31/01/2006

Romper o mal-estar na missão

Os povos indígenas e a Igreja pós-conciliar[1]


Paulo Suess


 


A história da relação entre povos indígenas e Igreja é marcada por uma sucessão de ‘desconfortos’ que, aparentemente e em escala menor, continuam até hoje. A partir desta constatação se impõe a pergunta se esses desconfortos, no passado, eram evitáveis e hoje, olhando para o futuro, são corrigíveis.


 


O ‘mal-estar na civilização’, segundo Freud, é expressão de uma ambivalência estrutural, proveniente de ideais de felicidade e prazer que nunca podem ser alcançados: “O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado; contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra.”[2]


 


Pode a missão escapar deste desconforto cultural e civilizatório embutido no cristianismo que quer, através do seu caminho de salvação, a felicidade de toda a humanidade, cuja realização está norteada pelo imperativo do ‘amor maior’. Como articular a totalidade quantitativa e qualitativa com o ‘amor maior’?


 


Este amor, antes de admitir a prática de violência contra os outros, oferece a própria face e a própria vida. Limitar o caminho da felicidade ao próprio caminho sempre levará à exclusão ou ao impasse de forçar os outros à incorporação na própria felicidade.[3] A suposta auto-exclusão e infelicidade da maior parte da humanidade que não faz parte da felicidade padronizada pelo cristianismo tampouco tranqüiliza as consciências cristãs. Qualquer atitude – de não ter feito o suficiente para a incorporação do outro ou de ter feito por meios de poder e violência – causa sentimentos de culpa. Assim o cristianismo se torna bode expiatório e causador de culpa por tudo: pelo excesso de zelo missionário cujos vestígios se encontram ainda na ‘guerra santa’ e na ‘intolerância religiosa’ e pelo relaxamento do zelo missionário supostamente presente nos paradigmas da ‘evangelização implícita’, do ‘diálogo inter-religioso’ e na formula que considera todo ser humano um ‘cristão anônimo’.


 


Por conseguinte, setores ‘zelosos’ e ‘relaxados’ são marcados por sentimentos de culpa e se acusam reciprocamente; uns pela violência dos meios aplicados, outros pela diluição e transferência de conteúdos para o campo social que lhes supostamente impede de pregar “todo o evangelho”. Ambos setores compensam seus sentimentos de culpa, muitas vezes, com discursos apologéticos e com ‘cara feia do sofredor pela causa’ que apontam para a escassez de felicidade em sua vida por falta ou por excesso de auto-estima.


 


Estas são algumas questões de fundo deste texto: a prática da missão sem culpa, sem sacrificialismo que está sempre na origem de uma violência, afinal, “viver e não ter vergonha de ser feliz”. Também o tempo pos-conciliar não venceu ainda o mal-estar na missão. Ele é o ‘demônio’ que nos procura atacar pelas costas. O venceremos, não pela fuga, porque ele é mais rápido, nem pelo confronto, porque ele é mais forte, mas pelo diálogo e a razão da nossa esperança.


 


1. O mal-estar


 


Seis anos depois do Concílio Vaticano II, a declaração dos antropólogos que participaram, de 25 a 30 de janeiro de 1971, em Barbados, do ‘Simpósio sobre a fricção interétnica na América do Sul’, causou um mal-estar muito grande na comunidade missionária.[4] Segundo os antropólogos, “o conteúdo etnocêntrico da atividade evangelizadora” das missões religiosas está baseado:


 


– no “seu caráter essencialmente discriminatório originado em uma relação hostil com as culturas indígenas que classifica como pagãs e heréticas”;


– na “sua natureza vicarial” e advocatória (paternalista);


– na sua potência econômica que fez as missões se converterem “em uma grande empresa de recolonização e dominação, em conivência com os interesses imperialistas dominantes”.


Em virtude desta análise, os antropólogos propõem “acabar com toda atividade missionária” e exigem sua revisão radical. Os missionários devem:


– “superar o herodianismo intrínseco à atividade catequizadora como mecanismo de colonização, europeização e alienação das populações indígenas;


– respeitar as “culturas indígenas, pondo fim à longa e vergonhosa história de despotismo e intolerância”;


– “acabar com a indiferença diante da constante espoliação de que os indígenas são objeto por parte de terceiros”;


– “pôr um fim na disputa entre confissões e agências religiosas pelas almas dos indígenas” que “os divide e conduz a lutas internas”;


– “suprimir as práticas seculares de ruptura da família indígena pelo internamento das crianças em orfanatos”;


– “suspender imediatamente toda prática de deslocamento ou concentração de populações indígenas com fins de catequese ou assimilação”.


Por fim, Barbados propõe medidas que hoje são amplamente respaldadas na prática pastoral:


– o protagonismo dos povos indígenas na definição de seu destino;


– a autodeterminação: “a libertação das populações indígenas ou é realizada por elas mesmas ou não é libertação”;


– a organização indígena pan-americana e alianças com grupos oprimidos;


– a assunção da vida indígena como uma das muitas “vias alternativas aos caminhos já transitados pela sociedade nacional”.


 


O Encontro Ecumênico de Assunção, em março de 1972, com representantes de nove países, respondeu à Declaração de Barbados I (1971) e à sua proposta de uma moratória para a atividade missionária.[5] O Documento Final do encontro reconhece que “nossas Igrejas, mais de uma vez, têm sido coniventes ou instrumentalizadas por ideologias e práticas opressoras do homem”. Mas, segundo o documento, os erros históricos não anulam a razão de ser da Igreja, que tem a missão de “descobrir a presença de Deus Salvador em todo povo e cultura”. Por fim, os missionários reunidos em Assunção se comprometem a abrir espaço para o diálogo e a participação dos próprios índios na pastoral missionária que deverá visar uma “libertação integralmente humana e profundamente cristã”.


 


De fato, não era difícil apontar missões cuja atuação, na época, confirmou as denúncias de Barbados. Ainda em 1978, o missionário e antropólogo Alcionílio Brüzzi Alves da Silva, por exemplo, insistiu no imperativo civilizatório da missão: “Em nossas freqüentes excursões de exploração e estudos desde 1947, temos não sem emoção nossa, verificado uma ânsia de civilizar-se por parte daqueles indígenas, ânsia que se traduzia algumas vezes no pedido insistente que ficássemos entre eles.”[6] O missionário que passou praticamente toda a sua vida profissional nas missões do Rio Negro (AM), afirma sem hesitação:


 


“Praticamente as Tribos do Uaupés não apresentam religião alguma. E, conseqüentemente estão sob o peso asfixiante de crenças e práticas mágicas. Dispensa provas a vantagem de uma convivência longa (…) com pessoas de alta cultura e elevada religiosidade e moralidade, como os Missionários. E como são de lamentar-se os inconvenientes de contatos só com caboclos, semi-índios, semi-civilizados, marginais da civilização, da moralidade e da religião. (…) Quiçá melhor que o termo Catequese, se deva falar de um Processo Civilizador da Missão Salesiana do Rio Negro (MSRN).”[7]


 


O objetivo e o efeito da passagem pela missão é assim descrito pelo missionário:


 


“E voltam entre os seus ‘irmãos’ com a mente mais esclarecida, um conforto material maior, uma crença no Deus Criador do céu e da terra, Senhor, Juiz e Pai, e uma esperança de uma velhice menos triste, alentada pelas esperanças de uma vida futura feliz e sem termo.”[8]


 


E a respeito dos destinatários preferenciais desta missão, o missionário defende antigas práticas:


 


“Os maiores esforços devem ser dirigidos para a geração nova. Para esta a MSRN procurou criar no mais longínquo da selva amazônica um ambiente de civilização, onde, sem atritos, sem violência, o indígena vá assimilando, quase sem o perceber, uma civilização humana, cristã e brasileira. São os internatos, aos quais a criança, filha de pais indígenas, talvez se tenha apresentado mais nua na alma do que no corpo (…).”[9]


 


A missão civilizadora é a missão das ‘melhores intenções’. “Erraram? Pode ser… Mas amaram!”, exclama o frei Leonardo Trotta, ao referir-se ao seus confrades mártires de Alto Alegre, e o padre geral, perguntado sobre a nota que ele daria aos seus confrades missionários do Maranhão, responde com generosidade: “dez com louvor”.[10] A missão civilizatória é, além de ser autocomplacente e apologética, também dispendiosa. Obras pesadas fazem parte de seu processo evangelizador:


 


“Este processo exige despesas de milhões, que são subministrados, em parte, pelas Verbas oficiais e, em parte, pelas doações de instituições eclesiásticas ou particulares. Exige, porém, muito mais do que isto; exige (…) um espírito de sacrifício que muitas vezes, raia pelo heroísmo, sacrifício que só um intenso amor de Deus, o amor da Pátria e o senso da fraternidade humana podem suscitar e manter.”[11]


 


A missão civilizatória silencia o elemento profético da evangelização e tenta resolver os conflitos na negociação ‘em alto nível’. Ela ganhou elogios dos governantes e reconhecimento das nunciaturas.[12] “O índio brasileiro, neste longínquo rincão de nossa pátria, não poderia ter melhor assistência”[13], avalia, em 19 de maio de 1974, o então presidente da Funai, general Ismarth de Araújo Oliveira, a Missão do Rio Negro. Silenciando os povos indígenas e jogando a sua memória de paixão e ressurreição no rio do esquecimento, a missão civilizatória evita os conflitos e endossa as explicações oficiais nas quais assassinatos se tornam ‘acidentes’ e conquistas, ‘encontros de culturas’.


 


Esta prática missionária não foi a prerrogativa de um ou outro instituto missionário. Existiam nas Américas da época também outras missões que igualmente confirmaram as denúncias dos antropólogos de Barbados. Poder-se-ia apontar missões no Nordeste e de paróquias, no Sul do país, com sua pastoral de ‘bugres’. Hoje, setores significativos da Igreja desenvolvem uma nova pastoral no espaço conflitivo entre as pulsões de vida (Eros) e destruição (Tanatos). O mal-estar na missão não se limita ao mal-estar com determinados setores eclesiais que negociam a paz (o suposto ‘bem-estar’) com os poderes no interior dos sistemas ou ao mal-estar sobre o paternalismo das ‘boas intenções’. Também a ‘missão libertadora’, em outro nível, não escapa do mal-estar inerente à luta pela vida que exige ‘sacrifícios’. Tanto um ‘Lunkenbein acomodado’ como um ‘Lunkenbein sacrificado’ causa mal-estar.[14] Ainda diante do cadáver do missionário e do índio na Missão Bororo, uma religiosa exclamou: “O que dirão agora os nossos benfeitores!”


 


Viver significa resistir contra a morte. As culturas são sempre culturas de resistência. E onde a missão se alia a esta resistência, exige abrir mão do aconchegante incesto eclesial, da menoridade auto-imposta (Kant) e da regressão prazerosa em benefício da exogamia, do caminho pelo deserto, da intervenção nos conflitos dos pobres, da presença nos confins do mundo, do cantar adulto em terra estranha. E quanto mais exogâmica a missão se torna, mais ela cria consciência de suas amarras endogâmicas, sistêmicas, incestuosas. No interior da Igreja, o ideal da exogamia missionária radical, Freud diria, o Eros, de uma ou outra maneira, fica sempre a meio caminho, por causa do Tanatos.[15] Eis o mal-estar na missão: a culpa pela incoerência pode-se transformar em apologia da mediocridade. O shalom, estacionado a meio caminho, pode-se tornar barbárie. A missão salvífica pode-se colocar a serviço da repressão. A missão exige um trabalho permanente de luto e de discernimento entre o desejo e os princípios de esperança e realidade.


 


2. O novo enfoque do Vaticano II














 


A pressão do mundo moderno e a abertura do Concílico Vaticano II (1962-1965) tiveram um impacto sobre o relacionamento entre Igreja e povos indígenas. Nem sempre o tempo pós-conciliar coincide com um tempo pós-colonial. Continuam até hoje práticas e mentalidades baseadas mais na eclesiologia do Vaticano I do que na Lumen gentium ou na Gaudium et spes do Vaticano II.


 


O espaço deste texto não permite a reconstrução histórica da relação entre povos indígenas e Igreja do passado. Mesmo assim é memória da paixão e ressurreição dos índios crucificados na história. Ao resgatar a memória dos condenados da terra da esfera do privado ou do proibido, um texto teológico é sempre também um texto político de reconstrução histórica e projeção utópica.


 


Mas os povos indígenas não são apenas ameaçados pelo simples esquecimento. Também a comemoração – a comemoração dos “500 anos” e o “jubileu 2000” podem servir de exemplo – pode ser uma maneira sofisticada e cultural de esquecimento. O culturalmente correto e lembrado, as respectivas ondas de uma época, o padrão de santidade que serve, em correspondência com determinadas prioridades políticas e espirituais de um pontificado, para as canonizações, e o mainstream da ciência são afluentes do rio Lete, rio do esquecimento. O que não foi publicado em inglês, de cinco anos para cá e em determinadas revistas de renome, recebe o carimbo do forget it.[16] Mártires e hereges, pobres e excluídos, outros e minorias que são a memória evangelicamente significativa de sua época, apontam para este imperativo de conveniência política do forget e delete.


 


A Igreja do Vaticano II se entende essencialmente missionária (cf. Ad gentes 2 e 6, Lumen gentium 1) e, ao contextualizar-se na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín (1968), se tornaria explicitamente libertadora. A novidade do Concílio não estava na missionariedade como tal. Também a cristandade colonial hasteava a bandeira da missionariedade. Missão significava expansão territorial e incorporação jurídico-espiritual num espaço de plenitude salvífica, representado pela Igreja. A missão da cristandade é endogâmica, narcísica, eclesiocêntrica. Ela anunciava o Reino como uma extensão da Igreja.


 


O Vaticano II, com sua compreensão da ‘natureza missionária’ da Igreja, transformou o olhar narcísico sobre si mesmo num olhar ad extra, sobre o mundo. A ‘essência missionária’ do Vaticano II é exogâmica. Ao enamorar-se com as necessidades concretas da humanidade, e compreendendo a humanidade como humanidade mutilada que clama, sobretudo nos pobres, por libertação, a Igreja gera novos filhos e filhas, não resultados de uma relação endogâmica e incestuosa com suas deformações de infantilidade e subserviência, mas filhos e filhas adultos e livres.


 


Os pobres, na compreensão original do Concílio, não são apenas destinatários de uma opção, mas povo de Deus e sujeitos de uma nova evangelização.[17] A obra da redenção que Jesus Cristo realizou “na pobreza e na perseguição” (Lumen gentium 8), a Igreja realiza “no seguimento do mesmo caminho” (ibid.). Só a Igreja dos pobres é capaz de realizar o projeto de Jesus na pobreza e com os pobres. Nos pobres, “entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus, a Igreja avança” (ibid.), se constitui povo de Deus e procura servir a Cristo.


 


Na práxis missionária junto aos povos indígenas dos anos pós-conciliares e pós-Medellín se percebeu, que a categoria ‘os pobres’ precisava ser matizada, porque os povos indígenas não cabiam simplesmente como ‘os pobres dos mais pobres’ nesta abordagem. No campo teológico-pastoral emergiu – primeiramente contra uma certa resistência dos ‘clássicos’ da teologia da libertação, depois já com mais tolerância – a categoria do “outro” e da “alteridade” que tem como base material e espiritual, não a carência social, como a pobreza, mas a riqueza cultural dos sujeitos históricos, sempre ameaçada, mas também base de sua resistência histórica. A sobrevivência, resistência e continuidade históricas dos povos não tem por base a sua pobreza, mas seu projeto de vida, codificado em suas culturas. As culturas sempre são culturas de resistência, memórias da vida que venceu a morte, já que a vida só existe na resistência contra a morte.


 


‘Pobreza’ e ‘alteridade’ não devem ser confundidas, nem separadas. Os outros-não-pobres representariam a classe média ou alta que construiu o seu estatuto de classe à custa dos pobres e os pobres-não-outros seria a generalização de uma classe social, onde a diversidade de projetos de vida se tornaria um obstáculo e não uma contribuição para o bem comum e a libertação de todos. Para enfatizar essa vinculação se tem adotado o conceito ‘pobre-outro’ ou, mesmo falando somente dos pobres, deve-se sempre subentender a sua diversidade cultural de projetos concretos. Por isso, as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Puebla (1979) e Santo Domingo (1992) – apesar de todas as ambigüidades da última – acrescentaram à ‘opção pelos pobres’ e à ‘Teologia de Libertação’ também as questões da inculturação, não como alternativa mas como complemento necessário. A comunidade eclesial nunca separou estes dois mistérios. A eucaristia é a memória do “Verbo que se fez carne” e do “mistério pascal”. O tempo solar de Natal aponta – no solstício da noite mais escura – para o processo da encarnação crescente. E na festa da lua cheia de Páscoa reflete a luz da libertação em Jesus Cristo sobre o mundo.


 


3. A leitura do Vaticano II pelo Cimi


 


Por causa da questão da terra e da cultura, o chão das aldeias indígenas é um sismógrafo que registra os mínimos tremores macroestruturais, sejam estes de natureza política, econômica ou religiosa. O Vaticano II foi um destes acontecimentos macroestruturais no interior da Igreja Católica que repercutiu fortemente nos microcenários pastorais. Suas intenções foram lentamente contextualizadas na América Latina em inúmeras conferências e encontros. O Vaticano II e, em seguida, a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (1968), em Medellín, ainda não tematizaram a ‘questão étnica’. Trataram, sim, da ‘promoção da cultura’ (Gaudium et Spes, 53-59), da ‘liberdade religiosa’ (Dignitatis Humanae), do ‘valor salvífico’ das religiões não-cristãs e do ‘diálogo’ com os seguidores de outras religiões (Nostra aetate, 2).[18] “Diálogo” é a palavra-chave do Vaticano II, como ‘libertação’ se tornou a palavra-chave de Medellín. O papa João XXIII, logo no início do concílio, em sua Carta Encíclica sobre a Paz dos Povos, de 1963, qualificou a descolonização dos povos como um “sinal do tempo”, que marca uma nova época.


 


A auto-compreensão da Igreja pós-conciliar como “essencialmente missionária” permitiu um olhar mais concreto para o mundo e sua realidade.  E essa Igreja missionária se compreende como povo de Deus em peregrinação, constituída pelos pobres que anseiam por sua libertação. Na diversidade de suas culturas codificaram seus múltiplos projetos de vida. Através da inculturação nestes projetos, a comunidade missionária vive o seguimento de Jesus. Na inculturação, o mistério da encarnação se contextualiza – no tempo, no espaço e na convivência – como lugar teológico (Santo Domingo, 13). Este é o pano de fundo teológico da nova presença missionária junto aos povos indígenas que norteou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).


 


Até o início dos anos setenta não existia uma pastoral indigenista de conjunto. A pastoral junto aos povos indígenas estava predominantemente sob a responsabilidade de prelazias, entregues a ordens e congregações religiosas. Estas, em sua maioria, obedeceram antes a lógicas congregacionais que a prioridades pastorais. Na época da fundação do Cimi, em 1972, a sociedade brasileira e as Igrejas locais, em seu conjunto, não acreditavam na possibilidade de que os povos indígenas poderiam ter um futuro próprio, como povos e nações.


 


O documento-denúncia “Y-Juca-Pirama, o índio: aquele que deve morrer”, foi – na mesma semana em que o Estatuto do Índio saía publicado no Diário Oficial – uma resposta de bispos e missionários ligados ao Cimi à política indigenista do governo. Ao lado da denúncia figura o anúncio:


 


“Nada faremos em colaboração com aqueles que visam ‘atrair’, ‘pacificar’ e ‘acalmar’ os índios para favorecerem o avanço dos latifundiários e dos exploradores de minérios” (…). Nosso trabalho não será ‘civilizar’ os índios”. (…) Chegou o momento de anunciar, na esperança, que, aquele que deveria morrer é aquele que deve viver”.[19]



 


Na década desenvolvimentista dos anos 70, seguida pela década perdida dos anos 80, as palavras “civilização”, “progresso” e “desenvolvimento” exerceram ainda um certo fascínio e sua contestação era difícil. Geralmente, considerava-se a questão indígena uma “causa perdida”. Parecia lógico que o caminho indicado para o futuro dos 90.000 (segundo dados do governo militar da época) ou 180.000 índios, segundo o recenseamento do Cimi de então, seria a integração nos padrões culturais e jurídicos da sociedade nacional e a assimilação étnica e religiosa. A perspectiva de integração na sociedade classista dispensaria a demarcação das terras dos índios e a sua proteção específica, a perspectiva da conversão dispensaria o diálogo inter-religioso e a inculturação. A integração, na chamada comunidade nacional, tornou-se a nova modalidade do etnocídio.


 


O povo Nambikuara foi vítima exemplar dessa política. A Funai, com seu presidente general Bandeira de Melo, retirou os índios de seu território que então seria atravessado pela BR-364. Retirados os índios, a Funai emitiu certidões negativas – atestados de que na região do vale do Guaporé não havia mais índios -, e a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) chamava, através de incentivos fiscais, as firmas colonizadoras. Mas os Nambikuara voltaram para seu habitat. Entre 1968 e 1979, o vale do Guaporé foi distribuído entre 22 firmas agropecuárias. No Natal de 1971, equipes da FAB e da Funai tiveram de resgatar de helicóptero os índios dispersos pelo vale. Os que escaparam da fome, tiveram sarampo. Na epidemia, morreu toda a população Nambikuara menor de 15 anos. A notícia da “Biafra brasileira” correu pelas manchetes dos jornais.[20]


 


Foi neste contexto, no contexto da construção da Transamazônica no governo do general Garrastazu Médici (1969-1974) e no contexto das denúncias de Barbados que o Cimi iniciou seu trabalho com a ‘opção pelos povos indígenas’, propondo a ruptura com o modelo desenvolvimentista em marcha e assumindo uma pastoral específica, integral e amplamente articulada. Uma solução justa da questão das terras dos povos indígenas exigiria mudanças profundas do modelo econômico e sócio-político vigente, com seus pilares de acumulação, autoritarismo e hegemonia política do economicamente mais forte. Obviamente, essa opção causou conflitos, não somente frente ao Estado, mas também no interior das Igrejas locais. Sobretudo a pergunta para onde caminhariam os povos indígenas dividiu os espíritos. O Cimi começou com um ato de fé e esperança no futuro dos povos indígenas num momento em que a política indigenista oficial e os setores articulados com o governo já deram a ordem de não ressuscitar o “paciente agonizante” na UTI do progresso. Os jornais falavam do ‘inevitável desaparecimento’ dos povos indígenas. Mesmo indo a pique a bordo de um navio – réplica daquela nau de Cabral – com mastro quebrado, a classe dominante levanta já 500 anos as suas taças com cachaça e sangue, dando vivas à morte dos índios sem terra.


 


Cada um dos povos indígenas tem uma história traumática sobre o contato com a ‘comunidade nacional’ a contar. A partir de 1987, milhares de garimpeiros invadiram as terras dos Yanomami, desorganizaram a economia indígena, desarticularam sua cultura e depredaram o meio ambiente. Poluíram os rios com mercúrio e espalharam doenças e morte. Em dois anos, mais de 1500 Yanomami morreram. Aldeias inteiras desapareceram. Em agosto de 1987, o governo Sarney expulsou os missionários da Missão Catrimâni e as equipes médicas da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). Eram as testemunhas que podiam denunciar o genocídio em andamento. Em 1988, diariamente pousavam mais de 100 pequenos aviões em pistas clandestinas no território dos dez mil Yanomami.


Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)

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