19/08/2005

O estrago que a “índia” da Rede Globo faz

Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu (Pará)


 


Justo nesse novo momento para os povos indígenas na América Latina – que já nos trouxe Rigoberta Menchu como Prêmio Nobel e que pode levar ainda Evo Morales à presidência da República na Bolívia – ela apareceu para estragar a festa. No Brasil, quando as organizações indígenas dos vários povos se mobilizam para reconquistar as terras perdidas e exigir direitos constitucionais, quando a imagem negativa dos índios como “selvagens” começa a se dissipar e muitas pessoas perdem a vergonha de se assumir abertamente como indígenas, a “Índia” da novela da Globo vem mostrar que ainda não estamos no século XXI. Por mais que a caricatura apresentada na novela “A Lua me disse” nada tenha a ver com a realidade atual de uma mulher índia, ela diz muito do que alguns setores da sociedade brasileira pensam sobre os povos indígenas, e joga na lama todo um trabalho de quem quer construir um Brasil plural, onde diferenças raciais e étnicas não sejam empecilho para uma convivência respeitosa e igualitária.


 


Desde que entrou no ar, a novela de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa vem causando risadas e protestos devido à forma como a personagem “Índia” é apresentada na trama. Divertida e risível, ela também é sempre humilhada, chamada de “preguiçosa” e ridicularizada na casa da família onde trabalha. Fala o português gramaticalmente errado, com o verbo na terceira pessoa, como nos filmes de westerns de Hollywood: “índia quer, índia gostar…”, além de falar uma língua que ninguém entende. E mais, ela se mostra uma índia “tarada” correndo atrás dos homens pela casa, gritando: “índia quando quer homem fica nua na taba, índia gosta de ver homem nu, índia quer”. Risada geral.


 


Palmas para o trabalho da atriz paraense Bumba, de Belém do Pará, que se diz filha de índios e que traz no semblante os traços marcantes dos seus ancestrais. Esta respeitável e alegre senhora de 7 filhos e 27 netos, é uma artista consagrada. Estreando em novelas na Globo, ela já trabalhou na mini-série “A Muralha” e nos longa metragens “Brincando nos Campos do Senhor” de Hector Babenco e “O Curandeiro da Selva”, gravado no México, com o galã Sean Connery. Foi em uma entrevista no Jô Soares que Miguel Falabella a descobriu e decidiu leva-la para o tal papel. O problema não é com Bumba e nem com seu reconhecido talento, mas sim com a personagem que ela encarna.


 


No começo de maio foi amplamente divulgada uma carta de repúdio de entidades do Mato Grosso protestando contra o modo como a “índia” era tratada na novela, que significava um desrespeito com os povos indígenas e reativava uma visão pejorativa que eles lutam para superar. Enquanto a carta, que teria sido entregue no Congresso Nacional e mandada para a TV Globo, circulava em jornais impressos e na internet, por todo o país aumentava o descontentamento de índios e não-índios.


 


Outras manifestações se seguiram, como um documento escrito pelo casal de vereadores Panderewup Zoró e Lígia Neiva, representantes dos indígenas em Rondolândia (MT), durante um curso de magistério para professores indígenas. O município é região de tensos confrontos com os “brancos”, devido à luta pela terra. Os Nambiquara ali presentes solicitaram informações a respeito do uso indevido e preconceituoso da imagem do seu povo na TV. Após as explicações e discussões, ficaram revoltados e indignados. Os índios prometeram fazer as suas reivindicações por meio da Associação Indígena. Os vereadores, junto com os assessores, elaboraram a sua carta na mesma hora.


