31/01/2006

A propósito da evangelização explícita

A Declaração “Dominus Iesus” revisitada[1]


Paulo Suess


 


O Decreto sobre o Múnus Pastoral dos Bispos na Igreja, do Vaticano II (28.10.1965), e a Declaração sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus, da Congregação para a Doutrina da Fé (6.8.2000), têm nomes semelhantes. Ambos falam do “Senhor” que caminha. Mas o Senhor caminha, nesses documentos, em direções diferentes. O Decreto do Concílio inicia seu discurso em nome do “Cristo Senhor” (Christus Dominus), que desceu do céu e veio, enviado pelo Pai, para salvar o seu povo (cf. CD 1). A Declaração da Congregação invoca o “Senhor Jesus” (Dominus Iesus), que subiu ao céu e, ao despedir-se dos seus, deu ordens e falou com “toda a autoridade” (DI 1). No Decreto, os bispos do mundo inteiro se lembram da responsabilidade para com toda a Igreja e com o mundo; e essa responsabilidade se desdobra na partilha e no especial cuidado “pelos pobres e humildes” (CD 6; 7; 13). Na Declaração, a Congregação para a Doutrina da Fé dirige-se a um público interno e enfatiza a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Católica. Falando em nome da Igreja, da qual é um setor minoritário, porém hegemônico, adverte aos “Bispos, teólogos e todos os fiéis católicos” (DI 3a) sobre “posições errôneas ou ambíguas” (DI 3b). Seus destinatários parecem, na Declaração, propensos ao “relativismo religioso” (DI 22a) e negligentes com o anúncio obrigatório de Jesus Cristo que é “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6; cf. DI 22a).


Ao falar em duas linguagens diferentes – o Christus Dominus falando ad extra e a Dominus Iesus, ad intra –, o leitor se pergunta se essas linguagens representam brigas entre setores internos da Igreja Católica ou meramente linguagens táticas que não comprometem a estratégia comum de anunciar ao mundo a salvação em Jesus Cristo. Mas esse mundo tem fome de pão e sentido que façam parte de sua salvação, e não de sentenças. Com a sua sensibilidade particular, a Congregação para a Doutrina da Fé não se dirige aos pobres; nem os menciona uma única vez, certamente, por ter a consciência de que se trata de uma “correção interna”, de uma “briga de brancos” que não atinge os pobres, cujo problema não é a fé, mas a fome. Em todo caso, o mundo das religiões que é, mormente, o objeto da Dominus Iesus, é o mundo dos pobres.


 


I. Sete advertências


Nas sete afirmações destiladas da Declaração Dominus Iesus, essa procura separar o trigo, representado pela Igreja Católica, do joio, representado por outras religiões e denominações cristãs. Tendo feito esse “discernimento”, aparecem, na leitura dos autores da Declaração, os contornos da Igreja Católica como única Igreja de Cristo.


 


1. Pluralismo religioso sem legitimidade eclesial


Na Igreja Católica existem pessoas que confundem o pluralismo de facto com o pluralismo de jure (DI 4a). O pluralismo das religiões que de fato existe não pode alegar um direito ou uma certa legalidade à sua existência. O pluralismo de fato, no interior de um estado leigo, é legal; no interior da Igreja Católica, porém, ele é ilegítimo e mentiroso, porque a sua legitimidade passaria pela coincidência com a verdade.


 


2. A verdade absoluta e única


A partir de Platão, passando por Plotino, Agostinho, pela filosofia medieval subordinada à Teologia Escolástica e por alguns místicos, assumiu-se na Igreja Católica o princípio da unicidade e veracidade do ser. Tudo o que realmente existe é um e verdadeiro, é belo e bom.[2] Em tudo o que é dividido pode se pressupor uma falta de ser, uma deficiência ontológica, uma falta de veracidade, de beleza e de bondade. Portanto, a “verdade absoluta” da fé é única e universal. Ela vale para toda a humanidade. Não pode haver duas ou mais verdades nem duas ou mais igrejas, credos ou religiões que, internamente dividam entre si a verdade. Portanto, a verdade absoluta é única e o pluralismo religioso é um ajuntamento de múltiplas inverdades.


