Carta Aberta de antropólogos sobre situação no Mato Grosso do Sul
O Cordeiro matava a sede em um regato. Avista um Lobo em forçado jejum, que lhe diz irritado: “que ousadia turvar a água que bebo!”. “Estou matando a sede a jusante, impossível cometer tal acinte”, diz o Cordeiro. “Turvas a água e falaste mal de mim ano passado”, retruca o lobo. “Como”, pergunta o Cordeiro, “se não era nascido?”. “Então foi teu irmão”. “Perdoe-me, mas não tenho irmãos!” Irritado o Lobo encerra a conversa: “Então foi algum parente; cordeiros, cães, pastores, não me poupam”. Esquarteja e come o Cordeiro.
La Fontaine (versão adaptada).
Prezados,
Queremos fazer uma breve análise sobre a grave situação dos aproximadamente 40.000 indivíduos guarani-kaiowa e guarani-ñandéva do extremo sul de Mato Grosso do Sul.
O sinistro episódio do dia 01.04.2006 no Passo Piraju (Dourados, MS), além de se apresentar com toda sua dramaticidade, permitiu que determinados preconceitos e estigmas sobre os índios se manifestassem com extrema virulência. A imediata caracterização do evento por parte da Polícia Civil de que os Guarani-Kaiowa teriam tecido uma emboscada aos seus três agentes foi rapidamente divulgada pela mídia local como sendo “a verdade”, e não simplesmente uma hipótese preliminar, como de fato é.
A imprensa e a rádio não perderam a oportunidade de desenhar uma imagem dos índios como selvagens e truculentos, beirando os limites da desumanidade; as manchetes apontam que estes armam emboscadas e matam por motivo vil. Há aqui, antes de tudo, incitação ao preconceito e ao ódio – o que acaba por colocar em risco indistintamente toda a população guarani, inclusive as que não têm qualquer ligação com o episódio.
Cabe ressaltar aqui o modo de proceder dos kaiowa e dos ñandéva contemporaneamente. Estes têm demonstrado que priorizam a via diplomática a arroubos belicosos diante das muitas ocasiões em que são agredidos pelo “branco” – o que se manifesta em espectro amplo, que vai do racismo cotidiano (em ônibus intermunicipais, nos supermercados, nas lojas dascidades) até a freqüente presença de jagunços e seguranças particulares (que, observe-se, muitas vezes são policiais atuando em “bicos” fora do emprego oficial), os quais atuam rondando e atirando para o ar nas proximidades de áreas de conflito.
Uma variável importante deve ser considerada na análise do episódio.
Recentemente, em reunião no Gabinete do Chefe de Governo da Prefeitura de Dourados, com a presença das autoridades de segurança locais (inclusive a Polícia Civil e a FUNAI), foi encaminhada a decisão de que qualquer intervenção policial em comunidades indígenas não ocorreria sem se acionar prioritariamente a FUNAI. A iniciativa policial no Passo Piraju se furtou a esta determinação. A Polícia Federal, por sua vez, teve sua atuação marcada pela falta de empenho. Por fim, o argumento da Polícia Civil de que não estava em questão uma terra indígena oficial visa ofuscar o fato notório da presença no local de uma comunidade indígena, em área de conflito, com permanência autorizada (através da intervenção do Ministério Público Federal) pelo 3º Tribunal Federal de São Paulo, desde 2004.
Embora se espere da prática de um jornalismo democrático que investigue com acuidade os fatos para divulgá-los com responsabilidade, contrapondo fielmente versões das partes envolvidas de modo a que a opinião pública possa construir pensamento isento, não é o que se constata na mídia local diante do caso da morte dos dois policiais. Paradoxalmente ou estranhamente a postura dessa mídia foi oposta quando do homicídio de Dorvalino Rocha.
Este índio kaiowa, das terras homologadas do Ñande Ru Marangatu (Antonio João, MS), foi assassinado a queima roupa em dezembro passado por um segurança privado a serviço de fazendeiros que se opõem à regularização da terra em benefício dos índios. A mídia aqui evitou emitir opinião unilateral e precipitada, divulgando simultaneamente a versão dos indígenas e da empregadora do autor do disparo.
