01/02/2006

O anti-herói Sepé Tiaraju

Comemoração e resistência


 


Paulo Suess


 


No dia 7 de fevereiro de 2006, os dois Brasis comemoram os 250 anos que passaram desde o massacre de Sepé Tiaraju e dos Sete Povos das Missões. Comemorações oficiais desviam o olhar crítico dos cidadãos da administração pública para mitos fundadores, gestas heróicas, promessas de glórias futuras nas quais “a festa vai rolar”, segundo o script das elites, sem participação do povo. São cultos ao esquecimento, liturgias que desarmam os guerreiros homenageados e se apropriam de sua causa.


A comemoração do Brasil dos movimentos sociais adverte para o fundo ideológico das palavras “fraternas” de ordem e dos outdoors da história oficial. Exige que a prática de acender duas velas, uma para Deus e outra para o diabo, se transforme numa opção pelas vítimas e pela ruptura que a sua causa exige. Sepé, o anti-herói dos impérios ibéricos e das Missões, adverte para o desequilíbrio de estruturas políticas que exigem dos povos indígenas e dos pobres, para a sua sobrevivência, heroísmo.


 


1. Cenários de uma comemoração fracassada


Ao comemorar o assassinato de Sepé e a destruição dos Sete Povos das Missões, é importante lembrar alguns cenários produzidos por ocasião do V Centenário da Conquista que possam servir de advertência.


 


Destruição do “Monumento à Resistência”


Próximo à cruz de aço, que o governo federal tinha instalado, no dia 17 de março de 2000, na terra indígena Coroa Vermelha/BA, os Pataxó estavam construindo um “Monumento à Resistência”. Na noite do dia 4 de abril, um batalhão de mais de 200 policiais militares, sob o comando do coronel Wellington Müller, invade essa terra indígena. Um trator avança sobre o monumento indígena em construção, um mapa da América Latina que estava emergindo do chão da aldeia e, sob os protestos dos Pataxó e de outros grupos populares, destrói a obra.


 


Tropa de choque, gás lacrimogêneo, balas de borracha


Manhã, 22 de abril, chuva fina sobre Cabrália. A marcha de 2 mil índios, somando com outros participantes do movimento popular umas 5 mil pessoas, está se formando e saindo rumo a Porto Seguro. De repente, a tropa de choque da PM baiana atira sobre os participantes da marcha bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Gildo Terena, 18 anos, da Aldeia Campo Novo/MT, de braços abertos, andando ajoelhado em direção à tropa de choque, tenta evitar o lançamento de novas bombas contra os manifestantes. Depois, deitado no chão, é pisoteado pelo pelotão e, finalmente, senta no asfalto em prantos. Com ele, a reivindicação de outros 500 anos, e nele, todos os povos indígenas mais uma vez agredidos.


 


Despir-se dos 500 anos


Revoltados com a violência dos PMs, com grito rouco e canto de guerra, os Kayapó, sobretudo as mulheres, rasgaram com o facão, com as mãos, com os dentes suas roupas e as jogaram na estrada. Estavam ali andando rápidos pelo acostamento, corpos pintados, cabeças enfeitadas com penas de Arara, guerreiros altivos. Ao desnudar seus corpos e devolver as roupas que nunca eram suas, puseram a nu as encenações da comemoração oficial e disseram, simbolicamente: guardem suas roupas para o próximo carnaval e deixem-nos em paz.


 


Nau sem rumo – com os burros n´água


Dia 25 de abril, já com muito atraso, a réplica da nau capitânia de Pedro Álvares Cabral deveria sair para a pequena viagem entre Salvador e Santa Cruz de Cabrália. Quando as velas foram abertas, o mastro central, símbolo fálico do Brasil autoritário e machista, não resistiu à pressão do vento, quebrou e levou a réplica a deriva. Depois de ainda ter falhado o seu motor, a embarcação foi rebocada para o estaleiro na Praia de Inema da Marinha, em Aratu, região metropolitana de Salvador. Não chegou, como planejado, à encenação da Primeira Missa. Meses depois, a nau seria adaptada às exigências cenográficas do filme Desmundo, que narra a história de uma adolescente portuguesa que vem ao Brasil em 1550.


