03/02/2006

Sepé e as Ruínas Vivas

O Assassinato e as Esperanças de Ressurreição do Projeto Civilizatório dos Sete Povos Guaranis


 


O dia 7 de fevereiro de 2006 marca os 250 anos do Massacre de Caiboaté, com o martírio de 1500 guaranis missioneiros, numa coxilha do hoje município de São Gabriel, Rio Grande do Sul. Em 07 de fevereiro de 1756, três dias antes do covarde massacre, em local não muito distante, tombava em combate Sepé Tiaraju, considerado, nas própria crônicas de guerra do exército português, “o maior general deles”. Longe de lenda, Sepé é um sujeito histórico concreto e datado, alferes e corregedor do Povo de São Miguel Arcanjo e um dos principais comandantes da resistência guarani-missioneira à implementação do tratado de Madri em terras do hoje Rio Grande do Sul.


 


Porém, suas virtudes pessoais, o conjunto dos fatos que o envolveram e as circunstâncias de sua morte, fizeram dele muito mais que seu papel de personagem individual. Ele se transformou na condensação histórica da luta, dos sonhos, dos feitos, do projeto, do heroísmo de um povo. É um mito fundador e transforma-se num símbolo. É o símbolo maior de um projeto de civilização que foi brutalmente interrompido mas que continua vivo como sonho coletivo de uma sociedade de iguais.


 


No Massacre de Caiboaté – uma análise acurada dos documentos históricos nos mostra que não houve “batalha” propriamente dita – em 10 de fevereiro de 1756, não houve apenas o assassinato de 1500 índios guaranis. Assassinava-se ali um projeto de civilização. Um projeto cheio de contradições, próprias do tempo, mas pleno de afirmações, conquistas e valores, impróprios para o tempo. Basta dizer que ali entre os sete povos missioneiros não havia escravos, sina triste que grassava em quase todas as partes do mundo onde chegava a dita civilização cristã européia.


 


Mas muito mais. A civilização missioneira afirmava uma sociedade de iguais, a propriedade coletiva, o cuidado com as crianças e com os idosos, a terra e o trabalho de todos do tupambaé, a inviolabilidade do lar e da subjetividade do amambaé, os celeiros cheios e os lares sem fome, a educação básica acessível a todos, o trabalho feito com alegria pois se cantava ao ir e ao voltar do labor diário, o diálogo cultural contraditório e fecundo entre os jesuítas europeus e os ameríndios guaranis, a democracia e a participação popular na eleição direta dos dirigentes das cidades guaranis missioneiras, o fantástico desenvolvimento das artes (música, escultura, teatro, pintura, arquitetura), o desenvolvimento de vários ramos da indústria (têxtil, metalúrgica, coureira, construção civil, cerâmica), o desenvolvimento da agricultura (milho, trigo, erva-mate, amendoim, batata doce, algodão, feijão, abóbora, horticultura) e da pecuária (nas estâncias coletivas de gado e na criação de ovelhas, porcos e cavalos). Algo que encanta e impressiona é que a civilização guarani era cantante, uma sociedade onde a alegria de viver brotava naturalmente no dia-a-dia da vida.


 


A lança portuguesa e a pistola espanhola que tombaram Sepé na Sanga da Bica e os canhões que assassinaram os 1500 guaranis nas margens do Arroio Caiboaté interromperam um rico processo civilizatório que já dava passos de adulto. Após o Massacre, sentindo o significado desta derrota, os guaranis tomam a iniciativa de tocar fogo na catedral de São Miguel. E aquela pujante catedral em ruínas permanece em pé como que uma cicatriz antiga sempre lembrada de uma ferida mal curada no passado do povo do Rio Grande do Sul.


 


Assim como o símbolo Sepé.


 


Passados 250 anos, o que sobreviveu e atravessou os tempos até nossos dias são as imagens das paredes da catedral semi-destruída – as Ruínas de São Miguel – e a memória do índio valente que tombou lutando para defender seu território – Sepé Tiaraju.