 


3. A subsistência da verdade definitiva de Cristo na Igreja Católica


O lugar da verdade definitiva e completa é a Igreja de Cristo. A única Igreja de Cristo é a Igreja Católica (DI 16c). Prova disso é a objetividade e totalidade da verdade encontrada na revelação, transmitida na Bíblia. A posse e reta interpretação da Palavra de Deus é garantida pela sucessão apostólica. Esta garante a continuidade histórica entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica (ib.). Sucessão apostólica, tradição doutrinária, revelação divina e “toda a autoridade” garantida por Jesus “até a consumação dos tempos” (Mt 28,18ss; cf. DI 1a; 17c) garantem a verdade da fé ensinada pela Igreja Católica. As comunidades cristãs que não aceitam “a doutrina católica do Primado que, por vontade de Deus, o Bispo de Roma objetivamente tem e exerce sobre toda a Igreja” (DI 17a) não são Igrejas.[3]


 


4. As religiões sem eficácia salvífica


Entre as religiões não-cristãs e a Igreja Católica existe uma diferença essencial, não gradual. Nas religiões, podem-se encontrar fragmentos de eclesialidade e “lampejos” de verdade (DI 2b; Nostrae Aetate 2), “elementos de religiosidade que procedem de Deus”, como as “sementes do Verbo” (AG 11; NA 2; cf. DI 21b), saberes populares, meia-verdades e inverdades, que em seu conjunto são insuficientes para alcançar a salvação. Determinadas orações e ritos das outras religiões podem assumir um papel de preparação ao Evangelho; “não se pode, porém, atribuir-lhes a origem divina nem a eficácia salvífica ex opere operato, própria dos sacramentos cristãos. (…) Certos ritos, enquanto dependentes da superstição ou de outros erros (cf. 1 Cor 10,20s), são mais propriamente um obstáculo à salvação” (DI 21b).


 


5. Assimetria estrutural entre fé teologal e crenças humanas


Em decorrência da assimetria entre Igreja Católica e religiões não-cristãs, existe também uma assimetria importante entre os adeptos da Igreja Católica e os seguidores de outras religiões. Os católicos têm uma fé teologal. Os não-católicos seguem apenas crenças duvidosas (cf. DI 4a; DI 7c). A fé significa a aceitação da verdade revelada, na graça, enquanto a crença dos outros, sua credulitas, é uma construção cultural, portanto, meramente humana (ib.).


 


6. Salvação dos não-católicos mediada pela Igreja


O fato de que a Igreja Católica é o único “instrumento de salvação para toda a humanidade” (DI 22a) e Jesus Cristo o único mediador e caminho da salvação, não anula a vontade salvífica universal de Deus. Como se deve pensar a vontade salvífica universal de Deus para com os mais de 5 bilhões de pessoas que “não são formal e visivelmente membros da Igreja?” Para eles está prevista uma especial “graça” que provém de Cristo; uma graça misteriosamente concedida por Deus e mediada pela Igreja Católica (DI 20b, c; cf. AG 7). Ela, com seus mais de um bilhão de adeptos, é mediadora de uma graça especial para os demais. Através dessa construção, a Dominus Iesus garante virtualmente a unicidade e unidade da Igreja Católica que não é um caminho entre outros, mas o único caminho de salvação. As religiões não são caminhos complementares à Igreja. Nessa perspectiva, deve-se interpretar a fórmula: fora da Igreja não há salvação.


 


7. O diálogo inter-religioso como instrumento da missão ad gentes


O diálogo inter-religioso acontece entre posições de fé verdadeira e crenças duvidosas. Esse diálogo não substitui, mas conserva na íntegra, a necessidade do “perene anúncio missionário da Igreja” (DI 4a) e sua missão ad gentes (DI 22b), rumo ao “mistério da unidade” católica (DI 2b). A finalidade da missão é a participação e incorporação plena de toda a humanidade, de todas as religiões e de todos os cristianismos na Igreja única de Cristo, que é a Igreja Católica. O diálogo que faz parte da missão evangelizadora da Igreja é um instrumento da missão ad gentes (DI 22b). A negação do valor salvífico às religiões e a afirmação de sua “situação gravemente deficitária” não diminuem o “sincero respeito” da Igreja Católica por elas (DI 22a).