 


No documento eles falam da surpresa em saber que no portal da FUNAI “não vimos nenhuma manifestação deste órgão de proteção e defesa do direito do povos indígenas, quanto ao desrespeito, preconceito e uso indevido da “imagem” dos índios, demonstrados claramente na novela de Miguel Falabela “A Lua Me Disse”, quando uma indígena atriz do Pará que não é da etnia Nambiquara é chamada de “Nambiquara”, colocando para todo Brasil uma distorção da imagem da mulher indígena”. Eles pedem uma resposta do órgão indigenista, sobre que medidas estariam sendo tomadas, para saber “se esta novela vai continuar assim” e “se a Globo vai se retratar em publico sobre o maleficio que trouxe aos Nambiquara e as demais mulheres indígenas”.


 


Depois de discordar da imagem de submissão da mulher indígena mostrada na novela, eles perguntam: “Será que o que a Globo vem mostrando servirá de incentivo para as mulheres indígenas continuarem suas lutas? Ou, será que elas se sentirão as selvagens, preguiçosas, taradas etc., ao andarem pelas ruas e serem vistas desta forma? Quem responderá pela discriminação racial, constrangimento, preconceito ocasionado pela repercussão e imagem da mulher indígena que ficará na cabeça dos brasileiros, que toda vez que virem uma índia na rua vão ligar a sua imagem com a índia Nambiquara da novela? Quem indenizará as mulheres e a etnia Nambiquara pelos danos morais que estão sofrendo?” É um profunda análise, envolvendo elementos de ordem ética, psicológica e jurídica, e uma séria cobrança aos responsáveis pela veiculação da novela e ao inoperante órgão indigenista oficial que, aliás, nem respondeu aos autores.


 


A direção da TV Globo já recebeu recomendação do Ministério Público Federal (MPF) para que mudasse a imagem da personagem ao longo da novela, de forma que a “índia” não aparecesse mais em situações humilhantes, como as que provocaram as reações de revolta das entidades. O MPF está aguardando resposta do departamento jurídico da emissora, que não quis se manifestar oficialmente quando da divulgação dos protestos. Mas talvez os resultados da pressão já estejam aparecendo bem lentamente. Nos últimos capítulos da novela, “Índia” tem se vingado das madames que mais a humilhavam, sem deixar de ser engraçada, como quando serviu pimenta malagueta na sopa e se divertiu enquanto as patroas corriam para beber água. Mas isso não corrige um problema maior. Além do mais, o estrago já está feito.


 


Para quem vê a polêmica distante do ponto de vista dos indígenas, pode parecer mais um caso da moda do politicamente correto. A própria Bumba, revoltada com as manifestações contrárias à sua personagem, teria desabafado: “Tem tanto índio morrendo de fome e eles se preocupando comigo que estou trabalhando. Queria que existissem milhões de Falabellas para dar emprego aos índios”. A preocupação pró-indígenas procede e muito. Para o advogado e indigenista Carlos Eduardo Chaves, “este tipo de novela da Globo é um dos maiores desserviços prestados pela televisão ao povo brasileiro, moldando padrões éticos e estéticos deturpados. É uma influência verdadeiramente nefasta na cabeça de um povo tão carente de cultura e educação”. Quanto aos empregos para índios nas novelas, a revolta é exatamente contra este tipo de “papel” que o autor oferece aos índios e que eles demonstram recusar.


 


É bom lembrar que a emissora é reincidente nesse tipo de tratamento à imagem dos indígenas. Em 2000, a novela Uga Uga de Carlos Lombardi mostrava uma aldeia que era visitada freqüentemente pelos homens “brancos”, por quem as mulheres “índias” estavam sempre esperando semi-nuas para se entregarem aos prazeres selvagens da carne. Eram as antepassadas taradas da personagem de Bumba. Na época os índios ficaram muito incomodados e a Comissão Pós-Conferência Indígena, criada depois da Marcha e Conferência Indígena de Coroa Vermelha (BA), enviou uma carta de protesto à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, repudiando as cenas que deturpavam e estereotipavam as culturas indígenas. Conforme o documento, os indígenas são apresentados como povos “sem capacidade, animais de atração de um circo usados para chamar a atenção dos telespectadores daquela emissora”. Afirmavam ainda que “a novela abre caminho para os não-índios se relacionarem de forma preconceituosa com os povos indígenas”. Isso em 2000. E nem falamos dos “índios” caricatos dos programas cômicos.


