16/03/2006

Saúde Indígena: Uma Realidade de Abandono

O Conselho Indigenista Missionário vem a público manifestar sua apreensão e preocupação com a realidade de abandono a que as comunidades indígenas estão submetidas, de modo especial no que se refere à política de assistência à saúde.


No estado do Tocantins, nos últimos cinco meses, morreram 15 crianças do povo Apinajé, em função de diarréia, vômito, gripe e febre. No Mato Grosso do Sul, morreram dezenas de crianças Guarani-Kaiowá devido à desnutrição. No Pará sete crianças do povo, Munduruku morreram vítimas de infecções intestinais. No Amazonas, as organizações indígenas vêm denunciando de forma sistemática o descaso nos serviços de saúde e o alastramento de doenças infecto-contagiosas. Em Roraima, entre os Yanomami, os índices de malária voltam com intensidade, em função do abandono nas ações preventivas em saúde, especificamente nos serviços para o combate ao mosquito transmissor da doença. No Acre, 10 crianças Kaxinawá, do Alto Juruá, morreram em conseqüência da diarréia. Nos estados do Sudeste e do Sul, foram registrados dezenas de casos de desnutrição em crianças Guarani e Kaingang, com casos de mortes em aldeias que, na sua maioria, encontram-se localizadas em pequenas áreas de terras devastadas pelo processo colonizador. No Mato Grosso, o governo assistiu passivamente a morte de crianças Xavante, da terra indígena Marawatsede. Esta área, já demarcada e homologada, continua fora do domínio do povo Xavante, invadida por fazendeiros da região. No estado do Maranhão, 14 crianças da aldeia Bananal morreram em 2005, e em janeiro de 2006, foram registradas mais seis mortes, as causas foram diarréia e desnutrição. Em Rondônia, a ausência de uma intervenção consistente por parte da Funasa tem causado o alastramento de doenças infecto-contagiosas, a exemplo das hepatite tipos B e C.


Ao quadro de mortalidade infantil e do alastramento de doenças, somam-se dezenas de óbitos de adultos por malária, tuberculose e hepatite. Doenças essas que deveriam estar erradicadas em nosso país, mas que pela omissão do Estado e pelo fracasso de suas políticas voltadas para a assistência à saúde, às atividades produtivas e pela paralisia nos processos de demarcação das terras indígenas e falta de proteção destas terras, tornam-se devastadoras.


Mesmo nos estados em que os povos indígenas encontram-se articulados e suas organizações têm tido maior controle social sobre a assistência na área de saúde, verifica-se o total sucateamento dos equipamentos médicos e dos veículos que atendem as comunidades. Em diversas localidades, funcionários são obrigados a cruzar os braços devido ao atraso no pagamento de seus salários, a exemplo do que acontece no Distrito Sanitário Yanomami.


A situação é de uma gravidade sem precedentes e exige do poder público providências enérgicas e ações contundentes para combater a fome, a desnutrição e as doenças causadas por parasitoses, por mosquitos e a intensificação das endemias e epidemias. Ao contrário disso, assiste-se a omissão e a negligência do órgão responsável pela assistência à saúde indígena, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), entregue a grupos políticos e usada como instrumento de aliança política. A Funasa tem sido morosa na implementação de projetos de saneamento e de construção de postos de saúde nas aldeias em todo o Brasil, bem como na perfuração de poços para assegurar água potável nas comunidades. A falta de água de qualidade nas comunidades indígenas é um desencadeador de doenças que poderiam ser facilmente evitadas.


Esta realidade tem, na sua essência, vários fatores:


1) A terceirização das políticas de assistência, iniciada no governo FHC e aprofundada no governo Lula, com o agravante de que no atual governo foram estabelecidos acordos políticos em todos os estados com as oligarquias locais, que historicamente se contrapõem aos interesses e direitos dos povos indígenas;


 


2) O esvaziamento da política de saúde, que vinha sendo estruturada com a participação dos povos indígenas, entidades indigenistas e universidades, desde os anos 80 e que começava a se consolidar através da implantação do Sub-Sistema de Atenção a Saúde Indígena, iniciado em 1999. Este Sub-Sistema tem por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas.


 


3) Os graves retrocessos, no processo iniciado para a consolidação do Sub-Sistema, começaram em 2003 com a publicação da Portaria de nº 70, assinada pelo presidente da Funasa. Esta portaria acabou com a pouca autonomia administrativa conquistada pelos distritos, passando toda a responsabilidade para as coordenações regionais do órgão. Foi também revogado o dispositivo que determinava que as indicações para as coordenações regionais e as chefias dos distritos, deveriam ser apenas de técnicos do Ministério da Saúde, dando início a um loteamento político sem precedentes na gestão da saúde no país. Cabe ressaltar que boa parte destas indicações políticas atende a interesses de grupos políticos, ficando demonstrado que as indicações a cargos de chefia da Funasa dependem dos ventos conjunturais da governabilidade.


Nos últimos anos a Funasa tem provocado inúmeros atritos com o movimento indígena organizado, ao promover o rompimento unilateral de parcerias inicialmente estabelecidas e sua substituição por instituições totalmente alheias ao campo indigenista, como “associações universitárias” e ONGs, bem como prefeituras municipais. As ocupações das sedes da Funasa em praticamente todas as regiões, demonstra a inconformidade dos povos indígenas com a política de assistência em curso.


As etapas locais e distritais de preparação da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, já realizadas na maioria dos distritos, são também reveladoras das contradições e da situação de crise que atravessa este modelo de assistência em todo o país. A Funasa, com o intuito de restringir a participação organizada dos povos indígenas, monopolizou todo o processo de discussões ocorrido nas regiões e não possibilitou que a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena e que as organizações indígenas e indigenistas participassem deste processo, o que gera dúvidas sobre a legitimidade da IV Conferência Nacional, prevista para ocorrer este mês.


Recentemente o Fórum Nacional de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena encaminhou denúncia ao Ministério Público Federal sobre as graves deficiências na gestão da saúde indígena. Muitas lideranças indígenas têm se manifestado favoráveis à criação de uma Secretaria Especial de Saúde Indígena para uma gestão mais democrática e efetiva do sub-sistema, a viabilização da autonomia administrativa e financeira para os Distritos Sanitários Indígenas, e o estabelecimento de um efetivo controle social em todas as instâncias da saúde indígena.


Diante de tudo isso, o Cimi entende que o governo brasileiro terá que reformular a política de saúde em curso, tendo como referência as diretrizes gerais da II Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1993, possibilitar o controle social sobre as ações do órgão responsável pela saúde indígena, bem como disponibilizar recursos financeiros e humanos adequados para atender de forma digna e responsável as comunidades indígenas de todo o país. Entende também que a IV Conferência Nacional de Saúde Indígena só terá legitimidade quando houver a participação efetiva dos povos e organizações indígenas e indigenistas.


 


 


 


Luziânia (GO), 16 de março de 2006.


 


 

Fonte: Cimi
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