 


II. Cinco canteiros de obra


Para o conjunto das afirmações da Dominus Iesus, não existe uma evolução teológica entre o tempo antes e depois do Vaticano II, embora essas se apresentem como leitura autêntica do Vaticano II. Continuam os ressentimentos contra o aggiornamento, pensado por João XXIII e os padres conciliares, como princípio estruturante de uma leitura teológica inserida no tempo e no espaço, marcados pela presença de Deus, e de uma nova ética missionária no mundo.


Ressentimentos e o medo simplificam as causas e procuram respostas lineares no passado. Nas entrelinhas da Declaração escutam-se lamentações, como essas: O aggiornamento e as aberturas iniciados pelo Vaticano II não trouxeram nenhum benefício para a Igreja Católica. As estatísticas nos campos sacramental, vocacional, moral e social estão em livre queda. Apontam para falhas de disciplina, firmeza e clareza do anúncio. As falhas produziram, pelo relativismo como espírito do tempo e pela indefinição na pertença eclesial, uma crise de identidade. Ao pluralismo e relativismo pós-modernos, a Dominus Iesus tem poucas respostas: unicidade universal, identidade fundamental e doutrina compacta e compactada, como o chamado Catecismo Universal, agora na forma de um vade-mécum. Sendo assim, a Dominus Iesus dá a “tendências relativizantes uma resposta fundamentalista”.[4]


Nesse contexto, o diálogo inter-religioso parece um conchavo entre perdedores sem perfil eclesial e identidade. Os grandes vitoriosos, no campo religioso, as seitas, rejeitam o diálogo. Apostam, com certo sucesso estatístico, ao anúncio explícito que apresentam com um conteúdo fundamentalista e, em sua forma, com agressividade. Os autores da Dominus Iesus sabem do risco da violência inerente ao anúncio militante dos fundamentalistas. Não incentivam a violência, mas, tampouco promovem a paz, ao apontar, basicamente, só para aquilo que separa a Igreja Católica das religiões, numa perspectiva inversa à Nostra Aetate, que considera “o que é comum aos homens e os move a viver juntos o seu destino” (NA 1a).


A seguir aponta-se para alguns canteiros de obra eclesial, onde a conectividade retrospectiva e linear da Dominus Iesus não dá conta do seu propósito de se apresentar como a leitura única da tradição cristã; não dá conta das práticas eclesiais autorizadas, nem do mundo em que vivemos.


 


1. Conectividade colonial


A Dominus Iesus reabilita argumentos e práticas missionárias da época colonial, sem explicitamente falar delas. É o método da substituição de “crenças” pela “fé católica”. A missão dos Doze Franciscanos, por exemplo, que em 1524 chegaram à terra de Tenochtitlan/México para converter os Astecas, está plenamente respaldada pela Dominus Iesus. Fragmentos dessa catequese foram resgatados por Bernardino de Sahagún: “Por causa dos vossos pecados Deus enviou seus vassalos, os espanhóis, que vos conquistaram e fizeram miseráveis (…). Com isto fostes castigados, para que terminásseis as não poucas ofensas a seu coração (…). Muitos são vossos enganos que vos deixaram vossos pais. Nisso nada há reto, nada verdadeiro, nada digno de se crer, tudo isso são só palavras vãs. Mas tudo o que vos dizemos, tudo está no livro divino”.[5]


Ao legitimar, teologicamente, a maioria das práticas missionárias pré-conciliares, a Dominus Iesus desautoriza qualquer “complexo de culpa” ou atitude penitencial, causados por essas práticas. Pelo contrário, cobra essas práticas, novamente, e denuncia a sua ausência como relativismo e laxismo.