 


Encontro dos dois Brasis


Coroa Vermelha, dia de chuva, 26 de abril. Missa celebrada ao ar livre por Ângelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, e cerca de 300 bispos. Os bispos presidentes, ex-presidentes e vice-presidentes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) não participaram da celebração num gesto de solidariedade aos índios humilhados nos dias anteriores. Com certo atraso, Matalawê, Pataxó de 24 anos, conseguiu furar o esquema oficial em torno do altar e foi direto ao ambo. Iniciou sua “homilia”: “Hoje é um dia que poderia ser um dia de alegria para todos nós…”. Falou dos “500 anos de sofrimento, de massacre, de exclusão, de preconceito, de exploração, de extermínio. (…) Com tudo isso não vão impedir a nossa resistência. (…) Estamos de luto. Até quando?” Aos aplausos emocionados de uns seguiu o pedido de desculpas do bispo local de Eunápolis ao cardeal Ângelo Sodano pelas palavras de Matalawê. Dois setores de uma mesma Igreja, dois Brasis. O encontro entre esses dois Brasis é inevitável. Será sempre doloroso. Não precisa ser num campo de batalha, nem na prisão, nem no cemitério.


 


2. Reconstrução histórica


As comemorações dos 250 anos do massacre de Sepé Tiaraju com seus 1500 guerreiros guarani, têm um importante significado não só para o Brasil, mas para toda a América Latina. Os fatos, que levaram ao despejo os Sete Povos das Missões, estão num contexto geopolítico, já na época não só determinado pelas coroas ibéricas, mas também por França e Inglaterra.


 


Tratado de Madri (1750)


No início da conquista, o Tratado de Tordesilhas (1494) definiu a divisão do Novo Mundo entre Espanha e Portugal. Uma linha divisória passava, na sua extensão meridional, ao largo do litoral do atual Estado de Santa Catarina. Mas as conquistas de territórios continuaram e, no Tratado de Madri, de 1750, as Coroas Ibéricas decidiram reconhecer essas novas ocupações recíprocas. O Tratado de Madri, que foi um ajuste geopolítico de fronteiras baseado em critérios da Realpolitik, reconheceu a expansão do domínio português na Amazônia e a ocupação das Ilhas Filipinas pela Espanha.


No norte, a corrida em busca das “drogas do sertão” já tinha determinado a incorporação de grande parte da Amazônia ao império português; no sul, a descoberta do ouro fez o domínio luso avançar em direção ao oeste. A Espanha queria incorporar ao seu império a Colônia do Sacramento, uma cidade portuguesa fundada em 1680, em frente a Buenos Aires. Essa Colônia passou várias vezes do domínio de Portugal para o da Espanha e vice-versa. Devido à hostilidade espanhola, a manutenção da Colônia do Sacramento tornou-se dispendiosa para Portugal.


O Tratado de Madri previa a permuta da Colônia do Sacramento, que era dos lusos, com o território dos Sete Povos das Missões, dos espanhóis, na margem esquerda do Rio Uruguai. Na lógica de Estado, Portugal fez um bom negócio. Trocou por uma colônia, que era apenas uma cidade fortificada, um grande território, a metade de uma província que fazia parte das Missões Guaraníticas à margem esquerda do Rio Uruguai. Agora, o Brasil português, que bandeirantes, sertanistas, militares e religiosos criaram, foi legitimamente reconhecido pela Espanha. O Marquês de Pombal, desde 1750 primeiro-ministro de D. José I, em Lisboa, e seu irmão Mendonça Furtado, governador-geral do Grão-Pará, colheram alguns frutos indiretos do Tratado de Madri: o reconhecimento das ocupações portuguesas na Amazônia, a recuperação do poder temporal nas aldeias indígenas e a expulsão dos jesuítas de toda a América Latina.


Mas, no decorrer do tempo, ambos os lados ficaram insatisfeitos com o Tratado de Madri. Quando Joaquim Viana, cujo tiro matou Sepé, entrou, em 17 de maio de 1756, em São Miguel Arcanjo, exclamou maravilhado com as belezas dessa redução: “E este é um dos povos que nos mandam entregar aos portugueses? Deve estar louco o pessoal de Madri para desfazer-se de um povoamento que não encontra nenhum rival em Paraguai.”