 


Para as famílias mais pobres, com pouco acesso à leitura de jornais e revistas, a televisão e as novelas em particular são as principais fontes de “informação” e as maiores formadoras de opinião. Então, não é exagero dizer que essas pessoas estão sendo levadas a reforçar ou a desenvolver uma deturpada idéia sobre os indígenas, ligada a atraso, ridículo, preguiçoso, erótico-exótico etc. Uga Uga foi vendida aos Estados Unidos e muitos outros países, onde também fez bastante sucesso. “A Lua me disse” já estaria sendo exibida em Portugal e logo deverá ganhar o mundo. Sabemos que parte das idéias que as pessoas fora do Brasil fazem da nossa gente e nossa cultura é moldada nessas novelas. Qual será a imagem que terão sobre os índios no Brasil? E não vale dizer que é só uma paródia, e que as pessoas sabem que é brincadeira.


 


O perigo é que através de estórias engraçadas e do humor aparentemente inofensivo são passados estereótipos depreciativos e altamente racistas. As piadas sobre “pretos” são um exemplo claro disso. As piadas não são apenas piadas. No caso que estamos discutindo, podemos apontar e denunciar alguns dos estereótipos mais nocivos à imagem dos indígenas.


 


De início, a personagem de Bumba é desprovida de nome próprio, ela é apenas “Índia” genérica, sem história própria e sem ligação com o seu povo. É como se ela não precisasse dessas referências. Quando citam o seu povo, é de forma ofensiva: “sua Nambiquara!” Como se ter uma identidade étnica específica fosse vergonhoso. Sinal dessa lacuna identitária é o fato de ela dizer que mora numa “taba”, palavra que não é usada por nenhum povo atualmente. Só falta dizer que adora o sol e a lua, e é avó de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Ou seja, é uma índia que não existe no tempo presente, só em um fantasioso passado mítico nacional. Muito mais provável historicamente, por exemplo, seria admitir que ela sobreviveu quando seu povo foi massacrado na construção da Transamazônica nos anos 70 ou que ela foi obrigada a abandonar sua família Guarani-Kaiowa no MS, e procurar emprego na cidade, devido à miséria e a falta de terra. Mas isso já seria realista demais.


 


“Índia” tem uma língua ininteligível que os “civilizados” da cidade não compreendem. A sua “língua indígena” só serve para fazer rir, por ser exótica e remeter mais ainda ao papel de “selvagem”, bem próximo dos animais, cujos grunhidos e latidos os humanos não entendem. Os brancos não precisam se preocupar em aprender a língua indígena, pois é a índia que tem que falar a língua da metrópole, ela é que precisa se civilizar. Mas na escala evolutiva, ela parece estar longe disso. Fala português errado e em frases curtas e grosseiras, como se fosse incapaz de exprimir um raciocínio mais elaborado e reflexivo.


 


Não sendo uma “civilizada”, uma pessoa como as outras, “Índia” não tem uma vida afetiva normal. Ela não tem sentimentos, tem apenas instintos, e o desejo irrefreável de sexo. É uma tarada, desequilibrada. Novamente jogada para junto dos animais. Por isso não tem e nem pode ter um namorado, “índia quer homem nu” apenas. Joel Zito Araújo, no livro “A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira”, mostra como os personagens negros na TV dos anos 60 e 70 também não tinham uma vida amorosa normal, além de serem geralmente subalternos, malandros ou empregadas domésticas. As mulheres eram sempre as mulatas sedutoras. Zezé Mota, por exemplo, estreou como doméstica em “Beto Rockfeller”. Sobre os homens, veja só: Pelé, na novela “Os Estranhos”, quase na falava e não se apaixonou por ninguém. Muito estranho mesmo, mas compreensível.