 


2. Conectividade contemporânea


A Igreja Católica respeita e aproveita hoje a legalidade teórica do pluralismo, que é a base das democracias modernas, sem reconhecer a sua legitimidade concreta. A democracia moderna garante um espaço público a cada denominação religiosa para dizer a sua verdade, desde que ela não seja uma bandeira de guerra contra os que não partilham essas convicções. A democracia liberal permite, por exemplo, publicar e citar os Atos dos Apóstolos, onde Estevão chama os judeus de deicidas (cf. At 7,52). Mas os cristãos de hoje não podem mais chamar os judeus de deicidas e, ao mesmo tempo, prometer defendê-los contra qualquer forma de racismo. A linearidade bíblica pode tornar-se fundamentalismo grosseiro. Sob esse aspecto, a Dominus Iesus se torna refém de muitas de suas citações bíblicas.


Hoje, pode-se dizer sobre o Dalai Lama, em off ou num livro dirigido a um público interno, que ele está, sob o ponto de vista da fé católica, numa “situação gravemente deficitária”. Ao convidar esse mesmo Dalai Lama a Assis para rezar junto com o papa e outros líderes religiosos, já não se pode dizer a mesma coisa. E João Paulo II confessou, corretamente, depois do encontro de Assis, a sua convicção de que “toda a oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo, que está misteriosamente presente no coração dos homens” (RM 29a). Segundo o espírito da Dominus Iesus, João Paulo II teria tido a obrigação de um anúncio explícito diante dos representantes religiosos em “situação gravemente deficitária” e de convidá-los para aceitar “a doutrina católica do Primado que, por vontade de Deus, o bispo de Roma objetivamente tem” (DI 17a).


Hoje, a Dominus Iesus pode abertamente dizer que as religiões dos povos indígenas não têm “a origem divina nem a eficácia salvífica ex opere operato, própria dos sacramentos cristãos” (DI 21b). Como fica, porém, a situação do missionário e da missionária que convivem com um determinado povo indígena? Essa “verdade” não pode ser dita em público nas aldeias através de uma suposta evangelização explícita.


A luta pelo projeto indígena não se resume somente na luta pela terra como medida compensatória. O projeto indígena e a luta por sua autonomia incluem também a sua autonomia religiosa e teológica, hoje articulada na Teologia Índia. Recorrer ao Concílio de Trento para opor a “eficácia salvífica ex opere operato própria dos sacramentos cristãos” às religiões indígenas revela desprezo e desconhecimento: desprezo à gratuidade embutida na realidade sacramental pela ação do Espírito Santo e desconhecimento sobre a eficácia e gratuidade da vida ritual entre os povos indígenas e a presença das “sementes do Verbo” e do Espírito Santo em suas culturas (RM 28a).


Hoje existe um “consenso dos fiéis” (cf. LG 12a) de que seria ridículo o papa dizer ao Dalai Lama que este, sob o ponto de vista religioso, está numa “situação gravemente deficitária”. Também seria ridículo se os missionários entre os yanomami dissessem que a religião yanomami é salvificamente irrelevante. A verdade que não pode ser dita ou que pode ser dita somente a um determinado público interno já não corresponde ao critério da verdade, que é a unicidade, a universalidade e a simplicidade. Se não corresponde ao critério da unicidade, dúvidas sobre a sua deficiência ontológica são compreensíveis. A verdade divina não fala com duas línguas. Ela é simples (simplex) como a flor indefesa no campo.


Num belo artigo sobre O diálogo das religiões e a relação judeu-cristã, o Cardeal Ratzinger lembrou a vinculação que existe entre “verdade” e “pobreza”. E ele cita a Apologia de Sócrates em que este aponta para a sua credibilidade ao defender um Deus cuja defesa não lhe traz nenhuma recompensa social ou material: “Eu disponho de uma testemunha qualificada para a verdade do meu discurso, minha pobreza”.[6] No cristianismo, é a pobreza do próprio Deus, a pobreza da kénose, da encarnação, do presépio, da cruz e do pão eucarístico. A avalista da verdade absoluta de Deus é a pobreza e não a eficácia. “A pobreza é a verdadeira aparição divina da verdade”[7], escreveu o então Cardeal Ratzinger, e, a partir da teologia latino-americana acrescentaríamos: a pobreza na sua concretude dos pobres. Lugar da epifania de Deus, por excelência, são eles os crucificados da história, os que caíram nas mãos dos ladrões, os leprosos, os famintos e os irmãos e as irmãs menores de Jesus. Neles a Igreja reconhece “a imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (LG 8c).