Constata-se que na divulgação de notícias e formação de opinião, os meios de comunicação locais podem sopesar diferentemente as informações e assim alimentar preconceitos latentes na opinião pública; policiais, comerciantes, estudantes universitários e cidadãos refletem esse proceder e reproduzem informações da mídia colhidas junto aos produtores rurais. Quando segmentos da população regional procuram compreender os índios, seu estilo de vida, suas exigências econômicas, políticas e simbólicas, não o fazem a partir de uma aproximação minimamente científica e pautada em algum rigor descritivo e analítico, mas a partir de um corpus de informações e de valores, que são antíteses da produção erudita: o senso comum.
Não constitui novidade que o senso comum seja responsável por grande parte das ações e das opiniões manifestadas na vida social pelo cidadão comum.
Tampouco é possível pensar, ingenuamente, que essas pessoas possam se transformar em cientistas sociais, chegando a uma visão relativística da vida humana, compreendendo em detalhes a visão do mundo dos índios e suas características organizativas. Ademais, não surpreende o fato de que, com base em seus interesses econômicos e de poder local, os produtores rurais, procurem por todos os meios impedir que os ditames constitucionais sejam cumpridos. Uma analise sumária é suficiente para mostrar que o senso comum que vigora no Mato Grosso do Sul é amplamente construído a partir de uma ideologia ruralista. Nesse sentido, não há dúvida alguma sobre o fato de que para a maioria da população sul mato-grossense os índios são um obstáculo ao progresso – identificado este nos empreendimentos do agronegócio.
Como antropólogos estamos, portanto, acostumados a lidar com categorias e representações morais nativas – e o senso comum da região em pauta não constitui uma exceção. Há, porém que se constatar que nestes últimos anos o nível dos conflitos locais entre fazendeiros e índios tem-se acirrado, os primeiros procurando cada vez mais se articular para que sua própria política seja mais eficiente, enquanto que os segundos multiplicam as reivindicações para recuperar seus territórios tradicionais. Nesse processo, cujos desfechos podem ser dramáticos (como o episódio de Passo Piraju ou de Ñande Ru Marangatu), o que parece surpreendente é o papel do Estado, a falta de um posicionamento claro, enérgico e ético, para enfrentar a situação e dar solução ao problema fundiário local, respeitando a Constituição Federal. (Observe-se que para este propósito não faltou assessoria cientifica qualificada para delinear propostas apropriadas).
Muito embora há décadas tenha sido aclarado (por nós e por outros colegas) aos responsáveis pela condução da política indigenisa oficial, sobre a importância de uma ação indigenista específica, pensada e planejada, priorizando a atenção sobre a produção de alimentos e as questões fundiárias, não houve reações compatíveis às dimensões do problema por parte do Estado brasileiro.
Nos últimos tempos, como dito, a situação vem se agravando, e, de 2003 para cá, isso tem se dado em progressão geométrica, uma das razões que nos levam aqui a apresentar algumas informações e análises, no intuito de contribuir para um mais acurado entendimento da realidade local.
Cabe destacar o fato de que o problema fundiário que embasa conflitos e crises permanentes foi detectado no final da década de 1970, quando os guarani-ñandéva e guarani-kaiowa do Mato Grosso do Sul iniciaram um movimento, organizado a seu modo, de recuperar parte das terras de ocupação tradicional tomadas pela colonização da região, mais intensa a partir dos anos 1960 e sôfrega a partir do milagre brasileiro dos anos 1970. O cenário regional criado nesse processo foi determinado a partir de interesses hegemônicos relacionados ao propalado agronegócio. Como revelado em inúmeros relatórios de Identificação de Terras guarani no estado, observadores atentos da vida indígena têm apontado o fato de que nas últimas três décadas os organismos de Estado vêm, de um modo ou de outro, contribuindo para a reprodução de uma sistemática desapropriação de terras tradicionais guarani que se transformaram em fazendas e empresas agro-pecuárias, resultando na superpopulação das áreas reservadas pelo SPI no início do século passado e na ampliação de conflitos e mortes por violência e fome, dada a impossibilidade desse povo agricultor ter acesso à terra.
Observando o desempenho da Fundação Nacional do Índio, constata-se que por três ou quatro gestões se divulgou que os guarani do país e em especial os do Mato Grosso do Sul teriam atenção prioritária, reconhecendo-se formalmente, assim, a existência do problema. Da última vez, em 2003, o anúncio foi feito na presença de número representativo de índios em assembléia na Terra Indígena Jaguapire (Tacuru/ MS), organizada para receber o seu Presidente. Não houve, contudo, qualquer ação efetiva na continuidade.