 


A catedral de São Miguel é um símbolo vivo de ruínas mortas. Sepé é o símbolo vivo das ruínas vivas, das gentes excluídas, pobres, exploradas, esquecidas, desprezadas, teimando em buscar seu lugar ao sol, em um pedaço de terra repartida, em um emprego digno, em uma infância decente, em uma velhice respeitada, em sua dignidade reconhecida. As ruínas de pedras estão em São Miguel das Missões. As ruínas de gente estão nas favelas, nos campos, nas fazendas, nas matas, nas cadeias, nas ruas, embaixo das pontes, nas fábricas, nas vilas, nos barracas de lonas pretas dos acampamentos, nas áreas indígenas, nas beiras de rios e nas beiras de estradas. E continuam vagando pelo sul da América grupos guaranis, herdeiros de etnia e de sangue dos massacrados em Caiboaté, o corpo muitas vezes cambaleante mas o olhar sempre firme e fixo no horizonte, farejando e intuindo os sinais da utopia que não morre, de um dia chegar na terra sem males. Utopia tantas vezes crucificada mas que sempre ressuscita do meio dos escombros.


 


As ruínas de pedras são visitadas, fotografadas, filmadas, admiradas, transformadas em patrimônio da humanidade. As ruínas de gente são escondidas, negadas, ignoradas, difamadas, reprimidas, condenadas, desprezadas, temidas. A catedral existe. Não há como negar a imponência daquelas paredes de pedra. É ponto turístico. Patrimônio cultural da humanidade.


 


Para muitos historiadores, Sepé não existe. É uma lenda. É fruto da imaginação popular. É criação da literatura. Mas ambos povoam nossa memória e marcam presença em nosso imaginário social e em nosso inconsciente coletivo. A catedral é memória visual repleta de beleza plástica. Sepé é memória perigosa carregada de sonhos revolucionários. Desenvolveu-se enorme habilidade em domesticar catedrais. Utopias revolucionárias são indomesticáveis. Por isto, melhor transformar seus símbolos em lendas e desacreditá-los.


 


Ainda não encarou-se de frente este nosso mal estar civilizatório. Há no inconsciente coletivo de nossa sociedade um sentimento de culpa mal resolvido. Por isto, para muitos, é mais fácil dizer que Sepé é uma lenda do que reconhecer que só existimos por conta do assassinato de um projeto civilizatório infinitamente melhor que o nosso, pois mais justo e mais alegre. E que o nosso só pôde ser construído sob as patas dos cavalos dos impérios de Portugal e Espanha pisoteando o sangue de Sepé e de sua gente, derramado em defesa de seu povo, de sua terra, de sua dignidade, de sua felicidade, de seu projeto civilizatório.


 


Na terra de todos, cravou-se o latifúndio. No trabalho feliz, cravou-se a escravidão e a exploração. Em vez de pão nas mesas de todos, luxo nas mesas de alguns, fome e miséria nos lares de muitos. Em vez de dignidade de todos, humilhação das grandes massas que precisam do favor alheio para sobreviver.


 


Sepé morreu lutando. O General português Gomes Freire venceu. A fúria expansionista dos impérios europeus, abençoados por uma Igreja aliada aos poderosos, fez sentir o peso de suas espadas. O massacre brutal destruiu milhares de lares e milhares de sonhos. Outro projeto de sociedade ganhava corpo. Sobre os destroços da civilização guarani plantaram-se sesmarias, que fizeram crescer injustiças, desigualdades, ódios, dores e mortes. E este projeto, com as adaptações dos tempos, impera até nossos dias.


 


Mas de tempos em tempos renasce das entranhas da terra, na organização e nas lutas dos pobres, o sonho e o projeto de um mundo de irmãos, uma sociedade de iguais, uma terra de justiça, uma vida de dignidade. Um projeto interrompido na vida concreta dos sete povos guaranis. As ruínas de pedras são intocáveis e como estão ficarão, se fielmente conservadas. São a prova visível da destruição promovida pelos impérios europeus. As últimas cenas da tragédia registram aventureiros bandidos, saqueando o que restou dos sete povos em busca dos pretensos tesouros dos jesuítas. Estes sim, lenda.


 


As ruínas de gente podem continuar sendo ofendidas, pisadas, esquecidas, desprezadas, feridas, reprimidas, dilaceradas, destruídas, vilipendiadas, mas sempre conservarão a possibilidade de reerguer-se, superar-se, ressurgir, até chegar o dia em que o sonho deixe de sê-lo, e se transforme em realidade viva.


 


E o povo gaúcho e brasileiro, reencontrando-se com suas raízes mais profundas, cravadas no chão fértil da cantante civilização guarani, retome a construção do projeto de sociedade justa e feliz interrompido a canhonaços nas coxilhas de São Gabriel do Rio Grande do Sul no fatídico fevereiro de 1756.


 


Frei Sérgio Antônio Görgen – ofm


 

Fonte: Frei Sérgio Antônio Görgen - ofm
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