 


3. Conectividade terminológica


Na Igreja Católica subsiste, segundo Dominus Iesus, a única Igreja de Cristo que é mediadora da salvação de todos os povos. Essa afirmação se baseia na Lumen Gentium (8b), em que não é dito que a única Igreja de Cristo é a Igreja Católica (identificação), mas que ela “subsiste na Igreja Católica”. O texto prévio apresentado aos padres conciliares ainda dizia que a Igreja de Cristo é a Igreja Católica. Esse texto foi modificado pela votação na aula conciliar que afirma a subsistência da Igreja de Cristo na Igreja Católica. Qual é a diferença?


A palavra “subsistência” está enraizada nas discussões sobre a Santíssima Trindade.[8] Nessas discussões se reservou a palavra “substância” ou “essência” para expressar o ser divino em sua unidade, e a palavra “subsistência” para expressar a sua trindade. A “substância” de Deus, sua unidade, se desdobra nas três pessoas divinas da Santíssima Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) em três diferentes “subsistências”.[9]


A palavra “subsistência” abre a possibilidade de expressar a essência (a substância) da única Igreja de Cristo em diferentes expressões históricas. A palavra “subsistência” deixou, portanto, um espaço hermenêutico aberto para diferentes maneiras históricas da catolicidade ad intra (o catolicismo romano é diferente do catolicismo latino-americano) e ad extra (a catolicidade que abrange outros cristianismos do movimento ecumênico) que o Concílio não preencheu. Afirmar, como a Dominus Iesus faz, que a Igreja de Cristo só está na Igreja Católica significa fechar a questão com a palavra errada. Invocar o verbo subsistit in e o substantivo “subsistência”, que nas discussões trinitárias foram escolhidos para caracterizar o Deus Trino, para expressar a unicidade entre Igreja de Jesus Cristo e Igreja Católica, significaria uma ruptura semântica, tanto com as discussões trinitárias originais como com o espírito do Vaticano II que, visando uma conectividade analógica, não fechou a questão.


Subsistir, portanto, quer dizer que a Igreja de Cristo encontrou uma maneira histórica de existir na Igreja Católica. A Lumen Gentium admite que também fora da visível estrutura da Igreja Católica se encontram vários elementos de eclesialidade, como “santificação e verdade” (LG 8b). A palavra “verdade” foi acrescentada no decorrer do debate conciliar. O Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio) acrescenta a esses elementos de eclesialidade ainda outros, como a palavra revelada, os sacramentos e alguns ministérios.[10] “Estes elementos, como dons próprios à Igreja de Cristo, impelem à unidade católica”, conclui a Lumen Gentium” (LG 8b); impelem, quer dizer, desafiam a pensar a “unidade católica” como unidade na “Igreja da Nova Aliança que fala todas as línguas, compreende e abraça na caridade todos os idiomas e assim supera a dispersão de Babel” (AG 4), uma unidade, na diversidade do Espírito Santo, mais ampla e universal do que a unidade da Igreja Católica de hoje. A catolicidade tem, como o Reino, uma dimensão escatológica. No momento em que ela é alcançada, nos confins do mundo e do tempo, ela também é superada e libertada de suas amarras, porque Deus será tudo em todos.


