31/01/2006

2o Seminário Nacional sobre Inculturação da Liturgia em Meios Indígenas

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – Equipe de reflexão litúrgica


2o SEMINÁRIO NACIONAL


SOBRE INCULTURAÇÃO DA LITURGIA


EM MEIOS INDÍGENAS


 


O 2o  Seminário Nacional sobre Inculturação da Liturgia em Meios Indígenas foi realizado na Chácara do CIMI, em Brasília, DF, de 31 de agosto a 2 de setembro de 2001.


 


Começamos os trabalhos do primeiro dia às 10h. Após um breve momento de invocação ao Espírito Santo, D. Geraldo Lyrio Rocha, Responsável pela Dimensão Litúrgica na CNBB, tomou a palavra para agradecer ao CIMI a acolhida que o grupo recebera. Lembrou a todos que a pretensão do  Seminário não era a de elaborar um novo ritual, mas  dar continuidade à reflexão a respeito das questões antropológicas e teológicas do processo de inculturação. Para esse 2o Seminário – lembrou D. Geraldo – foram também convidados o Setor de Cultura e a Dimensão Missionária da CNBB.


 


P. Marcelino Sivinski, assessor do Setor de Liturgia, combinou o horário e a condução dos trabalhos do dia. O trabalho de secretaria ficou sob a responsabilidade de João Bosco e Pe. Luiz Baronto. As celebrações foram preparadas pela Ir. Neiva, Eurico e P. Osmar Bezutte. Houve a seguir a apresentação dos participantes do encontro.


 


P. Marcelino lançou para o grupo a seguinte pergunta: QUE OBJETIVO NOS PROPOMOS? Para respondermos à pergunta foi feita uma leitura do relatório do 1o Seminário  a fim de que houvesse uma continuidade na reflexão.


 


Alguns se manifestaram, tentando pontualizar as principais questões levantadas e deixadas pelo 1o. Seminário. Foram elas:


 


1. Quem vai realizar o processo de inculturação? Quem será o protagonista? Qual o papel do missionário no processo?


2. Qual o conceito que temos de evangelização?


3. Numa liturgia inculturada, qual o papel do agente externo?


4. Nas experiências concretas, que elementos podem servir como ponto de partida?


5. Como levar em conta a história do processo de evangelização das nações indígenas já que essas histórias não são homogêneas?


6. Como refletir sobre a questão do tempo na liturgia, uma vez que cada cultura tem uma forma de compreender o tempo?


 


Após esse levantamento, seguiu-se o almoço. Reiniciamos às 14h,  buscando explicitar melhor os objetivos do encontro. Foram apresentadas algumas sugestões:


 


1. Princípios e critérios da inculturação da liturgia.


2. O papel do missionário e o protagonismo da comunidade.


3. Aprofundar algum tema emergente do 1o Seminário.


4. Critérios litúrgicos e critérios antropológicos da inculturação da Liturgia.


5. Onde queremos chegar? Liturgia para cada nação indígena ou uma liturgia brasileira penetrada por elementos das culturas indígenas e afros?


6. Qual será a nossa contribuição para desencadear o processo de inculturação da Liturgia no Brasil?


 


Tendo havido longo debate a respeito do assunto, chegou-se ao seguinte consenso no que diz respeito ao objetivo do 2o Seminário: Explicitar os pressupostos fundamentais para o processo de inculturação da liturgia em meios indígenas.


 


Definido o objetivo, o grupo passa a escutar a contribuição do assessor P. Paulo Suess:


 


PRESSUPOSTOS ANTROPOLÓGICOS DA INCULTURAÇÃO DA LITURGIA


P. Paulo Suess


 


Pode-se  partir de uma liturgia milenar (a romana) para ver como os indígenas podem celebrar essa liturgia;  ou então pode-se  partir do pressuposto que  há povos milenares (os indígenas) que têm já sua liturgia, isto é, seus ritos  e eu deseja-se  saber como eles assimilaram outra liturgia, que conheceram há 500 anos.