Novamente, a realidade se mostrou mais forte. O Tratado de El Pardo (1761) suspendeu o Tratado de Madri e os Sete Povos voltaram à Espanha. Depois de permanentes disputas territoriais, em 1777, com o Tratado de Ildefonso, a Colônia e os Sete Povos ficaram mais uma vez com a Espanha. Para os herdeiros dos impérios, a situação ficou finalmente resolvida pelo Tratado do Rio de Janeiro, em 1828, com a criação do estado-tampão do Uruguai e a conseqüente delimitação das fronteiras. A Colônia do Sacramento se torna Uruguai e a terra dos Sete Povos pertence, definitivamente, ao Brasil. No início do século 19, a situação dos Guarani, no Brasil já bem poucos, continuava subordinada aos interesses econômicos imediatos da população local e das elites que se beneficiaram, nos respectivos Estados Nacionais, da independência. Os colonos luso-brasileiros aproveitaram os materiais dos prédios missioneiros para a construção de suas casas particulares. Ruínas testemunham a devastação da experiência das Missões.


 


Os Sete Povos das Missões


Na época da união das coroas ibéricas, de 1580-1640, precisamente em 1610, se deu a primeira implantação do projeto missioneiro no território que hoje pertence ao Brasil, na região de Guaíra, no atual estado do Paraná. Outros jesuítas chegaram ao Itatim, no Mato Grosso do Sul atual. Para se proteger das investidas dos mamelucos paulistas em busca de escravos, essas missões migraram para o sul, em direção ao Rio Uruguai e para as reduções do Tape, no Rio Grande do Sul atual. Em 1626, Roque Gonzáles S.J., com a imagem da Nossa Senhora da Conquista em punho, atravessou o Rio Uruguai em direção ao Rio Grande do Sul, fundando a redução de São Nicolau.


A partir de 1635, as reduções do Tape e as da margem esquerda do Rio Uruguai também foram atacadas. Os jesuítas conseguiram autorização para armar os índios. Na batalha de Mbororé, em 1641, os Guarani derrotaram quase 2 mil bandeirantes paulistas. Mas as reduções do Tape e da margem esquerda do Uruguai foram destruídas. Jesuítas e Guarani se mudaram para a margem direita do Rio Uruguai.


No início do século 18, os jesuítas retomaram a construção das missões do lado esquerdo do Rio Uruguai, formando os chamados Sete Povos das Missões (São Nicolau, São Luís, São Lourenço, Santo Ângelo, São João, São Miguel e São Borja). Essa era a área que a Espanha entregara ao Império Português.


Aos moradores da Colônia do Sacramento foi facilitado o transporte dos seus pertences à terra nova do território português ou permitida a permanência na Colônia onde se tornariam vassalos da Espanha. O trato com os moradores das Missões era diferente. O Tratado de 1751, art. 14, determinou que os 30 mil Guarani e os missionários tinham de evacuar as “povoações da margem oriental do rio Uruguai totalmente” e procurar outras terras no domínio espanhol.


Os Guarani dos Sete Povos eram súditos do rei da Espanha e dos governos de Assunção e Buenos Aires, para os quais prestaram serviços na construção de fortificações e defesa militar.. Os Guarani das Missões não aceitaram o despejo de suas terras. Lusos e espanhóis não aceitaram tentativas de mediação da parte dos jesuítas e partiram para uma solução militar. De 1753 a 1756, os Guarani resistiram ao exército luso-espanhol. Os jesuítas foram instruídos pelo padre Lopes Luís Altamirano, emissário do seu Superior Geral, que de sua parte se esperava obediência às exigências do Tratado de Madri. Uns poucos jesuítas, como Lorenzo Balda, cura de São Miguel, e seus dois auxiliares, Miguel de Soto e Diego Palácios, ficaram ao lado dos índios. A população missioneira ficou irritadíssima com a suposta falta de lealdade da maioria dos seus missionários.


Na fase decisiva dessa guerra, foram liderados por Sepé Tiaraju, corregedor (prefeito) de São Miguel Arcanjo, na época com cerca 10 mil habitantes. Sepé era índio missioneiro, provavelmente já cristão de terceira geração. Não substituiu valores fundamentais de sua cultura por virtudes secundárias de um cristianismo colonial, como submissão escrava ou obediência tutelar. Soube articular, temporariamente, uma espécie de Confederação Guaranítica. Evitava grandes batalhas. Era expert em guerrilha. A famosa frase “Essa terra tem dono e nós a recebemos de Deus e de São Miguel”, segundo alguns pesquisadores, se encontra nos arquivos do Exército Espanhol de Demarcação. Sepé a teria pronunciado em fevereiro de 1753, às margens do rio Camaquã, entre os atuais municípios de Bagé e Caçapava do Sul. De forma semelhante, a frase constava nas duas cartas encontradas com Sepé, na hora de sua morte. Pode ser lida como frase de efeito pelo povo sem terra e pelos defensores da propriedade privada. Mas poder-se-ia também ver nessa frase a convergência de um messianismo guarani e cristão. Num momento derradeiro, a intervenção de Deus e de Miguel Arcanjo é tida como tão segura que a morte iminente se torna improvável, leitura perigosa essa, porque, historicamente, todos os messianismos fracassaram.


No dia 7 de fevereiro de 1756, na entrada do mato, o cavalo de Sepé deu um passo em falso. Sepé caiu. Um soldado português o derrubou com uma lança. Joaquim Viana deu-lhe o tiro mortal. Com a morte de Sepé, Neenguiru assumiu o comando militar dos guerreiros missioneiros. Dois dias mais tarde, no confronto de Caiboatê, 1.500 guarani foram massacrados pelo exército que uniu portugueses e espanhóis..Na Barra do Rio Grande e em Buenos Aires os militares mandaram cantar um “Te Deum”. A maioria dos sobreviventes abandonou as Missões caminhando para a margem direita do Rio Uruguai. Na fronteira, os índios foram impedidos de levar seu gado e outros pertences. Outros foram levados pelos portugueses, vindo fundar as aldeias de São Nicolau de Rio Pardo, São Nicolau de Cachoeira (hoje no município de Cachoeira do Sul) e Nossa Senhora dos Anjos (hoje Gravataí). Depois da destruição das Missões, a situação jurídica voltava ao que era antes no rio da Prata. Também os jesuítas voltavam para aquilo que restava das Missões: casas queimadas, lavouras abandonadas, o gado selvagem no mato, índios errantes pela região. Recomeçaram tudo de novo, até a sua expulsão em 1767.


Os jesuítas, fiéis às coroas ibéricas ou em armas contra elas, ao lado dos Guarani, tiveram sorte semelhante aos índios. Pombal os considerou uma espécie de bode expiatório para todos os males da Colônia e um poder paralelo. Em nome da liberdade dos índios, atacou seu poder temporal nas aldeias. Em 1759, foram expulsos da América portuguesa e, em 1767, da espanhola. Pelo Diretório das Missões, de 1757, as missões são transformadas em paróquias, os missionários em párocos. O poder temporal dos missionários é substituído pelo poder temporal do diretor dos índios que, segundo Tavares Bastos, se tornou seu ladrão oficial. Os índios pagam a sua liberdade declarada com o dízimo ao Estado e com o sexto ao diretor. Foi estabelecido o serviço obrigatório dos índios para os colonos por um determinado pagamento. No século que seguiu à “emancipação pombalina” dos índios e à expulsão da Companhia de Jesus, os índios, que eram maioria na Amazônia e nos Sete Povos do Rio Grande de São Pedro, se tornaram minoria.


 


3. Avisos aos sobreviventes: lutar não é em vão


Seguem alguns lembretes para a comemoração do anti-herói Sepé Tiaraju. Anti-herói, porque lutou contra luso-brasileiros e espanhóis americanos; anti-herói, porque desaparece no meio de seu povo; anti-herói contra uma obediência em função da razão de Estado; anti-herói, porque questiona qualquer pertença nacional e religiosa; anti-herói, porque não confirma nada, questiona tudo. Assim, Sepé Tiaraju se faz mestre para as lutas populares e santo para as comunidades.


 


Comemorações


As comemorações em torno do massacre dos Sete Povos das Missões e de Sepé Tiaraju e de seu resgate do esquecimento e das explicações oficiais só têm um sentido: fortalecer o imaginário e a fé dos movimentos sociais num outro mundo possível, fortalecer a sua organização e resistência, e de escutá-los boquiaberto.


As comemorações não visam à construção de réplicas ou à reconstituição arqueológica de fatos históricos que explicariam a sua seqüência lógica. O massacre pode ser lembrado, não explicado. Mas a memória pode transformar o luto em advertência.


