Educação Escolar e Pedagogia da Indiferença para os Povos Indígenas
Ao ser eleito e proferir o discurso de posse, o presidente Lula afirmou que os resultados das eleições de 2002 marcavam o desejo da sociedade brasileira por mudanças. Um novo rumo para a política, alterações no modelo econômico adotado em governos anteriores, crescimento, geração de emprego e renda, segurança, atenção adequada à saúde, educação de qualidade, demarcação das terras indígenas, reforma agrária – antigas bandeiras, mobilizadas em tempos de esperança.
Mas já em julho de 2002, para viabilizar sua eleição, o então candidato Lula divulgou uma carta de compromisso com o Fundo Monetário Internacional, esboçando desde lá os caminhos de seu governo. Os acordos firmados com o FMI foram sendo concretizados ao longo do mandato e implicaram na redução dos investimentos em políticas públicas, contingenciamentos para garantir metas de superávit e reformas calcadas em teses neoliberais. Em 2003 o governo investiu 10% a menos em áreas sociais, “economizando” os já escassos recursos previstos para as políticas voltadas para a população.
No campo da educação, o governo Lula segue indicativos e determinações de organismos como o Banco Mundial que, nas últimas décadas, vem imprimindo um formato cada vez mais privatista às políticas educacionais. A Educação, direito social assegurado na Constituição, converte-se gradativamente em produto de consumo, balizado pelos valores de mercado e as escolas públicas vão sendo convertidas em espaços para a concretização de políticas assistencialistas (Bolsa Escola, Bolsa Família). Soluções como esta, de fornecer cestas básicas para uma parcela empobrecida da população sem comprometer-se com as causas estruturais, é que fazem do Brasil um dos países mais desiguais do planeta.
Não bastasse o fato de serem cada vez mais escassos os recursos em educação, o governo cria novas formas de assegurar sua destinação aos setores privados – um exemplo é a solução criada para o grave problema de falta de vagas no ensino superior: ao invés de expandir a rede pública o governo opta por transferir recursos ao setor privado (por meio do ProUni) promovendo o sucateamento e a desregulamentação das universidades públicas, uma receita que empurra para a busca de fontes de financiamento e conseqüente atuação voltada para interesses do mercado.
A descrença no sistema público de ensino, resultado da falta de políticas e de investimentos neste setor, serve como justificativa para o apoio do governo à rede particular, e fundamenta o apelo para a sociedade compartilhar as responsabilidades pela educação, esvaziando cada vez mais a noção de direito e tornando relativo o dever do Estado em assegurar a todos o acesso a um ensino público, gratuito e de qualidade.
Não restam dúvidas de quais são as prioridades políticas deste governo, especialmente se observarmos o orçamento público e a dança dos números aprovados e efetivamente aplicados em áreas sociais. A análise da execução orçamentária do primeiro ano do mandato Lula, apresentada pelo Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos[1] – mostra que 62% dos recursos liquidados foram destinados ao pagamento de juros, encargos e amortização da dívida.
No que diz respeito à educação, a análise do Inesc chama a atenção para a baixa execução do orçamento previsto para o Ministério da Educação, que teve R$ 5,7 bilhões autorizados e executou 68,6%, uma vergonhosa “economia” de mais de 30%. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério contava com 657,5 milhões, mas foram aplicados apenas 47% destes recursos. No Programa Escola de Qualidade para Todos, foram investidos somente 22,8% dos recursos autorizados. Este programa tem o objetivo de contribuir para a universalização do ensino fundamental de qualidade – incluídas aí ações como a capacitação de recursos humanos, assistência técnica e financeira aos sistemas de ensino, melhoria das escolas, bolsa-escola. Um país que conta com cerca de 169 mil escolas públicas, 11% das quais não tem rede de esgoto; 23% não tem energia elétrica; 77% não têm biblioteca e 95% não conta com laboratórios, conforme dados divulgados pela Adusp em maio de 2005[2], não pode se dar ao luxo de economizar recursos destinados à educação.
Em relação à educação escolar Indígena, embora estes povos venham exigindo a implementação de uma política indigenista integrada e coerente com as determinações constitucionais, muito pouco se fez nos anos de governo Lula. Persistem os problemas que afetam diretamente a vida destas comunidades, os conflitos e invasões em suas terras, a morosidade ou paralisação de processos de demarcação, o aumento da violência decorrente da omissão do poder público, a falta de uma atenção eficaz e diferenciada em saúde, os assustadores índices de mortalidade infantil, o desrespeito aos seus modos de vida.
Ao invés de assegurar o protagonismo na definição dos modelos adequados de educação escolar e de proporcionar espaços amplos para discussão e construção de projetos pedagógicos indígenas, o governo tem optado por oferecer pacotes, destinar programas de caráter assistencial, que nem sempre chegam ao seu destino. Também neste campo percebe-se a disposição em “terceirizar” serviços e responsabilidades. Mas a educação escolar indígena é um desafio que precisa ser assumido com responsabilidade, e sua implementação pode colaborar para a autonomia dos povos indígenas, ou continuar a servir aos objetivos integracionistas que marcam sua história.
O censo escolar do INEP/MEC de 2005 indica que a oferta de educação escolar indígena cresceu, especialmente nas séries iniciais do ensino fundamental. Há que se perguntar, no entanto, se as taxas de matrícula crescentes indicam, igualmente, um incremento em termos de recursos destinados à educação escolar indígena. Estes números parecem servir apenas para enfeitar estatísticas oficiais, tingindo com cores festivas uma realidade perversa.
No boletim sobre a execução orçamentária de 2005, divulgado pelo Inesc em outubro[3] não há registros de aplicação, até aquela data, dos recursos destinados ao ensino fundamental indígena, à produção e distribuição de material didático e nem à capacitação dos professores indígenas. No demonstrativo de execução orçamentária disponível no Siga Brasil, do Senado Federal, consta que foram aplicados 85,7% do total previsto no Ministério da Educação para a questão indígena, 87% dos recursos alocados no Ministério da Justiça e apenas 6,6% no Ministério do Meio Ambiente. Mais uma vez fica evidente que para o atual governo a questão indígena é tema de pouca importância.
As manifestações indígenas relativas às escolas têm mostrado que há uma enorme distância entre os discursos oficiais de valorização da educação e a realidade na maioria das áreas indígenas. Como afirmam os indígenas de diversos estados do Nordeste, reunidos num Encontro Macro-Regional de Professoras e Professores Indígenas, em novembro de 2004, as comunidades enfrentam problemas de toda ordem, seja no atendimento, na formação ou na contratação dos professores. Situações decorrentes da negligência das autoridades políticas de estados e de municípios, que não implementam as ações previstas, sem mencionar os casos de desvio de verbas.
Em Rondônia os professores indígenas reunidos em um encontro que contou com a participação de mais de 10 povos diferentes reafirmaram a importância da escola, como instrumento para fortalecer a luta pela terra e pela cultura. Mas para cumprir esta finalidade estas instituições precisam estar a serviço dos povos e seus projetos de futuro, permitindo a produção de saberes específicos, de pedagogias próprias, de modelos de organização que deslizem dos estreitos limites impostos pelo sistema de ensino oficial, produzindo rupturas. Contribuir com esta mudança de perspectiva para as escolas implica em possibilitar que os povos indígenas sejam autores de seus projetos pedagógicos, discutindo coletivamente, buscando saídas e compartilhando experiências.
Nos estados do sul do país, os povos Kaingang e Guarani têm insistentemente reafirmado a necessidade de repensar o papel das escolas e os processos de formação dos professores. Para eles, a escolarização indígena que se orienta por modelos de escolas não índias gera desastrosas conseqüências para os modos tradicionais de organização, pois desrespeita os processos de aprendizagem próprios destes povos. É por essa razão que muitas comunidades Guarani têm manifestado resistência à implantação de escolas, recusando a “oferta” dos estados ou municípios.
A Carta da 34ª Assembléia dos Povos Indígenas do Estado de Roraima, realizada em fevereiro de 2005 reunindo 1.030 participantes, denuncia a possibilidade de retrocesso na educação escolar, com a restrição da participação indígena nos espaços de definição, controle e fiscalização das políticas educacionais. O documento aponta a situação de abadono, a falta de recursos até para aquisição de material escolar, como lápis e cadernos. Os povos de Roraima, assim como muitos outros que têm se articulado em encontros de Educação, propõem que se promova um amplo debate em torno da educação escolar indígena, com destinação de verbas específicas para este fim; a garantia de acesso e de permanência nos diferentes níveis de ensino, inclusive o superior; oficinas de elaboração, edição e publicação de material didático específico e diferenciado, das quais participem os próprios índios; representação nas instâncias de definição e de controle das políticas indigenistas do Estado brasileiro; contratação de professores indígenas através de concursos específicos; possibilidades de intercâmbio entre as escolas indígenas e a conseqüente liberação de recursos financeiros para tal.
