assola suas comunidades, os conflitos continuarão, onde os indígenas acabam sendo vitimados na grande maioria das vezes.


 


Que o Estado brasileiro passe a dar a devida importância para esse quadro do Mato Grosso do Sul e tome as providencias necessárias em caráter de urgência para a demarcação das terras. Episódios como esses demonstram em que situação gravíssima está alcançando com o descaso do Poder Público, principalmente pelo Governo Federal e Judiciário Federal.


 


Que as comoções precipitadas sem os devido esclarecimentos dos fatos não gerem mais matanças de comunidades indígenas. Hoje, os sobreviventes desses massacres esperam do Estado e da sociedade brasileira respeito a seus direitos para que possam viver em paz e com dignidade.


 


Para que não tenhamos que conviver novamente com esse quadro de violências, será fundamental que sejam promovidas políticas públicas para rever a estrutura fundiária do estado visando garantir as terras para os povos indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais sem-terra.


 


Campo Grande-MS, 11 de abril de 2006.


 

Fonte: Coordenação dos Movimentos Sociais do Mato Grosso do Sul
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