 


Quando falamos de liturgia indígena, de que liturgia realmente queremos falar? A liturgia é a dimensão mais difícil de inculturar. É mais fácil o missionário se inculturar, comer a mesma comida, vestir a mesma roupa… A liturgia é mais difícil porque carrega a vida do povo, sua visão de mundo, sua utopia.


 


Alguns elementos que não podem ser desconsiderados no processo :


 


O caráter festivo das celebrações indígenas


 


Na colonização, os missionários proibiram as festas porque não as entendiam. Os jesuítas proibiram os guarani de celebrar as festas da colheita. O povo indígena trabalha para celebrar. A finalidade era celebrar. Com a proibição, os índios pararam de plantar e começaram a passar fome. Por quê? Porque os missionários proibiram a festa, e sem festa já não havia mais porque trabalhar. Portanto não se pode substituir a festa. A festa é algo importante. De certa forma é holística, algo integrado.


 


A questão do tempo


 


A festa, por sua vez, exige tempo. Por isso para se celebrar com os indígenas é preciso ter tempo. Precisa-se de muito tempo para preparar e para celebrar. Isso é completamente diferente das nossas liturgias urbanas onde se fazem várias liturgias na mesma manhã, onde os padres celebram várias missas num único turno.


 


Como foi a primeira missa do Brasil? Pedro Vaz de Caminha descreve a imitação dos gestos que os índios fizeram durante a primeira Missa. Frei Henrique de Coimbra então sentencia que esses deveriam ser muito fáceis de evangelizar, porque repetiam os gestos do celebrante.


 


A diversidade


 


Cultura não está no sangue. Ela se aprende. A questão da inculturação nos leva à diversidade. A diversidade era vista pela teologia como conseqüência do pecado. Anchieta, Vieira etc. se referem à Babilônia para explicar as múltiplas línguas que encontraram entre os povos indígenas.


 


A diversidade é, portanto, um desafio. Gente para aprender tantas línguas, para fazer tantos ritos… Com Darwin veio à tona que o homem, enquanto criatura divina, só poderia ser entendido na diversidade. A evolução  à qual o ser humano experimenta é aperfeiçoamento. Isso é processo positivo e não de degeneração. Santo Agostinho e Tomás de Aquino não conheciam isso e os fundamentos da nossa Teologia foram estabelecidos por eles.


 


Por exemplo, as “reduções indígenas” significavam reunir os índios de novo, os que estavam dispersos. O princípio de Darwin é aceito, mas ainda não tiramos as conseqüências práticas disso. Essas culturas têm suas festas, seus deuses: tudo isso lhes serviu para atravessar milênios. Mesmo perpassadas pelo pecado (SD 13) – e todas são! – e é aí que entra a evangelização: para corrigir, para melhorar.


 


Se se quer  inculturar a liturgia,  tem-se  que diversificar os ministérios. Temos tantas culturas diferentes. Nem mesmo nas nossas celebrações litúrgicas  atingimos a todos. A diversidade não é tanto religiosa, é cultural. No Rio Negro, com mais de 6 línguas diferentes, o bispo não consegue aprender tantas línguas. Ele precisará de diversidade de ministérios e sua função será de articular (ministério da articulação) e não de homogeneizar. Como fazer liturgia inculturada se não  tivermos agentes inculturados?


 


SD 13: a inculturação é seguimento de Jesus. Ele se inculturou. O primeiro processo foi a endoculturação, aprender sua cultura. Jesus aprendeu, fez endoculturação. Em Jesus temos dois aspectos: enquanto homem, Ele aprende a própria cultura (endoculturação – cultura não está no sangue, precisa ser aprendida), enquanto Verbo encarnado Ele se incultura: Jesus veio de outro continente, o continente divino e despojou-se do  mundo da divindade. Neste sentido inculturação é seguimento de Jesus em sentido imperativo e não optativo.


