Missão Surumu: Das cinzas nascerá a flor
Diante da covarde ação de vandalismo dos inimigos dos índios da Raposa Serra do Sol, destruindo toda a infra-estrutura do centro de formação dos Povos Indígenas em que se havia convertido a “missão Surumu”, minha indignação se transformou num catador de sementes de futuro. E das ruínas brotarão sementes e das sementes árvores de raízes profundas, fazendo os sonhos desabrochar em flores e frutos.
Veio à memória toda a trajetória envolta nas contradições de seu tempo, desde a construção, à desconstrução ideológica até a destruição física da estrutura da missão Surumu. Lembrei-me dos momentos em que ali estive ajudando um grupo de alunos a refletir sobro o movimento indígena e suas lutas e da importância da contribuição deles, jovens, que em breve estariam assumindo responsabilidades da luta junto a suas comunidades. Também procurei pesquisar um pouco sobre a trajetória da missão, da conversão, e da ruptura com a perspectiva marcada pelo colonialismo e dominação. A construção do novo estava em processo. O movimento indígena organizado estava assumindo o espaço como centro de formação do movimento indígena em Roraima. E esse projeto, apesar de fisicamente destruído pela covardia, talvez consiga asas para um vôo mais longínquo e duradouro. Será o momento de juntar mentes e mãos, cobrir de palhas de sabedoria as paredes desnudadas, dar um novo conteúdo e sentido às cinzas, um rumo libertador ao passado renascido.
Surumu emblemático
Foi ali que aconteceu o primeiro gesto abertamente repressor contra o nascente movimento indígena da década de 70. Em 1977, quando um pouco mais de uma centena de tuxauas da região e alguns representantes indígenas e aliados de outras regiões do país, estavam ali reunidos numa das primeiras Assembléias Indígenas nacionais, baixou a repressão militar. Mas os índios não se intimidaram. Dispersaram para continuar a Assembléia em outro lugar. Foi o primeiro gesto marcante da resistência e busca de autonomia do movimento indígena nascente.
Foi também em Surumu que aconteceu a grande revolução interna na perspectiva da missão e do compromisso com a luta e os direitos dos povos indígenas. A decisão de mudar a perspectiva calcada na história colonial para uma perspectiva de protagonismo e autonomia indígena, através da valorização de sua cultura, sociedade e sabedoria. Foi uma mudança estrutural e abrangente de toda a Diocese de Roraima. E o Cimi passou a ser uma referência articuladora e de formação de quadros dessa nova atuação. Veio a perseguição e violência contra os índios e os missionários, que perdura até os dias atuais. Mas não esmoreceram. Está aí a homologação de Raposa Serra do Sol, como um dos frutos mais emblemáticos dessa nova atuação missionária. Foi uma história fortemente marcada pelo trabalho de leigos e religiosos comprometidos com o presente e futuro desses povos. Por ali passaram antropólogos, pedagogos e muitos profissionais com a mesma inspiração e compromisso. Por isso Surumu passou a ser um alvo preferencial da violência e dos inimigos dos índios.
Revisitando o futuro
Creio que a história anda por caminhos plurais, e o que hoje é um muro de lamentações e um amontoado de ruínas e cinzas, poderá se transformar na base de um novo sonho. Depois da festa a reconstrução. Raposa Serra do Sol passará agora por um caminho de reconstrução, do qual Surumu em ruínas é parte importante. E quem sabe, livre de algumas amarras do passado, possa revisitar o futuro, com base nas raízes do passado e das flores que estarão a animar e enfeitar esse novo caminho.
Campo Grande, início da primavera de 2005.
Egon Heck
Cimi MS