A questão fundiária, ponto primordial na cadeia operativa dos problemas, se manifesta de modo flagrante. As ações dos organismos de Estado têm sido dirigidas no sentido de impedir a solução da dívida histórica para com os povos indígenas no Brasil, como determina a Constituição de garantir a ocupação de terras tradicionais. Cabe indicar que em relação aos Ñandéva e Kaiowa do Mato Grosso do Sul, não há qualquer dúvida quanto à tradicionalidade de ocupação, como revelam fontes documentais e estudos contemporâneos e recentes. Esta comprovação não exige nenhum esforço.
A morosidade administrativa em instâncias decisórias de poder, no entanto, tem sido fator relevante no acirramento de conflitos na disputa por terras entre fazendeiros e indígenas. As atitudes protelatórias do Poder Judiciário e a desconsideração tanto da especificidade étnica quanto da argumentação científica antropológica sobre os Guarani têm suscitado julgamentos sobre um universo social desconhecido, fortalecendo o senso comum e ampliando a dificuldade de administrar um país a partir da determinação de sua multiplicidade étnica.
É, assim, alarmante a atitude manifestada pelo Judiciário, do qual se esperaria um posicionamento ponderado, distante das diatribes locais, buscando informações nos acurados e aprofundados trabalhos científicos, como publicações acadêmicas, relatórios de identificação de terras indígenas e laudos periciais. Frustrando estas expectativas, mostra-se estarrecedor que sentenças judiciais possam, ao contrário, fundamentar-se exatamente no senso-comum, a partir de informações levantadas na internet, de modo descontextualizado e de credibilidade, quando menos, questionável, ou então a partir de uma declaração individual explícita de discordância com os ditames constitucionais. A propósito, resulta ser emblemática a seguinte argumentação de um Juiz Federal, retirada de sentença que emitiu liminar paralisando o processo administrativo de demarcação da terra indígena kaiowa de Jatayvary (Ponta Porã/ MS):
“Em artigo publicado [na internet] pelos antropólogos Fabio Mura e Rubem Thomaz de Almeida está escrito que os kaiowás se distribuem no Mato Grosso do Sul numa área de quarenta mil quilômetros quadrados. Esse território faz fronteira com os Terena, ao norte, ao leste e sul com os Guarani Mbya e com os Guarani Nandeva. Algumas famílias vivem nos litorais do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Os territórios ainda fazem divisas com outras áreas indígenas de países vizinhos (www.socioambiental.org). Se a tese acima for procedente, os não-índios terão que buscar refúgio em Marte.”
Aqui, o Juiz não se pergunta se as informações veiculadas pelos antropólogos estão fundamentadas cientificamente; ele apenas aceita e faz próprias as mais corriqueiras argumentações procedentes do senso comum, que equaciona a demanda indígena como pretendendo recuperar a totalidade da superfície do Brasil. Tivesse ele consultado outros trabalhos desses autores, especialmente os técnicos, referentes às terras identificadas, poderia verificar que as demandas dizem respeito a famílias indígenas concretas, originárias de lugares também concretos. Tomando-se em conta, porém, a totalidade das reivindicações fundiárias guarani-kaiowa e guarani-ñandéva, o montante calculado não alcança um quinto de seus territórios originários.
Finalizando, continuamos a insistir na necessidade premente do Estado brasileiro se envolver profundamente com o problema Guarani do Mato Grosso do Sul. É seu dever Constitucional assumir e decidir com firmeza e rigor uma dinâmica para fazer respeitar Direitos e investir na composição de uma instância específica e que unifique organismos de Estado; é seu dever viabilizar recursos financeiros e humanos, refletir e planejar estratégias que culminem em soluções efetivas aos problemas fundiários e de produção de alimentos da população aqui focada. Tais iniciativas deverão contribuir, no tempo, para melhorar a qualidade de vida dessa grande parcela do povo guarani, cujas dificuldades, cabe reiterar, se avolumam em progressão geométrica.
Por favor, divulgar o máximo possível.
Rio de Janeiro, 08 de Abril de 2006.
Rubem Thomaz de Almeida [email protected]
Fabio Mura [email protected]
Alexandra Barbosa da Silva [email protected]
Antropólogos