 


A dificuldade está em não dispormos de um Evangelho aculturado. Não somos precisos quando falamos de “evangelizar culturas”. Não se evangeliza a cultura, mas as pessoas. Não se evangeliza o capitalismo, mas os capitalistas. Pensando em evangelização das culturas,  evangeliza-se sempre a partir de uma cultura, e essa é dominante frente a uma cultura subalterna e dominada.  Tem-se um Evangelho dentro de uma cultura. Como despojar o Evangelho do cultural, que é normativo? Em todo processo existe o que é normativo, parabólico e legislativo. O que está no nível do Direito Canônico não está na inculturação. As parábolas não são normativas, são analógicas… podemos mudá-las. Muitas vezes brigamos pelo cultural porque não sabemos distinguir o relativo.


 


Na reflexão a respeito da inculturação da liturgia é importante partir da experiência concreta, e não tanto dos documentos. Tendemos a uma aproximação “a meio caminho”. Esse não é o caminho de Jesus. Jesus assume a carne. Ele não veio ao meio do caminho. Do ponto de vista evangélico não seria: vocês avancem dois passos para cá que nós avançamos dois pra lá. Essa não é nossa meta, fazê-los perder a cultura, mas fortalecer sua identidade.


 


A inculturação não é identificação. Não se trata de eu ir ao encontro dos índios para me tornar índio (um índio a mais, um evangelizador a menos).   Inculturar é aprender os códigos para anunciar o diferencial do evangelho nos códigos daquele povo. A festa é a maneira por onde passam todos os códigos e anúncios.


 


Inculturação é trabalhar com o culturalmente disponível. Duas opções: continuar o processo colonizador ou partir para a descolonização de nossas práticas religiosas. Os sacramentos, por exemplo, serão feitos com o culturalmente disponível. O que se tem feito até agora foi mais uma “folclorização”: vestem-se as roupas, mas a estrutura continua a mesma. Não basta mudar a língua, as roupas. É preciso ir além.


 


Todos somos atores e produtores da Liturgia. Não podemos pressupor uma necessidade do outro. Precisamos nos inculturar não tanto porque os outros precisam de nós, mas para garantirmos a vitalidade da nossa fé. O eixo da relevância da nossa presença no meio dos índios pode ser p.ex. a nossa parceria com eles na luta pela terra. Portanto, a relevância é o outro que determina e que contribui para o projeto de vida do outro e que a partir disso a evangelização pode avançar.


 


Considerações dos participantes


 


– Nem sempre há agentes de pastoral com dedicação integral.


 


– Como entender que a cultura não nasce no sangue? Se partimos do princípio que há coisas que já se aprende no berço?


 


R.: A cultura é uma herança social. O que mantém uma vida são os valores. Por exemplo, Jesus era de cultura patriarcal, nem por isso deixou de questionar essa cultura.


 


 Já que as culturas estão sempre perpassadas por estrutura de pecado, elas não precisariam do Evangelho?


R.: Depende de que ponto de vista. Do ponto de vista da cultura, não. Se sou um tukano, tenho uma cultura capaz de garantir a vida do meu povo. Não preciso falar de minha religião que me ensina que a natureza precisa ser cuidada e respeitada. Se o índio olha para a religião do outro que não acrescenta, mas ao contrário lhe tira dessa relação, ele vai dizer que não precisa da minha religião. Portanto, minha cultura não está imune do pecado e também não posso ter a pretensão de transformar a cultura do outro em cultura sem pecado.


 


Podemos dizer que  até mesmo a nossa leitura do Evangelho está perpassado da graça e do pecado. É preciso partir do mundo indígena para reler o Evangelho. Daí a importância da figura do missionário. Uma Igreja Indígena parece estar muito distante. Pela experiência, pode-se dizer que a “má notícia” é o assassinato, a perda da terra. E é a partir daí que eu começo a conversa. Enquanto cristão, eu coloco a minha visão a respeito daquele fato. Não se trata de improviso. É preciso um mínimo de referência e de acordo em respeito a algumas questões ligadas à vida. Uma vez determinados os pontos em comum, partiremos da realidade. Devo me apresentar como eu sou, relativizando minha visão, mas colocando-me como cristão. Cada um sabendo que a sua maneira de ver é relativa.


