10/04/2006

Nota Pública sobre a IV Conferência Nacional de Saúde Indígena

Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ)


Conselho Indigenista Missionário (CIMI)


Mestrado em Saúde e Ambiente/Universidade Federal do Maranhão (MSA/UFMA)


 


A Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e o Mestrado em Saúde e Ambiente da Universidade Federal do Maranhão (MSA/UFMA), vêm a público expor, e posicionar-se sobre, os graves problemas detectados no processo de realização da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena que, a nosso ver, comprometem muito seriamente sua representatividade e a legitimidade de suas propostas, enquanto instância máxima propositiva da política nacional de saúde indígena, conforme disposto na Lei 8.142/90, a saber:


 


1 – ETAPAS PREPARATÓRIAS


 


Conforme estabelecido em seu Regimento (aprovado na 155ª Reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Saúde, realizada aos 8 e 9 de junho de 2005), suas etapas locais deveriam ter sido realizadas até 30 de outubro de 2005, e suas etapas distritais até 31 de dezembro de 2005.


 


Foram vários os problemas na realização das etapas locais e distritais da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, entre povos e comunidades indígenas abrangidos por vários DSEIs.


 


No Maranhão, por exemplo, essas Conferências Locais simplesmente não foram realizadas, o que motivou representantes indígenas e da Universidade Federal do Maranhão a fazer uma série de contatos com a Comissão Organizadora, em Brasília, por telefone, e-mail e pessoalmente.


 


As instruções repassadas por membro da Comissão Organizadora, em reunião realizada em 14 de novembro de 2005, na sede do Departamento de Saúde Indígena da FUNASA (em Brasília/DF), foi de que todos os problemas no processo de realização das etapas preparatórias do evento, no âmbito do Distrito Sanitário Especial Indígena do Maranhão, deveriam ser encaminhados a seu respectivo Conselho Distrital. – Ora, como fazê-lo, se este não se reuniu uma única vez, ao longo de 2005?(…) Diante deste contra-argumento, o referido membro da Comissão Organizadora limitou-se a negar este fato, reiterando que o Conselho Distrital de Saúde Indígena do Maranhão estava, sim, funcionante (no que seria flagrantemente desmentido, posteriormente, pelos próprios membros deste Conselho Distrital de Saúde Indígena, durante a II Conferência Distrital de Saúde do Maranhão, realizada de 22 a 24 de março de 2006).


 


Esta situação motivou o Mestrado em Saúde e Ambiente da Universidade Federal do Maranhão, a protocolar uma representação contra a FUNASA, junto à Procuradoria da República no Maranhão, em 11 de janeiro de 2006, solicitando: a) que fosse assegurada a realização, no estado, de todas as etapas preparatórias previstas (locais e distrital) da IV Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas; b) que fosse postergada a realização da etapa nacional da IV Conferência, de modo a assegurar prazo hábil para que a todas as comunidades indígenas no Maranhão fosse garantida ampla, ativa e representativa participação em todas as etapas do evento, em igualdade de condições com as comunidades abrangidas pelos demais DSEIs da Federação.


 


À revelia da não-realização de suas etapas locais, e de todas as demandas e protestos encaminhados à Comissão Organizadora da IV Conferência, a FUNASA anunciou que realizaria a II Conferência Distrital de Saúde Indígena do MA de 6 a 8 de fevereiro de 2006.


 


Em 7 de fevereiro de 2006, índios Krikati, Gavião, Awa-Guajá e Guajajara bloquearam a Ferrovia Carajás em seu km 289, entre os povoados de Poeira e Três Bocas, no município de Alto Alegre do Pindaré, em protesto contra a FUNASA (que anunciava já estar realizando, naqueles dias, a II Conferência Distrital de Saúde Indígena do MA), com as reivindicações, entre outras, de: exoneração do Coordenador Regional da FUNASA, Zenildo Oliveira; autonomia política, administrativa e orçamentária para o DSEI-MA; criação de mais 2 DSEIs no MA; anulação da II Conferência Distrital de Saúde Indígena, então sendo pretensamente realizada em São Luís; rescisão do contrato com a Missão Kaiowa para atendimento à saúde indígena no Maranhão.


