14/02/2006

Paulo Maldos: “o Estado acha que os índios não precisam ser reconhecidos como sujeitos de direito”

Por Mateus Alves


 


O Correio da Cidadania entrevista nesta semana Paulo Maldos, assessor político do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), que fala sobre a crise na Funai e sobre a política indigenista no Brasil.


 


Correio da Cidadania: As declarações de Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), onde afirma que os índios querem terras demais, tornaram ainda pior o relacionamento entre os indígenas e a entidade. Qual a sua avaliação sobre o papel da Funai durante o governo Lula e sobre o caso?


 


Paulo Maldos: A Funai está atuando extremamente aquém do necessário. Mércio Pereira Gomes está orgulhoso por ser presidente do órgão, e fala o tempo inteiro do passado deste como se fosse grandioso. O passado da Funai é de restrição aos direitos e de mal encaminhamento das demandas feitas pelos indígenas; é um órgão sucateado, ligado à ditadura militar.


 


Gomes tenta todo o tempo “dourar a pílula”, principalmente sobre a demarcação de terras indígenas. A Funai faz isso negando direitos aos indígenas; falam em grandes porcentagens de terras dadas aos índios, que demarcação é coisa do passado, mas tudo isso com base na negação do reconhecimento dos povos. O presidente do órgão, que é antropólogo, se recusa a reconhecer índios do nordeste e do centro-oeste. Isso é uma posição extremamente atrasada de um ponto de vista antropológico.


 


Como não há recursos e nem a definição de uma política, ele tenta basear em louros relativos a governos passados – que demarcaram terras indígenas na região Amazônica, inclusive com cooperação internacional – o sucesso atual da Funai, como se fosse a sua grande obra. Diz também que a Funai está terminando as demarcações, o que é mentira: ainda restam 60% de terras no Brasil a serem demarcadas e homologadas. Gomes se recusa ao diálogo com os povos que demandam demarcações, uma vez que não reconhece os mesmos como populações indígenas. Como disse Sydney Possuelo (coordenador da Funai demitido recentemente por criticar as declarações de Mércio Pereira Gomes), ele fala a linguagem dos madeireiros, dos fazendeiros, dos invasores das terras indígenas.


 


CC: Uma das principais críticas à política indigenista vigente no país é em relação ao papel “tutelar” do Estado perante o índio brasileiro. Qual a sua opinião sobre isto?


 


PM: Como órgão proveniente dos tempos de ditadura, a Funai está aquém da Constituição de 1988, o que realmente resulta numa posição de tutela no pior sentido. A tutela “positiva” seria a proteção de povos indígenas que são muito frágeis frente à violência da sociedade nacional; por exemplo, precisam ter uma forte proteção do Estado grupos de índios que, em Rondônia e no Mato Grosso, são caçados como se caçavam bugres no século XIX, pois os invasores de suas terras não querem a comprovação das mesmas como territórios indígenas.


 


A tutela que é criticada é relativa ao controle, ao policiamento que o Estado realiza, como se fosse o representante supremo dos povos indígenas; o Estado acha que os índios não precisam ser reconhecidos como sujeitos de direito. Esquecem que eles são os protagonistas, que têm cabeça própria. Alguns povos indígenas possuem suas organizações, suas agendas, suas pautas, são extremamente capazes no sentido de conhecer a nossa sociedade e lidar com ela, de propor o encaminhamento de suas demandas em áreas como saúde e educação. Isso, o governo não reconhece, age apenas como se fosse o porta-voz de todos, não dando o direito aos indígenas de se proclamarem.


 


CC: Então não houve nenhum avanço em relação à participação das populações indígenas nas decisões que o governo toma? Há algum indicador de que isso ocorrerá no futuro?


 


PM: Tínhamos uma boa expectativa com um acordo feito com o governo Lula a partir da jornada de mobilizações que foi feita no ano passado, o Abril Indígena. Cerca de 800 líderes indígenas, em Brasília, fizeram a interlocução com praticamente todos os setores do Estado – STF, STJ, ministérios, INCRA, a própria Funai etc. – e dali saiu uma proposta de se criar um Conselho Nacional de Política Indigenista. Seria um organismo ligado diretamente à presidência ou vinculado ao Ministério da Justiça, que teria a participação de instâncias do governo federal, de representações indígenas e de entidades de apoio. Estes fariam uma espécie de avaliação permanente da política indigenista em todos os âmbitos, um órgão que impulsionasse e melhorasse, de forma coordenada, orgânica, essas políticas.


 


O governo iria criar, já em janeiro, uma comissão para viabilizar para um breve futuro a criação do Conselho e agora, infelizmente – não sei se esta polêmica com a Funai influenciou em algo –, este processo foi interrompido. Não sabemos o que houve.


 


CC: O que está por trás do excesso de “judicialização” nos processos de demarcação e homologação das terras indígenas no Brasil?


 


PM: O que ocorre é que o governo Lula tem muitos acordos com o centro e com a direita para a implementação de políticas gerais, buscando atrair para o seu lado no Congresso esses setores mais conservadores. O que aconteceu, assim, é que terras indígenas já a ponto de serem homologadas, já demarcadas, voltavam aos âmbitos burocráticos para ter suas situações novamente “estudadas”. Os invasores perceberam um canal para continuar questionando e impedindo o processo de homologação, já que setores do governo tinham interesse para impedi-los.