 


– Às vezes falamos de valores cristãos e achamos que eles são universais,  a ponto de que tenham de ser transmitidos aos povos indígenas.


 


R.: Valores são culturalmente vivenciados. Paz, amor, solidariedade se tornam culturais porque são vividos numa cultura. Portanto há maneiras diferentes de viver os valores culturais.


 


– O tempo é o momento do encontro com o outro. Não adianta falar só de Deus, do Evangelho. Na convivência de Jesus, Ele ia atrás das pessoas que mais precisavam, para comer com elas, estar presente. E assim ele mudava a idéia da pessoa. Assim também a Igreja deve ir ao encontro das pessoas.


 


– Nota-se a falta de confiabilidade da parte dos agentes externos. Enquanto os agentes de pastoral fazem celebração da Palavra, tudo bem. Quando pedem permissão para serem Ministros da Eucaristia ouve-se dizer: Vamos com calma! Mais cautela! Atenção, para não avançar tanto! A respeito das  vocações acontece a mesma coisa. Se o missionário fica apenas na articulação e não faz uma experiência profunda com os indígenas ele não será confiável. Antes a gente precisa ser confiável, para depois anunciar.


 


R.: O bom é que o Evangelho não tem uma cultura própria. Não faz exigências culturais em certo nível. Jesus poderia dizer: na Grécia é muito melhor! Mas Ele preferiu assumir outra, mais simples. O Evangelho não tem identidade cultural. Isso para nós é difícil de admitir porque o cristianismo tem uma identidade cultural.  Quando tratamos de exigências, elas procedem muito mais da Instituição do que do Evangelho. Mas nós não temos acesso ao Evangelho puro numa determinada cultura. Por isso nenhuma pode servir de modelo, de paradigma para as outras. Não existe uma meta-cultura cristã. O que existe é a possibilidade de viver cristãmente a própria cultura.


 


A questão da identidade. Jesus lembra: amar ao próximo como a ti mesmo. Portanto temos que primeiro gostar do que somos para ir ao encontro do outro. Nós só nos reconhecemos em contraste. A inculturação é para fortalecer a alteridade de ambas as partes. É para fazer vibrar este povo com os mistérios que anunciamos. Não é só para a cabeça, tem de ser holístico.


 


– Quem são os agentes? A comunidade? E onde fica o diálogo?


 


R.: Efetivamente na medida em que  uma comunidade indígena cristã assume o papel de expressar o Evangelho a partir de sua cultura. De qualquer forma, todo processo é comunitário.


 


 É preciso estar atento à diferença entre o conceitual e o celebrativo. O mundo indígena é mais vivencial, celebrativo. A teologia índia é uma conceitualização. É como fazer os índios fazerem uma apresentação. A inculturação visa sempre o específico, nunca o genérico. No específico está a identidade. Nossa presença evangélica quer fortalecer essa identidade. De 2000 anos para cá, Teologia é discurso. Para os índios, a Teologia é vivência, é celebração. Entre os Xavante não havia discurso.


 


Dois lados do processo: a inculturação do mensageiro (onde ele é o agente) e inculturação da mensagem (a comunidade é agente). Pensar no bilingüismo: falar um código universal e códigos particulares. Podemos fazer algo juntos, mas enfatizando o particular. Uma unidade articulada é mais forte do que uma unidade conseguida com a homogeneização de todos.


 


– Todo processo passa pela iniciação: nas culturas, na simbologia, na celebração. Hoje nossa dificuldade maior é a questão da iniciação, da catequese.


 


A inculturação requer muita reflexão. Cada vez que a gente pára e reflete mostra a necessidade de avançar,  de dar passos a mais.


 


1/9/2001 – 2o Dia


 


Após o café da manhã, reiniciamos os trabalhos com a oração da manhã às 8h. Em seguida, o P. Gregório Lutz apresentou uma reflexão sobre os pressupostos teológicos da inculturação. A seguir algumas idéias principais:


 


PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS A RESPEITO DA INCULTURAÇÃO


P. Gregório Lutz


 


Constatamos que inculturação é uma dimensão da ação evangelizadora da Igreja em todos os seus campos. Se a ação evangelizadora não é inculturada falta-lhe algo de essencial. O Documento de Santo Domingo diz que é especialmente pela liturgia que o Evangelho penetra no coração das culturas (SD 35). Vejamos como esse processo se desenvolveu ao longo da História da Salvação, da Tradição, e por fim da Liturgia.