 


Na seqüência, a Coordenação das Articulações dos Povos Indígenas no Maranhão (COAPIMA) e a Associação dos Povos Indígenas do Grajaú (ASSINGRA) entraram com representação junto ao Ministério Público Federal, solicitando a anulação da Conferência realizada pela FUNASA entre os dias 6 e 8 de fevereiro, e a realização de uma nova.


 


Essa mobilização dos índios foi bem sucedida em vários aspectos, tendo obtido a demissão de Zenildo Oliveira do cargo de Coordenador Regional da FUNASA no MA, e o reconhecimento, por parte da FUNASA, de nova Conferência Distrital de Saúde Indígena do MA, a realizar-se de 22 a 24 de março de 2006, em São Luís/MA.


 


Paralelamente, a representação movida pelo Ministério Público Federal resultou em liminar da Justiça Federal, anulando a Conferência Distrital realizada pela FUNASA, de 6 a 8 de fevereiro.


 


Assim que os índios retiraram-se da ferrovia, entretanto, a FUNASA tornou a acionar seus prepostos de plantão no sentido de reverter vários dos compromissos assumidos pela instituição, quando da negociação com os índios na ferrovia, entre eles o da rescisão do contrato com a Missão Kaiowa, e o da anulação da Conferência Distrital por ela realizada em fevereiro (um agravo movido pela FUNASA contra a liminar concedida pela Justiça Federal conseguiria derrubá-la em 27 de março, véspera do início da Conferência).


 


Esta atitude dos representantes da FUNASA aumentou muito a tensão da delegação eleita na Conferência Distrital do MA realizada em março, e sua suspeição quanto a outras possíveis manobras que os prepostos da instituição poderiam perpetrar para dificultar sua participação na etapa nacional, inclusive na emissão dos PTAs para transporte dos delegados até o local do evento, de modo que, com o apoio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social do Maranhão, do Mestrado em Saúde e Ambiente da Universidade Federal do Maranhão, e do Deputado Sebastião Madeira, parte da delegação do estado optou por meios alternativos de transporte e hospedagem para a etapa nacional.


 


Na Bahia as etapas locais, em cada pólo-base, não foram realizadas.


 


Foram realizadas apenas duas grandes reuniões, em Feira de Santana e em Porto Seguro, que fizeram as vezes de etapas locais, nas quais os delegados à etapa distrital já chegaram definidos pelos Presidentes de Conselhos locais.


 


2 – ETAPA NACIONAL


 


O Regimento e o Regulamento da IV Conferência estabeleceram regras que engessaram uma programação de atividades já pré-definida e extensa, restringiram o acesso dos delegados às Plenárias Temáticas, e complicaram a condução das mesas e votações.


 


A cada delegado só era permitida a participação efetiva (com direito a voto) em apenas uma das Plenárias Temáticas, por meio de inscrição prévia, registrada no “sistema” (os bancos de dados da Comissão Organizadora) e impressa em seu crachá.


 


Muitos delegados tiveram sua inscrição remanejada “pelo sistema”, contra sua vontade, para outras Plenárias Temáticas, em função de ter “estourado” a cota pré-definida para sua respectiva categoria de representação (“usuário”, “trabalhador indígena de saúde”, “trabalhador não-indígena de saúde”, “governo”, “prestador de serviço”) na Plenária Temática de sua escolha.


 


No que se refere à delegação do Maranhão, além das sucessivas ações anteriores da FUNASA e da Comissão Organizadora para impugnar a legítima II Conferência Distrital, reconhecida pelos índios (realizada de 22 a 24 de março), já durante a etapa nacional, esta teve novamente de mobilizar-se para enfrentar as conseqüências do encaminhamento inicial capcioso, por parte da mesma Comissão Organizadora, de seu pleito pelo reconhecimento pela Plenária, quando de sua instalação, em 27 de março: inicialmente reprovado (porque mal explicado), seu pleito teve de ser reconduzido à Plenária em 28/3 pela manhã, quando só então foi reconhecido, por votação unânime.


 


Em decorrência deste mau encaminhamento inicial do pleito da delegação do Maranhão, esta só foi efetivamente credenciada ao final da manhã de 28/3, de modo que seus delegados foram distribuídos aleatoriamente, “pelo sistema”, pelas diversas Plenárias Temáticas.