 


Como os personagens negros de novela agora compõem famílias de classe média, namoram normalmente e até estão entre os papéis principais, será uma tendência que as “índias” passem a ser as domésticas da estória? Existem índias advogadas, professoras, enfermeiras, escritoras e domésticas, entre outras. Por que escolher para retratar justo a doméstica? Porque isso está em sintonia com o estereótipo de que o índio ocupa na sociedade brasileira o degrau mais baixo. Exemplo eloqüente: no portal da Rede Globo (acesso em 19/08/2005), sobre a novela, na lista dos personagens por ordem alfabética, vai-se de Adail a Zé Bisonho, depois do qual vem, em último lugar, a nossa “Índia”. Subverte-se o alfabeto, mas não a “estrutura” da sociedade.


 


E hoje, com a radicalização das reivindicações indígenas, com índios entrando nas universidades através das cotas e querendo participar mais na sociedade brasileira, seria a hora de mostrar a eles o seu lugar na hierarquia social. Cabem a eles, portanto, os trabalhos que os “brancos” não querem fazer. Então, é preciso tirar a humanidade e a dignidade da “Índia” para melhor dominar e excluir os índios. Não estamos discriminando as domésticas como categoria profissional, mas não concordamos que esta ocupação seja colocada como “o” lugar de índios ou negros.


 


Com essa visão de índio mostrada de forma estereotipada e racista na TV, os mais atingidos negativamente são as crianças e os jovens indígenas que ainda não tem firme a auto-estima da sua identidade étnica. Pesquisas mostram que uma consciência étnica ou racial começa a surgir desde a infância. Se as crianças são expostas a situações em que sua raça e seus costumes são mostrados de forma negativa, elas também tenderão a desenvolver uma “identidade negativa” de si e do seu grupo, que se prolongará na juventude e, se continuar sendo alimentada, por toda a vida. Por isso os índios perguntaram: como nossas mulheres vão se sentir orgulhosas da sua indianidade quando escutam piadas comparando-as com a “índia” tarada da televisão? É claro que a imagem de índio que a novela divulga tem conseqüências altamente desestruturadoras na mente da população indígena. E milhares de índios que vivem anônimos nas áreas urbanas podem continuar escondendo sua identidade étnica para escapar de mais discriminação.


 


As reações dos próprios índios e de outros setores da sociedade brasileira mostraram firmeza em repudiar este tipo de abuso. Mas de concreto o que está sendo feito? Primeiro, tornar a indignação pública já é algo concreto, é um gesto político. O Silêncio chega a ser conivência. E como as entidades também encaminharam seus protestos aos órgãos competentes, temos a impressão que desta vez a TV Globo vai levar mais a sério a opinião da sociedade e a força da Lei, admitindo que não pode ridicularizar ou humilhar sempre toda um povo impunemente, como se ela fosse o Direito.


 


O Ministério Público Federal já está trabalhando nesta matéria a partir da representação dos indígenas e das outras entidades. Na Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro tramita um Procedimento Administrativo sobre a questão, que será um dos pontos de pauta da Audiência Pública que vai discutir “Programação de TV e Cidadania”, no dia 24 de agosto próximo naquela capital. Será um espaço privilegiado para os cidadãos índios e não-índios, entidades e os Procuradores afirmarem diante das emissoras de TV que o direito e a dignidade da pessoa humana estão acima do preconceito e do lucro fácil. E que essas emissoras têm um papel importantíssimo na verdadeira educação dos brasileiros, uma educação para a tolerância e o respeito diante do “outro”.


 


Salvador (BA) – 19/08/2005


 


Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu (Pará) é ativista do movimento indígena na Amazônia, frade franciscano, formado em Ciências Sociais pela UFRJ, mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, professor de Sociologia na UFPA, e atualmente doutorando em Ciências Sociais/Antropologia UFBA. E-mail: [email protected]


 

Fonte: Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu (Pará)
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