 


1. Inculturação na História da Salvação


 


Na História mesma do evento Cristo, preparado no AT e que tem seu ponto culminante na Páscoa e tem sua continuidade na Igreja podemos visualizar o processo de inculturação.


 


No Antigo Testamento


 


Deus se revela num povo, numa cultura, numa religião (miolo de uma cultura aberta ao transcendente). Um exemplo concreto que nos mostra que o AT é um prelúdio para o NT é a celebração da Páscoa. E a própria Páscoa já é também um exemplo de inculturação. Os hebreus inculturaram sua fé em Deus libertador com ritos e crenças herdados dos cananeus.


 


A encarnação não tem finalidade em si, mas na Páscoa. Essa encarnação é a primeira inculturação. Também já na preparação, na eleição de um povo e na obra do Espírito Santo em Maria. Jesus se encarnou nela e através dela, de uma moça daquele povo escolhido. Ele nasceu homem e ela o educou junto a José, com quem Jesus aprendeu a ser carpinteiro. Em sua vida pública ele mergulhou com sua cultura, sua religião. Por causa dos problemas que seu povo passava, ele sentiu compaixão. Na capital desse povo ele devia morrer pois tinha se envolvido demais nos problemas da religião e até da política… portanto, totalmente INCULTURADO. ! Essa encarnação, primeiro analogado é um fato histórico único, irrepetível. É a inculturação mais pura possível. É o Evangelho em pessoa. É Deus mesmo que se comunica por nós e para nossa salvação.


 


Essa encarnação é modelo de qualquer outra inculturação. Mas, como já disse, ela não tem finalidade em si mesma. O Filho de Deus, por causa de nós, para conseguir a nossa salvação, desceu do céu e se encarnou. Portanto a finalidade é a nossa salvação. Ele se encarnou para estar presente sempre. Por isso ele envia  o Espírito para estar presente no mundo, sobretudo na Igreja.


 


A Páscoa é relação da nova e eterna aliança. Percebemos aí também a inculturação. Aquilo que ele celebrou e mandou celebrar. O sentido desse acontecimento é o restabelecimento da comunhão de Deus com a humanidade, a reabertura do acesso da humanidade a Deus e da comunicação de Deus conosco. Isso é o início da transformação escatológica da humanidade e do mundo. A superação da morte e nessa superação da morte – como nos explica Paulo -, Jesus é primícia e já nos atinge a todos e nisso consiste nossa esperança.


 


Jesus manda celebrar esta Páscoa e na última ceia Ele a celebra e diz: “Fazei  isto em memória de mim.” A SC diz que Ele enviou os apóstolos cheios do Espírito Santo não só para anunciar mas também para celebrar (e isso nos interessa no momento), sobretudo Batismo e Eucaristia. Estes ritos, considerando ainda antes da morte de Jesus, são ritos da religião do seu povo, o conteúdo e mistério que Ele mandou celebrar. Ele celebra e manda celebrar de modo inculturado, na maneira do seu povo celebrar, embora com este novo conteúdo.


 


Chega Pentecostes e aí podemos ver a descida do Espírito Santo para ficar presente na Igreja. Quando morreu na cruz, João diz que Jesus entregou o Espírito. Era a sua hora e aí nasce a Igreja. Lucas descreve isso de outro jeito e sabemos como ele descreve. Em todo caso, João usava mais uma simbologia da religião do seu povo, e Lucas  uma outra linguagem, tudo bem inculturado! Assim então nasceu a Igreja! Isso é claro, no dia da Páscoa (cf. Jo 20,21) ele explicita essa entrega do Espírito na cruz, dizendo “como o Pai me enviou eu envio vocês. Recebam o Espírito Santo.” O Espírito é dado para missão. Em Pentecostes não é diferente. O Espírito Santo vem e começa a Igreja, Corpo Místico. E aí vem logo em seguida a celebração. Que devo fazer? Ser batizado…e logo foram 3000 os batizados – relata Atos dos Apóstolos. Tudo isso em imagens e acontecimentos que são da cultura e da religião, com esse novo conteúdo.


Vemos agora no conjunto: Encarnação, Páscoa e Pentecostes como autocomunicação de Deus que é a história da salvação e essa história continua na Igreja. Isso sempre acontece de uma maneira inculturada senão ela nem poderia ser experienciada por nós. Se Deus se comunicasse conforme a natureza dele nós não poderíamos conhece-lo. Mas ele se faz homem como nós e assim ele se comunica para que nós possamos perceber a presença dele e de outro lado nós não podemos dar nossa resposta a ele a não ser em nossa linguagem, não só verbal, mas em tudo que somos e fazemos. Também essa contínua inculturação é obra do Espírito Santo. Não mais como encarnação, Páscoa ou Pentecostes, mas como processo contínuo. Agora estamos no Tempo da Igreja e aí observamos que a inculturação é sempre uma dimensão da evangelização.


 


2. Inculturação na Tradição


 


Podemos constatar que Tradição sem inculturação não é Tradição autêntica. Inculturação e Tradição não são opostas, mas estão juntas. Ambas estão na continuidade da autocomunicação de Deus que continua sendo operada pelo Espírito Santo. Deus continua se comunicando pela ação evangelizadora da Igreja, sobretudo  na Liturgia. Tudo por força do Espírito Santo. Deus se comunica e nós respondemos a Ele no Espírito, e com a nossa vida. E assim, estamos dentro da Tradição que queremos enfocar. Sem inculturação, a Tradição é algo fixo, petrificado.   Isso é decadência da Tradição genuína. Pois esta deve ser acompanhada da inculturação, que é seu princípio dinâmico. Ela acontece sob o influxo e a companhia do Espírito Santo. Ao dizermos Tradição, é preciso salvaguardar o legado de Jesus, da Igreja apostólica, da Igreja em sua origem, mas sempre comunicável e respondível na situação concreta de determinadas épocas e situações, portanto sempre inculturado, senão o encontro, a comunicação e a comunhão entre Deus e nós, e a aliança de vida não podem acontecer plenamente.


 


O papel do missionário


 


Qual a finalidade da missão da Igreja a partir de Jesus Cristo? Lembremos alguns textos: “Eu vim para que todos tenham vida”. Mas ele disse em “plenitude”. De certo ponto de vista é verdade que as culturas não precisam do Evangelho, podem viver assim como são.  Mas, e viver em plenitude, com consciência da vida em plenitude? Isso é diferente?


 


“Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho Único para que todo que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Vendo, não só a Encarnação, mas a Páscoa como revelação de Deus, isso não seria um valor? Poder responder desse jeito não é um valor? Também como Jo 12, 32: se que Ele queria congregar na unidade os filhos dispersos… Podemos notar isso como necessidade das periferias… que alegria que isso dá quando podem se reunir…


 


“Do seu coração jorrou sangue e água”. A Tradição diz que dali nasceram os sacramentos da Igreja: Eucaristia e Batismo, e assim foi concebida a Igreja. Jesus transmite essa missão: “como o Pai me enviou eu também envio vocês”. Aquilo que Ele viveu, Ele transmitiu e essa é nossa missão que os apóstolos e a Igreja assumiram. Ele evangeliza (cf. Rm 15,16), para que os pagãos se tornem uma oferenda bem aceita, santificada no Espírito Santo. Ele considera os santos capacitados para a obra dos ministérios, para a edificação da obra do Espírito Santo, até que cheguemos ao conhecimento do Filho de Deus, à estatura de Cristo, em sua plenitude (Ef 4,12-13). Este estado de adultos… se pudermos ajudar que se consiga isso, vale a pena ser missionário!… A própria criação espera ser libertada da escravidão e da corrupção (Rm 8,21).