 


Na manhã de 29/3, para sua surpresa, os delegados do Maranhão foram informados que não poderiam optar pelas Plenárias Temáticas de seu interesse, pois “o sistema” os teria redistribuído pelas demais, e, ainda mais grave, que as propostas aprovadas na II Conferência Distrital do Maranhão não poderiam ser apreciadas, discutidas e votadas em nenhuma dessas Plenárias Temáticas, por não terem sido encaminhadas a tempo de serem incorporadas ao caderno “Relatório consolidado das Distritais”, distribuído pela Comissão Organizadora: a única possibilidade de encaminhá-las no evento seria na forma de moções à Plenária Final.


 


Outro dispositivo engessante do Regulamento estabelecia, no entanto, que só moções com no mínimo 96 assinaturas poderiam ser encaminhadas à Plenária Final – de modo que tampouco para nenhuma das várias moções elaboradas pela delegação do Maranhão, contendo propostas da II Conferência Distrital de Saúde Indígena do Maranhão, conseguiu-se número suficiente de assinaturas, neste curto espaço de tempo, para ser apreciada pela Plenária Final.


 


Além de todos os problemas na instalação e no andamento das Plenárias Temáticas, acima descritos, o encaminhamento de suas propostas para votação na Plenária Final também foi muito problemático. À metodologia engessada adotada pelo Regulamento, somaram-se conduções de mesa ora excessivamente burocráticas e ininteligíveis, ora autoritárias e truculentas, que inviabilizaram um acompanhamento atento e participativo da maior parte dos presentes, especialmente dos delegados indígenas.


 


A votação mais conturbada da Plenária Final certamente foi a da questão da gestão da Política Nacional de Saúde Indígena, já na manhã de 31/3, não apenas pela importância estratégica do assunto, mas, novamente, pela falta de clareza na condução da mesa: vários dos delegados indígenas que votaram na proposta vitoriosa (a de que se mantivesse a FUNASA como gestora) protestariam publicamente, na madrugada de 1/4, contra a confusa coordenação daquela mesa de votação, que os teria induzido a votar contra a proposta que na realidade defendiam.


 


À tarde de 31/3 a delegação do DSEI-Xingu, em protesto, anunciava sua retirada da Plenária Final, que começou, a partir de então, a dispersar-se.


 


Diante da insatisfação geral com o andamento dos trabalhos, à noite de 31/3 começava a circular a proposta de impugnação da IV Conferência. Por volta das 3 hs. da madrugada de 1/4, ainda com a Plenária Final em andamento, grande parte dos delegados indígenas retiraram-se e, em reunião realizada em paralelo, em local próximo, convocaram o coordenador da mesa (Clóvis, do Conselho Nacional de Saúde) e o repreenderam duramente, assim como a toda a Comissão Organizadora, pela manipulação dos trabalhos, redigindo documento, subscrito por 27 dos 34 Presidentes de Conselhos Distritais presentes, além da COIAB e outras organizações indígenas, denunciando o processo e solicitando a impugnação da IV Conferência.


 


3 – PERSPECTIVAS


 


Entendemos que, conforme mencionado, os problemas no processo de realização da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena comprometem muito seriamente sua representatividade, e a legitimidade de suas propostas, enquanto instância máxima propositiva da Política Nacional de Saúde Indígena, conforme disposto na Lei 8.142/90.


 


Entre as quatro Conferências Nacionais de Saúde Indígena já realizadas, esta IV Conferência certamente será lembrada pela dissonância entre a gravidade da situação e da crise em andamento em boa parte dos DSEIs no período, e o desproporcional volume de recursos aplicados em hotéis de luxo para a realização do evento, sem qualquer necessidade objetiva para tanto: a má qualidade das discussões o comprovam.


 


O movimento indígena saberá avaliar a conveniência e a dimensão das medidas a serem tomadas a respeito – e, sobretudo, como mobilizar-se e preparar-se para evitar que, no futuro, estas situações se repitam em eventos desta importância, às custas de recursos públicos.


 


A ANAÍ, o CIMI e o MSA/UFMA endossam o protesto e os termos do documento elaborado e subscrito, na madrugada de 1 de abril, pela maioria dos Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena e demais delegados indígenas presentes, denunciando a falta de representatividade da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, e a discutível legitimidade das propostas por ela aprovadas.


 


7 de abril de 2006.


 

Fonte: Cimi
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