Alfredo Bosi pergunta: o futuro nos absolverá?
Topará o arqueólogo com os restos de uma civilização que estava literalmente tomada pelo desejo de acumular signos cada vez mais virtuais e objetos cada vez mais descartáveis.
Alfredo Bosi
Que dizer ao nosso desconhecido arqueólogo do futuro se um dia, por acasos da fortuna ou milagres da tecnologia, ele captar algum eco de nossa mensagem de perplexos viventes do terceiro milênio?
Se ele for, como se presume, um arqueólogo digno deste nome, só lhe restará uma certeza inabalável: todas as civilizações perecem. É uma verdade que se encontra em um texto antológico de Paul Valéry, mas que já se formulara na sabedoria do Eclesiastes. Tudo passa – não é o mais comum dos lugares comuns?
No entanto, o desafio persiste. Precisamos dar notícias do nosso tempo, que, por hipótese, precedeu a hora das ruínas que o arqueólogo deverá estudar escrupulosamente removendo os nossos escombros.
Receio que não lhe será fácil entender o que alguns filósofos confiantes na História chamaram de “espírito do tempo” quando se debruçaram sobre documentos de eras pretéritas: Renascimento, Classicismo, Barroco, Luzes, Romantismo… O nó que ata vida e sentido parecia inteligível ao olhar do historiador que se detinha nos testemunhos deixados pelos homens de cada um desses momentos da aventura humana no planeta.
E nós, que “imago mundi” legaremos aos eventuais pósteros? Algo que parece tocar simplesmente o absurdo? Mas, a exemplo da loucura denunciada por Shakespeare, o nosso absurdo também tem método. Afinal, naves loucas já singraram mares em passado remoto ou recente. Não somos, portanto, originais. Coube-nos apenas a ambígua vantagem do número, faca de dois gumes. Temos condições tecnológicas para sermos mais insanos do que os nossos modestos antepassados.
Como se sabe, uma diferença de quantidade pode mudar a qualidade do estrago. Um caboclo analfabeto queima alguns metros quadrados de mato para plantar a sua mandioca; uma empresa de agronegócio devidamente computadorizada pode comburir não sei quantos hectares de floresta para plantar soja ou criar gado em pasto aberto regularmente subsidiado.
Hoje sabemos mais, logo podemos mais. Para o bem e para o mal. Construímos e destruímos velozmente em larga escala. O nosso arqueólogo perceberá, comparando períodos contíguos, que em 2000 tudo ficou, tecnologicamente, muito mais moderno do que em 1950; e talvez conclua que o mundo dito pós-moderno (caso esta palavra sobreviva e chegue a seus ouvidos), embora se presumisse às vezes antimoderno, era na verdade super-hiper-ultra-megamoderno. Uma questão de força, cuja palavra-chave é um advérbio de intensidade: mais.
Partimos da hipótese segundo a qual as ruínas sempre ensinam algo a quem as saiba esquadrinhar com discernimento.
Primeiro, virá o espanto diante da massa. Porque a massa acachapa. A massa nos rodeia, penetra-nos fundo. A massa nos primariza, nos terceiriza e, por momentos, somos a massa, confundimo-nos com ela. Massa física espalhada em mil e uma mercadorias. Massa psicológica interiorizada em cada um de nós enquanto consumidores.
Topará o arqueólogo com os restos de uma civilização que estava literalmente tomada pelo desejo de acumular signos cada vez mais virtuais e objetos cada vez mais descartáveis. Entesourar o que era lábil, e aceitar a própria labilidade das coisas como um destino necessário e, afinal, apetecível. Signos e coisas, signos-coisas, coisas-signos mutuavam-se e, em breve tempo, sumiam para deixar espaço a outros tantos protocolos de objetos. E tudo obedecia a uma estranha lógica de feição digital, sim-não, um-zero.
Entulhos de cimento e vidro fosco, destroços de estranhas pirâmides que seus construtores acreditavam tão perenes como as tumbas dos faraós serão encontrados em meio a esqueletos de milhares de seres, presumivelmente humanos, que, segundo os laudos dos osteólogos, terão perecido de morte violenta. Não eram guerreiros, pois não foram achadas armas de fogo junto às ossadas: apenas resíduos, pedaços de celulares, um ou outro brinquinho de metal dourado, óculos partidos, moedinhas enferrujadas e montões e montões de plásticos que resistiram bravamente graças à sua condição de não-biodegradáveis.
Terá também notícias dos extraordinários progressos das ciências médicas? Espero que sim, nem seria justo que caísse no olvido o trabalho admirável de tantos abnegados estudiosos do que ainda chamamos vida. Saberá, pois, que a medicina salvou milhões de seres vivos no último século, embora não tenha conseguido evitar a morte de tantos outros milhões de vítimas de gripe, de aids, de câncer, de enfarto. Ou de fome. Como entender os resultados bivalentes de tanta luta? Ele nos culpará sem remissão? Ou, piedoso, nos absolverá? Nunca saberemos.
Poderá induzir, sempre pela análise de nossos vestígios, que mais da metade da população mundial, não por acaso habitante do Sul, nas antigas colônias, vivia em estado de pobreza, dependendo de empréstimos do Norte, concedidos desde que não fossem utilizados para erradicar de vez aquela mesma situação de penúria. E, se o nosso arqueólogo tiver faro de detetive, descobrirá alguma relação entre sucatas de carros queimados nas ruas da Cidade-Luz em 2005 e cercas de arames farpados vigiadas à bala entre o Império e seus povos fronteiriços.
Como entender essa estranha lógica? Os fundos monetários dos ricos monetaristas pareciam encerrados no próprio círculo do absurdo. Impediam que as nações pobres se liberassem definitivamente dos seus males proibindo que os seus governos aplicassem os dinheiros emprestados em projetos de desenvolvimento estável e sólido; e como os pobres desses países, já desesperançados, buscassem nos países desenvolvidos chances de empregos decentes, encontravam fronteiras vedadas e expressões de repulsa aos que lá tinham conseguido chegar. A violência estrutural dos detentores do dinheiro e do poder acabou gerando a violência esporádica das vítimas de um sistema em que a injustiça chegou às raias do absurdo.
No coração de todos
Esboçado o quadro, resta ainda um motivo de apreensão. Saberá o nosso arqueólogo que nas entranhas daquele mundo tão racional e tão demente, tão opulento e tão mísero, pulsava uma consciência aguda do mal? E que essa mesma lucidez era capaz de inspirar atos de beleza e resistência moral imprevisíveis naquele contexto de barbárie hipermoderna? Como fazer chegar ao historiador de nossas ruínas esta notícia de jornal datada de 8 de novembro de 2005?
Um garoto palestino de 12 anos chamado Ahmed Khatib foi morto há dias por soldados israelenses que atiraram às cegas durante um entrevero de rua. O pai de Ahmed, mecânico de profissão, decidiu doar os órgãos de seu filho a seis israelenses que estavam precisando de transplante. “Eu acredito que meu filho está agora no coração de todo israelense”.
Também o poeta Drummond disse um dia que a bomba, embora nefanda, seria vencida pelo homem. Nada sabemos do destino do planeta, mas o gesto do pai de Ahmed é uma luz que ilumina inesperadamente o mar de nossa escuridão.