A Lumen Gentium fala da subsistência da Igreja de Cristo na Igreja Católica no capítulo sobre o “mistério da Igreja”. Não falar demais sobre o mistério pode ser uma maneira de respeitá-lo, ou, como Wittgenstein dizia: “Depois de superar as sentenças, vê-se o mundo corretamente. Sobre aquilo que não se pode falar, a gente deve se calar”.[11]



4. Concectividade apostólica


Na história da humanidade e da Igreja nada funciona na pura linearidade ou pela ruptura dicotômica. Entre linearidade e ruptura se instala a dialética histórica que assume os opostos através de um terceiro que novamente há de ser repartido para liberar a sua energia histórica. Nessa dialética, deve-se compreender a conexão com as origens da Igreja e sua inserção nos processos históricos. A transmissão das origens não passa por um oleoduto, mas por campos abertos. Na transmissão da história não existe magia, mas dialética. Isso vale para todos os elementos apontados para provar que a Igreja Católica é a verdadeira Igreja de Cristo; vale para os textos bíblicos, pelas tradições e definições doutrinárias; vale também para a própria sucessão apostólica. Se a posse e reta interpretação da Palavra de Deus são garantidas pela sucessão apostólica, como Dominus Iesus afirma, então parece que essa sucessão é o divisor das águas entre aqueles que pertencem e aqueles que não pertencem à Igreja de Cristo (cf. DI 16c).


Depois da morte e ressurreição de Jesus, o primeiro anúncio era o anúncio oral de testemunhas. Quando esse testemunho se tornou controvertido, nos meados do segundo século, surgiu a questão da legitimidade das testemunhas. O grupo dos “gnósticos” que afirmou ter uma mensagem secreta desde os tempos de Jesus se colocou contra os “eclesiásticos”. Irineu de Lion (+ 202), que se tornou decisivo nessa discussão, estabeleceu o princípio de que a verdadeira tradição estaria nas comunidades que podem estabelecer uma linha sucessória com um dos 12 apóstolos. A tradição apostólica, a verdadeira doutrina, segundo Irineu, está garantida na sucessão apostólica. Sucessão, como estrutura, e tradição, como conteúdo, são sinais, não automatismos mecânicos, da apostolicidade da Igreja. Mas, já no tempo de Irineu, houve brigas entre bispos que corresponderam ao critério da sucessão apostólica, e que se excomungaram reciprocamente da comunhão eclesial. Em resumo, a história mostra que pode haver bispos, sem linha sucessória, que se mantenham firmes na fé (China!), e que bispos, cuja linha sucessória até os apóstolos era comprovada, se tornaram heréticos. Portanto, a sucessão apostólica não funciona como um oleoduto que automaticamente garante a continuidade histórica entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica.[12] Na construção conceitual da Igreja Católica e de sua ortodoxia, o sensus fidelium – dispensado pela Dominus Iesus – era um elemento importante, reassumido pela Lumen Gentium: “O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se no ato de fé” (LG 12a).



5. Conectividade prospectiva


Também um documento, que visa disciplinar e corrigir práticas consideradas relativizantes no interior da Igreja, não pode perder totalmente a perspectiva ad extra na dupla dimensão de servir a Deus e ao mundo.


O diálogo inter-religioso não pode ser abolido nem assumido como um anexo metodológico da missão ad gentes. O diálogo inter-religioso tem estatuto próprio. O Vaticano II “exorta por isso seus filhos a que, com prudência e amor, através do diálogo e da colaboração com os seguidores de outras religiões, testemunhando sempre a fé e a vida cristãs, reconheçam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e morais, como também os valores socioculturais que entre eles se encontram” (NA 2c).


A Dominus Iesus deve ser lida não como um documento substitutivo dos textos conciliares, mas no interior do espírito do Vaticano II, que reconhece nas religiões a experiência de Deus e o valor salvífico (cf. LG 16; AG 7; GS 22). Sem esse reconhecimento, a Igreja Católica abriria mão de sua catolicidade, se isolaria e atestaria a si mesma a incapacidade de dialogar. O medo da dissolução pós-moderna da identidade, em benefício de uma arbitrariedade casual e experimental sem limites e sem rumo, é, de um certo modo, a negação da presença de Deus no barco da história. Entre a determinação de testemunhar a própria fé e de evangelizar explicitamente os outros, e o fanatismo intolerante e o fundamentalismo guerreiro, muitas vezes, há apenas uma tênue linha de separação.[13]