 


Tudo isso para dizer que Jesus, que amou até o fim, que até queria ser um sacrifício de libação para a santificação, para nos levar à plenitude do ser.


 


Aqui termina a primeira intervenção do assessor. O grupo foi convidado a reagir à colocação, com perguntas e complementações.


 


– Como entender que a liturgia ficou petrificada?


 


R.: Trento não deu tanto definições sobre as celebrações, mas o mesmo Concílio definiu tanta coisa, fixou e determinou tantos anátemas que aí parou. Por exemplo, na publicação do breviário, Trento determinou que todos deveriam rezar assim e que nunca mais seria mudada essa forma. Assim também aconteceu com o missal. Esse fixismo impediu inculturação.


 


– Que motivos levaram ao fixismo ?


 


R.: A grande questão do debate na época era a questão dos abusos. Os bispos, querendo reagir ao ataque dos reformadores, estabeleceram regras rígidas. Por exemplo, os reformadores diziam que  quem não comunga nas duas espécies, não comunga: aí o Concílio vai dizer que não!


 


– Quando olhamos a realidade indígena influenciada pela evangelização: o que influenciou no Brasil não foi tanto o Concílio de Trento, mas o catolicismo colonial. 75% do povo brasileiro tem religião colonial, anterior a Trento. 20% é já de Trento e 5% é do Vaticano II. Quando abordamos uma aldeia, temos de conhecer a história.


– Quando falamos em evangelização no Brasil, temos que nos dar conta do modelo que aqui predomina que é decadente, da Idade Média…


– P. Gregório falou do papel do missionário. Quando debatemos, devemos nos perguntar sobre o como e quando o missionário deve anunciar Jesus Cristo. Ter consciência do mandato é fundamental, mas a prática do missionário foi muitas vezes agressiva. Essa questão é polêmica. Há missionários que chegam a cada três meses e têm de batizar…


– É muito difícil, porque exige dos católicos em geral uma mudança de mentalidade, do nosso inconsciente, pois somos fruto de uma herança de séculos… É tão forte que alguns movimentos ganham êxito quando exploram as questões medievais (individualismo e devocionalismo…). Somos todos herdeiros desse processo.


– Por que batizamos? Essa pergunta que fazemos ao povo, deveria ser feita ao missionário que concede o Batismo. Sabemos que os negros muitas vezes eram batizados ainda no navio, antes de desembarcar, por uma razão, não teológica, mas política. Isso porque para os colonizadores portugueses, a unidade religiosa era a garantia da unidade política. O problema era um não católico que chegasse ao Brasil, porque isso rompia a unidade política do Império. Mas, nem sempre foi assim. Há outros exemplos também:  os jesuítas na aldeia de Nova Almeida (ES) fizeram um “centro de treinamento” de evangelizadores, partindo do princípio de que os índios seriam os evangelizadores dos próprios índios. Eles preparam um grupo de catequistas e eles saem pelas matas do Rio Doce e desapareceram por mais de um ano, quando chegarem os emissários para dizer que os catecúmenos estavam chegando para ser batizados.


– No processo dos 500 anos, a intervenção da Igreja Católica contribuiu para a dizimação de povos indígenas. Como entender o etnocídio? Qual o erro que levou à inversão? Teria sido o entendimento da  inculturação…


 


R.: A Igreja é santa e pecadora também na ação evangelizadora. Até hoje, a ação é permeada de pecado. O Concílio Vaticano II   buscou uma volta às fontes: Bíblia e Igreja primitiva. Com essa luz podemos ver muitas coisas e também o papel do missionário.


 


– Uma coisa é a reflexão que a gente faz, a outra é como e por que as pessoas se batizam…


– Como os índios mesmos descrevem o processo de inculturação a partir de quem aceitou entrar no processo? 


 


3. Inculturação na Liturgia


 


Um primeiro período a ser considerado é a Igreja dos Apóstolos. Antes, o problema p

Fonte: CNBB - Equipe de Reflexão Litúrgica
Share this: