19/12/2005

Nhanderu Marangatu

 


Não sou ator,


As lágrimas que rolam do meu rosto


Neste momento,


Vão juntar-se às de tantos parentes


Que lutaram e que lutam,


Derramaram seu sangue,


Para que nós hoje aqui estivéssemos


Com vida, mesmo que tão sofrida.


Se sorrio neste instante


É um sorriso de dor,


Não é expressão de felicidade


Mas de um drama,


De uma revolta e indignação,


Pois hoje estamos despejados,


Estamos na rua!


A gente chora


Porque somos expulsados,


O que faremos agora?


Não temos mais paz.


 


Os Kaiowá tem que ser livres,


Nunca podem ser assim executados,


Hoje choro pelas crianças!


 


Tenho a certeza


De que esse juiz e esses policiais


Vão dar os melhores presentes


Para suas crianças.


E nós o que daremos para as nossas?


Carinho e esperança,


Fome e talvez um pedaço de pão!


 


O que pensam que somos,


Esses que fazem isso conosco,


Que somos animais ou traficantes,


Para virem tirar nós daqui


Com fortes armas?


Não precisavam.


Nós sabemos lutar saindo


E sair lutando,


Porque nós Kaiowá Guarani


Resistimos e vamos resistir


Com nossas palavras!


 


Pisaram em cima de nós,


Mas ainda temos raiz,


Vamos brotar, crescer


E dar frutos.


 


O sol ilumina o mundo


Ele é nosso pai,


Se ninguém gosta de nós


Vamos destruir o mundo.


 


Esse foi o tom, sentimento e conteúdo da fala do Kaiowá Guarani Hamilton Lopes, que foi delegado pelo grupo para fazer o que poderíamos chamar de “fala da despedida” de quem não vai embora, “fala da resistência” de quem nunca saiu e “fala da esperança” de quem tem a certeza da vitória, que a história haverá de confirmar.


 


Ritual de luta e resistência


 


Eram sete horas da manhã. O sol já estava forte. A lua que guiara a noite de vigília, já havia se escondido. A estrada era o palco da celebração indignada, da revolta contida, da esperança inquebrantável, silenciosa, mas ativa.


 


Foi o momento em que todos se reuniram para ouvir o comunicado da ação absurda que iria acontecer em breve. O Procurador da República em Dourados, Charles Pessoa, não sem dor e com os olhos avermelhados, começou a dizer que, infelizmente, o despejo iria acontecer em breve. Já havia passado pelos ônibus e várias viaturas da polícia. “A gente tentou fazer de tudo, Funai, Ministério Publico, o Cimi, porém, mais uma vez o ministro Jobim não se sensibilizou com o direito de vocês. Agora vocês terão que voltar dos 1.300 hectares que estavam ocupando, para os 26 hectares, onde estiveram desde 1998. Mas isso não significa que tenham perdido a terra. Há processos na justiça que, julgados, possivelmente lhes devolveriam o direito aos 9.300 hectares já demarcados. Portanto, apesar da dor do momento, é preciso continuar a luta, pois é uma questão de tempo apenas”.


 


O absurdo, a ignomínia e a prepotência


 


“Nunca havia participado de algo semelhante. A primeira idéia que me veio à cabeça foi do holocausto dos judeus na segunda guerra mundial”. Foram essas as palavras de um jornalista que vivenciou esses momentos dramáticos dos Kaiowá Guarani do Nhanderu Marangatu, expulsos de suas terras no dia 15 de dezembro. “Vêm com armas pesadas, cachorros, cavalos, como se fossemos bandidos, traficantes, terroristas…”, exclamou revoltada uma das lideranças indígenas aí reunidos na estrada MS-384, enquanto a polícia se aproximava do local.


 


Mães com seus filhos no colo não conseguiam segurar as lágrimas, e algumas até desmaiaram. As crianças com os cartazes da consciência dos direitos e indignação de seus pais e guerreiros, ficaram lado a lado com os escudos e metralhadoras dos fortes, altos e bem trajados policiais federais. Não era possível não se comover, era impossível não derramar lágrimas diante de cenas tão chocantes.


 


O helicóptero dando vôos rasantes, de até aproximadamente cinco metros, sobre o grupo reunido na estrada, era o símbolo da prepotência sórdida.


 


Não tardou em prenderem dois jornalistas holandeses. Impediram o advogado do Cimi que os acompanhassem, num claro desrespeito ao direito da profissão. A um fotógrafo que queria acompanhar os detentos, no exercício de sua profissão, chamaram de “vagabundo, nojento”, num tom ofensivo e provocativo.


 


Os policiais, comandados por Jonas Rossati buscaram o tempo todo explicar que estavam aí para cumprir uma ordem, uma decisão da justiça. Alguns mais sensibilizados, a partir de sua altura e bem nutridos, talvez até olhassem para aquele grupo de pessoas vestidas com simplicidade, de baixa estatura, como não sendo o cenário pintado de ferozes inimigos prontos a ataca-los. E quiçá o cenário patético de um suicídio coletivo. Ao invés disso o que estavam vendo era um constante ritual celebrativo e uma busca de diálogo das lideranças com os responsáveis pela operação.


 


Um grande silêncio. A dor cortante de cada palavra e gesto do ritual seriam em breve confirmados com as ações armadas de mais uma centena de militares com pesadas armas, cães, cavalos, viaturas, ônibus, ambulâncias, helicóptero, enfim, um aparato de guerra.


 


Uma mãe sentada ao chão, chorando exclamava: “o que daremos aos nossos filhos? Vão destruir nossa plantação, vão nos tirar a terra, será que nos declararam guerra? Somos nós considerados inimigos da nação?” Muitas perguntas foram feitas. A resposta não tardaria a ser entendida.


 


O grito silencioso das crianças


 


Quem deu o grito mais forte foram sem dúvida as crianças. Simples cartazes, com tintas e letras variadas, continham a força capaz de dizer ao mundo o que são, pensam, questionam e exigem os Kaiowá Guarani de Nhanderu Marangatu neste momento. É sem dúvida uma lição consciente e civilizada, diante da brutalidade a que foram submetidas. Vejamos o que diziam os cartazes, em simples cartolina, diferentes pincéis, cores e muita consciência:


 


– Lutar pela terra é lutar pela vida, por uma causa justa a gente morre;


– Hoje estamos tristes. Queremos ser feliz e viver;


– A injustiça do Brasil destrói a nação indígena;


– Cortaram nossos galhos, queimaram nossos troncos, mas não conseguiram destruir nossas raízes;


– Somos filhos dessa terra, pra onde iremos sem a nossa mãe?;


– Somos herdeiros dos nossos antepassados, só queremos sobreviver;


– A terra não foi feita pelos homens, foi feita pelo Pai, Pa’í Kuará;


– Somos brasileiros, nossos direitos estão na Constituição Federal, que faremos para que sejam respeitados!;


– Somos os primeiros habitantes do Brasil, não somos invasores;


– Ñande Ru Marangatu – nós queremos desejar Feliz Natal para todo Brasil e o mundo. O que nos desejam agora?;


– O juiz vai festejar o ano novo debaixo de ar condicionado, e nós debaixo de uma árvore, porque queimaram nossas casas;


– O presente de Natal do Lula e do Nelson Jobim aos Guarani Kaiowá é o despejo de suas terras;


– Nós curuminzinho do Ñande Ru Marangatu convencemos os nossos pais para não fazer guerra contra vocês, pensando nos filhos de vocês policiais.


 


Um professor da UCDB, presente aos acontecimentos, perguntou à professora Léia de onde teriam tirado as frases dos cartazes. Ela simplesmente apontou para a cabeça. E o professor comentou: “isso que é consciência, é uma lição para nós e para o mundo”.


 


Os Guarani e a não violência ativa


 


Gandhi, onde se encontrar, certamente terá vibrado com o exercício da não violência ativa que ele tanto pregou e praticou na Índia e no mundo, e que os Guarani secularmente tem usado, desde que começaram a ser invadidos, saqueados, massacrados e aprisionados pelos colonizadores europeus. Eles sofreram massacres diversos, caçados pelos bandeirantes no Brasil, combatidos pelos exércitos de Espanha e Portugal, reprimidos pelas forças policiais na Bolívia, saqueados em suas terras e recursos naturais na Argentina… Enfim, cedo perceberam que sua sabedoria milenar recomendava a estratégia de não utilizar as mesmas armas do invasor, mas fortalecer suas próprias armas, especialmente sua cultura, sua religião, seus projetos de vida, cuja lógica é bem diversa daquela do individualismo, acumulação e exclusão praticadas pelo sistema dos invasores.


 


Haviam anunciado que lutariam até o fim, não sairiam de seu território. E assim fizeram. Enganaram-se os que pensavam que eles iriam utilizar as mesmas armas com que estavam sendo expulsos, que representam a fraqueza da justiça. Sua arma era apenas a lei maior, a Constituição do país e as leis internacionais, como a Convenção 169, que lhes garante as terras em que vivem. Enganaram-se os que esperavam o fúnebre desfecho de suicídio coletivo, pois isso significaria a vitória do ódio invasor. Lutaram brava e heroicamente através de seus Nhanderu (líderes religiosos), através de seus incansáveis rituais, cujos efeitos podem não ser instantâneos, mas certamente farão prevalecer a justiça e o direito Guarani. Argumentaram através de suas palavras sábias e cortantes como navalhas, buscando atingir a sensibilidade dos responsáveis por tamanha arbitrariedade e violência. Enfim, lutaram com todas as suas armas, das quais resultará a vitória um dia, mesmo que tenha que passar por caminho de sofrimento.


 


Deram uma lição ao Brasil e ao mundo. Mostraram como poderá triunfar um dia a não violência, como resposta eficaz à prepotência e à fraqueza das armas!


 


Um chamado às pessoas de boa vontade no Brasil e no mundo


 


Após terem passado por mais um momento dramático na longa luta pelos seus direitos, especialmente a terra, eles agora confiam na sua força paciente e sabedoria milenar, que acreditam seja ampliada pela urgente e intensa solidariedade nacional e internacional. Das lonas pretas, da poeira e do sol quente que terão que enfrentar nos próximos tempos, brote a vitória definitiva.


Enquanto os fazendeiros se apressam em arrasar as casas e plantações, fazendo desfilar o ódio que alimentam contra os Guarani, será urgente armarmos mais barracas de esperança e solidariedade com os Guarani de Nhanderu Marangatu e de todos os povos indígenas do Brasil, que passam por situações semelhantes e que sentem na carne a mesma insegurança, violência e preconceito.


 


Procurei com esse breve relato, externar como vi, senti e consigo expressar com palavras uma realidade tão densa e intensa de sentimentos, comoções e emoções. Mas é principalmente uma contribuição à convocação feita pela professora Léia: “Venham, vejam e digam para que o mundo saiba!”.


 


Concluo essa vivência de cenas, sem dúvidas das mais marcantes nestes meus trinta e três anos de partilha e compromisso com os povos indígenas deste país, com parte de uma das estrofes da música “Marçal”, que derramou seu sangue por esta terra do Nhanderu Marangatu: “chegará o dia em que o preço dessa covardia será cobrado caro pelos Guarani”.


 


Campo Grande (MS), 17 de dezembro de 2005.


 


Egon Heck


Cimi Regional Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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