Crise na saúde
IV Conferência Nacional de Saúde Indígena começa nesta segunda com um quadro alarmante
Fernanda Sucupira – Carta Maior
SÃO PAULO – A criação de uma Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde, é uma das principais reivindicações que serão levadas por lideranças do movimento indígena e por organizações ligadas a ele à IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, que começa nesta segunda-feira (27) na cidade de Rio Quente, em Goiás, e se estende até a próxima sexta. Eles denunciam a negligência da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), atual responsável pela assistência a esses povos, e acusam-na de agir a partir de interesses estritamente político-partidários, o que estaria resultando numa crise grave e generalizada no país. A Funasa, por outro lado, afirma que tem atuado de maneira efetiva na atenção à saúde indígena, com a obtenção de bons indicadores, e nega a existência de crise.
De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nos últimos cinco meses morreram dezenas de crianças indígenas em diversos Estados brasileiros – entre eles, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Pará e Maranhão – em conseqüência de diarréia, infecções intestinais e desnutrição. Além disso, os índices de malária, tuberculose, hepatite B e C e outras doenças infecto-contagiosas vêm aumentando de forma alarmante, resultando também na morte de dezenas de indígenas, em diferentes regiões do país, com destaque para Amazonas, Roraima e Rondônia. A questão da fome também vem se tornando cada vez mais preocupante entre os povos e contribui para a proliferação de doenças e elevação da mortalidade infantil em algumas aldeias.
O abandono das ações preventivas, o atraso no pagamento de funcionários, a falta dos medicamentos necessários e o sucateamento dos equipamentos médicos e dos veículos que atendem as comunidades são apenas alguns dos fatores que estariam levando a essa situação. Segundo o Cimi, o atual quadro se deve à omissão do Estado e ao “fracasso de suas políticas voltadas para a assistência à saúde, às atividades produtivas e pela paralisia nos processos de demarcação das terras indígenas”.
Por conta disso, lideranças indígenas propõem a criação de uma secretaria especial, ligada ao Ministério da Saúde, para substituir a Funasa e gerir o atendimento à saúde indígena, em parceria com os próprios usuários. Essa reivindicação foi uma das decisões tiradas da III Conferência Nacional de Saúde Indígena, em 2001, mas até hoje não foi atendida.
“A Funasa não tem condições técnicas suficientes de comandar a saúde indígena, não há interesse por parte deles de fazer um trabalho de qualidade. Queremos um comando construído junto com a população indígena e com profissionais de saúde com gabarito nessa área”, afirma Genival de Oliveira Santos, do povo Mayoruna do médio Solimões, que acompanha as questões de saúde pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Há um total descaso e despreparo de pessoas que estão no comando da Funasa. Estamos estarrecidos com essa situação de desmantelamento da política de saúde indígena”, completa.
ONDE COMEÇA A CRISE
A crise atual tem origem no processo de implementação da Lei Arouca, aprovada em 1999, atendendo a uma antiga reivindicação do movimento indígena para estruturar uma política diferenciada. Essa lei instituiu o Sub-Sistema de Atenção à Saúde Indígena, articulado com o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. A função de cada distrito é planejar as ações do serviço de saúde em sua região de abrangência. De acordo com a Funasa, o Brasil é o único país do mundo a ter um sub-sistema dedicado exclusivamente à saúde dos índios.
O governo federal implementou esse sub-sistema, estruturando 34 distritos sanitários, mas a gestão da saúde indígena, que antes ficava a cargo do Ministério da Saúde, foi transferida pelo governo Fernando Henrique para ONGs, prefeituras e organizações indígenas. “Havia uma perspectiva de os próprios indígenas se apropriassem dessa atribuição, formassem agentes de saúde e enfermeiros indígenas e fizessem a contratação de médicos e técnicos especializados. No entanto, o serviço apenas foi terceirizado e os povos indígenas, que exerciam certo controle social e participação, perderam isso”, conta Roberto Liebgott, coordenador do Cimi-Sul.
Em 2003, quando o presidente Lula assumiu o governo, havia uma grande expectativa de que o sub-sistema seria aperfeiçoado, ou seja, que o processo de terceirização seria revertido e seria criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde, para assumir a gestão desses distritos. Mas o governo federal, com a publicação de uma portaria, transferiu a responsabilidade do serviço de saúde para a Funasa, que passou a ser a base do sistema.
Os convênios que funcionavam começaram a ser questionados, os recursos passaram a chegar com atraso – o que comprometeu os projetos -, as deliberações dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena não foram mais cumpridas e o gerente de cada distrito, que era definido pelos próprios indígenas e pelas organizações de saúde, passou a ser indicado pela Funasa, de acordo com interesses político-partidários. “Hoje os cargos de chefia dos distritos e de coordenação regional são cargos de confiança da Funasa, indicados por partidos, deputados e senadores”, afirma o integrante da Coiab.
Segundo ele, a saúde indígena se tornou palco de politicagem da Funasa, mais especificamente do PMDB, partido do ministro Felipe Saraiva (Saúde). “Os novos gerentes não são ligados à saúde indígena, nunca trabalharam com isso, não conhecem a diversidade da população. Isso produz um impacto negativo grande”, completa o representante do povo Mayoruna. Na avaliação do Cimi, está ocorrendo um “loteamento político” da gerência de saúde indígena, para assegurar base de apoio e fortalecer alianças políticas.
A Funasa nega que esteja ocorrendo interferência de interesses político-partidários nas escolhas para os cargos de chefia e não considera sequer que exista crise na saúde indígena. Para o órgão, o que ocorre “são situações pontuais, que têm sido prontamente solucionadas”. Afirma ainda que o “índice de mortalidade infantil, que é um dos mais sensíveis indicadores da condição de saúde de uma população, tem apresentado queda constante. O mesmo ocorrendo com os indicadores de mortalidade geral e incidência de tuberculose. Também foi ampliada a quantidade de unidades de atendimento à saúde indígena”. Eles afirmam ter ações efetivas de prevenção à desnutrição, como o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, e investimentos em saneamento, com obras de abastecimento de água e esgotamento sanitário, entre outras.
PARTICIPAÇÃO INDÍGENA
As lideranças indígenas também afirmam que o controle social desses povos está sendo ignorado nos processos dos distritos, que definem o financiamento, a contratação de profissionais, a formação e a qualificação dos agentes indígenas e enfermeiros. “Com a centralização na Funasa, o planejamento e as ações não são mais fiscalizados nem discutidos pelos indígenas, trabalho interessante e fundamental que acontecia antes. Hoje os gerentes não abrem mais espaço para o controle social, tirando a autonomia dos índios”, lamenta Liebgott. Lideranças indígenas acusam o órgão de dificultar a participação, o entendimento dos processos e a tomada de conhecimento dos seus direitos. Para reverter esse quadro, reivindicam a capacitação dos conselheiros distritais e o respeito à decisão dos conselhos.
Em relação ao controle social, a Funasa destaca a realização da própria IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, da qual devem participar cerca de mil delegados, um dos espaços promovidos e apoiados por ela nesse sentido. “Além da Conferência Nacional, que é o principal momento de discussão, revisão e contribuição da sociedade para as diretrizes das políticas públicas de saúde, a Funasa mantém Conselhos em todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei). Conferências e Conselhos expressam a participação real e concreta das populações indígenas na construção das políticas de saúde”, afirmou, em nota, a Fundação.
Segundo o órgão, este ano a Conferência tem pelo menos dois aspectos inéditos: a atuação direta dos índios na organização e a evidência do conceito e das práticas da saúde indígena, rompendo a noção de uma saúde de brancos para índios e ampliando as possibilidades de compreensão a partir do ponto de vista das diversas culturas e formas tradicionais de medicina e cuidado.
Mas no próprio processo de preparação da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena são apontadas irregularidades. A Funasa é acusada de centralizar as discussões nas etapas locais e distritais, ao escolher as pessoas que deveriam participar delas. Por conta disso, lideranças do movimento indígena e organizações indigenistas estão questionando a legitimidade das deliberações e decisões da conferência, pois alegam que não houve ampla participação dos povos indígenas e outros envolvidos.
No Maranhão, por exemplo, a Justiça Federal determinou, no dia 17 de março, que a Funasa realizasse uma nova Conferência Distrital de Saúde Indígena por causa de denúncias acerca da não divulgação da realização do evento, da não participação de todos os povos do Maranhão, da não realização de conferências locais e da nomeação de famílias inteiras de indígenas como delegados. A falta de tempo para que essa decisão fosse cumprida levou a um acordo entre as partes em que o órgão governamental reconheceu os delegados indicados pelo movimento indígena do Estado.