 


O ritmo das demarcações ficou extremamente lento, e políticos e fazendeiros bombardeavam o que já havia em curso – e eram acatados pelo governo. No caso de Raposa – Serra do Sol, ela já estava pronta para ser homologada em dezembro de 2002, e passou todo esse tempo no governo Lula que nem pingue-pongue, de lá pra cá, e correu o risco de ser demarcada de forma não-contínua ou de voltar à estaca zero. Setores interessados em trazer o Flamarion Portela (governador de Roraima) para o PT e a bancada do estado para o governo faziam o jogo deles, de protelação, criando esse clima muito contrário aos direitos indígenas que até hoje está por aí.


 


CC: Em sua opinião, em que deveria ser baseada uma política indigenista adequada para o Brasil?


 


PM: Em primeiro lugar, o Conselho deve ser criado. Ele possibilita realizar um “cruzamento” entre o que existe de possível em termos de estrutura e de recursos do Estado com as propostas dos índios, que também são factíveis.


 


Porém, para isso acontecer, pessoas como o Mércio Pereira Gomes têm que sair do governo. Ele não cabe na construção de uma política indigenista para o Brasil, já que apenas se interessa por glória, por fazer seu nome, vive há muito tempo fora do país. Quem acha ótimo deixar tudo como está não serve, precisamos de pessoas que estão inconformadas, que querem avançar. Para se dirigir um órgão indigenista, é necessário ser parceiro dos povos indígenas, e não alguém que diz que os índios têm muita terra e que pede que o STF imponha um limite à demarcação delas, que diz que alguns povos não existem, que são ficção. Precisamos de alguém à frente da Funai que seja solidário com os povos indígenas, que atenda a suas demandas. O que Gomes diz também é que o IBGE exagera no número de índios no país. Não existe ninguém no mundo que presida uma entidade de defesa de minorias que seja contra essas minorias.


 


A Funai tem ignorado também os índios que moram em cidades; há um grande contingente deles. É preciso um conjunto de políticas específicas. Só em São Paulo, vivem cerca de 20 etnias, que precisam de apoio nas questões de saúde, educação, de se inserir na vida comunitária. É preciso incentivar para que contribuam na diversidade cultural.


 


É preciso criar uma base institucional onde o índio seja escutado, criar instâncias, a partir deste Conselho, que ouçam os índios – são mais de 215 povos no Brasil – e implementem as suas demandas.


 


CC: Quais são os principais focos de conflito territorial para os indígenas?


 


PM: Sem dúvida, o Mato Grosso do Sul está em primeiro lugar. Ali, o agronegócio reina, muitos territórios foram invadidos e devastados com suas plantações. Muitas áreas foram degradadas, causando muitos problemas para as etnias da região. O índice de suicídios é grande na região, assim como a mortalidade infantil.


 


A região nordeste também possui muitos povos que precisam que o processo de homologação de suas terras seja finalizado; com a lentidão, os invasores ameaçam-nos, querem retroagir os processos, achando que assassinando lideranças podem reaver territórios. Está por trás disso também a falta de reconhecimento pela Funai.


 


Por fim, temos as regiões da Amazônia, onde os povos possuem pouco contato com a sociedade e ficam extremamente expostos à violência dos madeireiros na região. Alguns povos, como os Ianomâmis, têm seu território permanentemente invadido por garimpeiros; ali, os miseráveis da cidade acabam se confrontando com os índios no desespero de ficarem ricos.


 


CC: A vitória de Evo Morales, notável defensor das populações indígenas na Bolívia, trará um novo ânimo na luta pelo direito das populações nativas no Brasil?


 


PM: De forma indireta, sim. A vitória de Morales aponta para um aumento no reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos políticos, de envergadura histórica. Os partidos de esquerda e os movimentos populares têm dificuldades de lidar com tais minorias. A forma simplificada de ver o processo de transformação social causou muita insensibilidade em relação à realidade e ao protagonismo dos povos indígenas.


 


Só agora, através da luta social concreta, através de movimentos como a Via Campesina, entre outros, onde a diversidade já é contemplada, os indígenas passaram a figurar na vida política. Evo Morales faz parte deste conduto. Sua vitória traz a legitimidade dos povos indígenas como grupos capazes de participar do momento histórico e ter uma contribuição grande para a mudança; a esquerda passará a prestar mais atenção no que os índios falam, no que têm a dar como contribuição: com sua cultura, com sua economia, sua forma de convivência, muito mais humanas do que os europeus trouxeram para cá.


 


Hugo Chávez, durante o Fórum Social Mundial, disse que o socialismo da América Latina será necessariamente indígena e deve contar com a contribuição dos povos nativos, que nunca constituíram Estados ou classes, nunca criaram nenhuma forma de opressão em suas sociedades. Viveram de forma socialista durante milhares de anos. É impossível você conhecer uma comunidade indígena onde haja crianças ou velhos desamparados; são conjuntos integrados, ali cada um tem o seu papel. Há muito que podemos aprender com eles.


 


Cada vez mais os índios vêm mostrando para a sociedade brasileira que têm muito que dizer. Precisamos abrir nossos corações e mentes para que contemos também com a ajuda deles na construção de uma sociedade melhor no Brasil.


Fonte: Correio da Cidadania
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