 


Solidariedade


No resgate histórico não há “destino” a descobrir nem “sentido escondido” a exumar, mas a possibilidade de mostrar o projeto de vida dos pequenos em andamento, em seu realismo, sem cultura pura ou classe redentora. Aos movimentos de solidariedade (de Igrejas, sindicatos, setores políticos da esquerda e de algumas ONGs) cabe contribuir para as rupturas sistêmicas e para a organização e autodefesa das classes marginalizadas. Nada surgirá do caos histórico como era antes, mas também nada será sem o antes.


 


Oportunismo sistêmico


Os movimentos sociais e os povos indígenas em particular chamam a atenção para o oportunismo e a parcialidade elitista do sistema político, jurídico e parlamentar. Mediante a globalização do capital e do mercado protagonizado por agentes locais, as democracias administradas no interior do Estado nacional se tornam cada vez menos capazes de garantir o bem comum e as conquistas históricas da modernidade.


 


Modernidade


Os movimentos sociais não representam uma alternativa à modernidade, mas seu resgate e sua complementação. Os povos indígenas, por exemplo, não são anti, extra ou pré-modernos, mas representam a cobrança das promessas da modernidade: autonomia, autodeterminação, subjetividade, racionalidade vivencial, articulação da diversidade cultural com a solidariedade social, o direito a visões diferentes do mundo e o reconhecimento dessas visões como parte integrante dos direitos humanos universais.


A identidade nacional ou continental, antes de ser um pressuposto, é uma meta a ser construída no plural, visando a um espaço/tempo, no qual as histórias milenares dos povos indígenas e africanos podem ser contadas sem ressentimento e sem ufanismo. Atenas, Jerusalém e Roma não são mais universais (ou modernos) do que Tenochtitlan, Tiwanaku, Marajó ou Luanda.


 


Tradições


Tradições culturais e crenças religiosas são importantes para a mobilização dos movimentos populares, desde que não se revistam de pretensões hegemônicas e perspectivas messiânicas que, respectivamente, impossibilitam a articulação com outros movimentos e enfraquecem a racionalidade política e a mobilização histórica. As mesmas crenças podem mobilizar gregos e troianos. No continente latino-americano, as cidades dedicadas a São Tiago, na conquista espanhola, e a Nossa Senhora da Vitória, na conquista portuguesa, testemunham a instrumentalização do imaginário religioso contra os povos indígenas. A invocação de São Miguel Arcanjo, por Sepé, não conteve os exércitos ibéricos naquela derradeira batalha. Contra a barbárie não existe milagre, nem santo.


 


Canonização


O povo já canonizou Sepé Tiaraju, invocando-o como São Sepé. Mas nenhum passado “glorioso” e nenhum herói solitário garantem fatalmente o futuro de um povo ou grupo social. Os que se empenham na sua canonização oficial devem avaliar a plus-valia popular de um São Sepé do calendário eclesial diante de um simples São Sepé, sem registro litúrgico oficial. Um mobiliza mais aliados ou produz mais força organizacional para os movimentos que o outro? Qual dos dois sustenta melhor o imaginário utópico?


 


Ruptura


As classes subalternas sabem que sua vida e seus projetos podem ser interrompidos a qualquer instante. Atrás de cada ato heróico, a regressão à barbárie representa um fato cotidiano. Basta ler o “Relatório de Violência do Cimi” para o ano de 2005, basta fazer uma visita aos Kaiowá Guarani, do Nhanderu Marangatu/MS, expulsos de sua terra homologada, casas queimadas, e agora acampados à beira da estrada.


Hoje, Sepé aponta para a barbárie cotidiana e para a necessidade da ruptura com o Sistema de Amparo ao Latifúndio (SAL), ao latifúndio do capital, do direito, dos meios de comunicação, da terra e da água. O SAL amargo do mundo globalizado ameaça transformar o hábitat da humanidade em mar morto. Ainda podemos jogar a cal da nossa palavra e organização sobre os cadáveres da mentira que estão boiando nesse mar. E, porque dissemos algo mordente e fizemos algo relevante, o SAL não conseguiu arrancar a voz da nossa garganta nem amarrar os nossos braços. Continuemos, posseiros da vida, caminheiros de estrada! Um Deus fará do barro desses cacos de São Miguel criaturas à sua semelhança.


 

Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
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