Os povos indígenas propõem, em síntese, que o Estado brasileiro respeite seu protagonismo na elaboração de políticas para as escolas e de propostas pedagógicas adequadas às distintas realidades. Mas o governo atual sequer tem demonstrado disposição em aplicar os recursos para a educação, aprovados no Orçamento. Comparando-se os Orçamentos de 2004 e 2005 com a previsão para 2006, chama atenção a diminuição de recursos em 6,18% para Educação; 17,56% para Cultura e 15,52% para Direitos de Cidadania, uma clara redução de investimentos para políticas sociais e, em contrapartida, uma destinação 52,2% superior para o pagamento de encargos e juros da dívida, comparando-se aos números de 2005.
Em questões chave para a garantia dos direitos indígenas o Orçamento previsto para o último ano do governo Lula é ainda mais enxuto. Um exemplo é a demarcação das terras indígenas, que em 2006 tem um orçamento 24,5% menor que o aprovado no ano anterior e as metas estabelecidas são insignificantes em relação à demanda existente, estando previstas apenas 13 áreas indígenas. Sem mencionar que não há referências ao número de terras a serem identificadas, uma irresponsabilidade cometida contra estas populações que já sofreram todo tipo de violência e expropriação. E se considerarmos que o acesso aos programas sociais destinados aos povos indígenas, entre eles a educação, tem sido condicionado ao reconhecimento daquela população como indígena pelo Estado Brasileiro, é possível dizer que a falta de recursos para a identificação de terras reivindicadas por comunidades responde perfeitamente ao objetivo de fazer economias em áreas sociais para cumprir metas fiscais.
Ao que parece, o problema mais importante a enfrentar não é a falta de recursos, mas a falta de compromisso do governo com as causas urgentes de uma parcela da população que historicamente paga o preço pelas escolhas políticas e econômicas voltadas para garantir privilégios de poucos. Conforme divulgou o Jornal Zero Hora (edição on line de 11 de março de 2006), entre dezembro de 2005 e março de 2006 o governo gastou R$ 107 milhões em publicidade, um montante de recursos superior ao investido pelos ministérios da Educação e da Justiça com política indigenista em todo o ano. Só em dezembro de 2005 os gastos com propaganda do governo giraram em torno de R$ 55 milhões, um valor que quase alcança o orçamento total executado no programa de Proteção às Terras Indígenas. Não se trata de falta de recursos, mas de falta de vontade política, falta de ética, falta de seriedade, falta de coerência do governo ao abandonar os compromissos históricos de seu partido e o projeto político de transformação, a partir do qual ganhou a confiança da maioria da população.
A grande expectativa política dos “tempos de esperança”, logo após a eleição de Lula, era construir bases, dar os primeiros passos na consolidação de políticas capazes de assegurar a todos os brasileiros o acesso aos direitos sociais básicos, à vida, à cultura, à saúde, à educação, à segurança, materializados na Constituição Federal desde 1988, mas ignorados nas práticas governamentais em toda a década de 90. E o que se vê atualmente não é diferente. Considerando a primazia que vem sendo dada ao pagamento da dívida externa em detrimento das dívidas sociais, o legado do governo Lula será a manutenção de estruturas e de políticas que fazem do Brasil um dos campeões em desigualdade social e de concentração de renda, um país que condena à pobreza e à miséria grande parte de sua população, e representa um verdadeiro paraíso de privilégios para poucos.
O governo comprometeu-se desde sua candidatura, a ampliar o acesso e melhorar a qualidade de ensino. No entanto, as escolhas políticas em termos de aplicação de recursos públicos mostram que está em curso um projeto ancorado no agronegócio, no setor financeiro e na exportação, e este tipo de projeto não requer um sistema de ensino de qualidade.
Ao povo que anseia por mudanças, o governo responde com continuidades, aos defensores do ensino público e gratuito, apelos à solidariedade e modelos de privatização. E aos povos indígenas, a velha e perversa pedagogia da indiferença, da inoperância e do descaso, para manter as coisas como sempre estiveram, e para não ter que lidar com a incômoda existência de outras formas de pensar e com a materialidade de outras propostas políticas, pedagógicas e sociais.
Porto Alegre, 22 de março de 2006.
Iara Tatiana Bonin
Membro do Cimi e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS
————————————————————————
[1] INESC. Orçamento. Ano III, n. 3, Fevereiro de 2004
[2] Texto disponível em http://www.adusp.org.br/revista/34/r34a06.pdf
[3] Texto disponível em www.inesc.org.br