Ao traçar linhas normativas, no mapa da moralidade pública, para a relação entre Igreja Católica e religiões não-cristãs, deve-se conhecer os extremos e seus perigos: o realismo substancialista da afirmação de valores e o relativismo subjetivista de sua negação. Como sabedoria pedagógica e pastoral se impõe


a) enfatizar questões e soluções comuns entre Igreja Católica e as religiões não-cristãs em articulação com a comunidade ecumênica; é a conectividade evangélica de S. Paulo no Areópago (At 17,23.27);


b) esclarecer questões e soluções não-aceitáveis por ambas ou por uma das partes que exigem, subjetivamente, a “conversão” dos outros; como os ídolos e os falsos deuses estão por toda parte, essa conversão é não somente uma exigência ad extra (cf. AG 13), mas também ad intra: a Igreja que vive “sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação” (LG 8c);


c) aprofundar questões e soluções de uma conectividade analógica possível que podem gerar uma aproximação progressivo no caminhar comum pelo mundo.


Preceitos ou normas de identidade que ultrapassam o discurso de um etnocentrismo privatizado, endogâmico e ufanista, estão necessariamente ancorados em relações afetivas e jurídicas, em relações de amor e justiça, com a esfera pública da alteridade. O mapa das múltiplas identidades da sociedade pluricultural é um bem comum e é um subsídio importante para uma agenda política mais ampla.


[Publicado em: Perspectiva Teológica, 37 (2005) 407-417.


Foi publicado também como livro digital junto com outros textos e autores em: www.libroskoinonia.org/ ]


 








[1] CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. A data de sua publicação, 6 de agosto de 2000, é não só a Festa da Transfiguração do Senhor, mas também o dia da triste comemoração de 55 anos da bomba atômica sobre Hiroshima. – Este texto será posteriormente publicadona Coleção “Livros Digitais Koinonia”.



[2] Omne ens est unum, verum, pulchrum et bonum.



[3] Communitates ecclesiales (…) Ecclesiae non sunt (DI 17b).



[4] Kessler, Hans. Der universale Jesus Christus und die Religionen. Jenseits von „Dominus Iesus“ und pluralistischer Religionstheologie. In: Theologische Quartalschrift 181 (2001/3): 212-237, aqui 223.



[5] Cf. SUESS, Paulo. Conquista espiritual da América Espanhola. 200 documentos – Século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 434s; 470.



[6] Platão, Apologia, 31c.



[7] RATZINGER, Joseph Kardinal. Der Dialog der Religionen und das jüdisch-christliche Verhältnis, in: IDEM, Die Vielfalt der Religionen und der Eine Bund. 3. ed., Bad Tölz: Urfeld, 2003, p. 93-121, aqui 116.



[8] Mía oùsía (μία оύσία), treis ùpostáseis (τρείς ύπоστάσείς): uma substância, três subsistências (una substantia, tres subsistentiae) ou uma essência (homousios = consubstancial) e três maneiras de existir que são as três pessoas da Santíssima Trindade. Cf. BEIERWALTES, Werner. Platonismus im Christentum. Frankfurt a.M.: Klostermann, 1998, p. 25-40.



[9] Cf. loc. cit.: A substância subsiste de três maneiras: “substantia subsistat tripliciter”.



[10] Cf. o respectivo comentário de Aloys Grillmeier, in: Lexikon für Theologie und Kirche, Bd. 12, Das Zweite Vatikanische Konzil, Teil I, Sonderausgabe, Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1986p. 173-175



[11] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus lógico-philosophicus, n. 6,54 e 7.



[12] Cf. NEUNER, Peter. Ökumenische Theologie. Die Suche nach der Einheit der christlichen Kirchen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1997, p. 229 ff.



[13] Cf. Cf. a contribuição importante do cardeal Lehmann, por ocasião da abertura da Conferência Episcopal Alemã, no dia 23.9.2002. LEHMANN, Karl Kardinal, Das Christentum – eine Religion unter anderen? Zum interreligiösen Dialoga us katholischer Perspektive, sobretudo p. 4-8.12-20, in: http://dbk.de/presse/pm2002/pm2002092301.html (8.8.2005).

Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
Share this: