Paralisia na demarcação de Terras Indígenas: a politização de um direito constitucional
A mobilização do Abril Indígena, ocorrida em abril deste ano, solicitou às autoridades do governo federal, em especial ao Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, providências para a conclusão dos processos administrativos para a demarcação de 14 terras indígenas que se encontravam em análise no Ministério da Justiça aguardando terem seus limites declarados para efeito de sua demarcação administrativa. Passados três meses dessa solicitação, não houve nenhuma resposta ao nosso pleito e apenas uma Terra Indígena, Yvy Katú do povo Guarani-Nhãndeva em Mato Grosso do Sul, teve seus limites declarados. Os outros processos estão paralisados ou foram devolvidos à presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). O Ministério da Justiça, ao contrário do que se espera, tem retardado as providências administrativas para a demarcação das terras indígenas, tornando prática comum a devolução dos procedimentos à Funai, como nos casos das terras Manoki (MT), Morro dos Cavalos (SC), Toldo Imbu (SC), Balaio (AM), Pitaguary (CE) e Kariri-Xokó (AL). Como conseqüência assistimos a uma grave redução do número de expedição de Portarias Declaratórias, o pior desempenho dentre os últimos governos. Em 2005, apenas uma terra foi declarada pelo Ministério da Justiça, Yvy Katú (MS). Além destas, outras terras estão na mesma situação. Ao todo são 29 Terras Indígenas(1) com procedimentos paralisados num verdadeiro limbo administrativo entre o Ministério da Justiça e a Funai. Em todos os casos o prazo fixado pelo Decreto n° 1.775/96 para o Ministro da Justiça decidir sobre a demarcação não foi cumprido. Seguindo idêntica orientação, a Funai tem reduzido o número de Grupos Técnicos (GT) destinados à identificação e delimitação das terras indígenas bem como a publicação de resumos de relatórios de identificação. No primeiro semestre de 2005 nenhum novo GT de identificação e delimitação de terra indígena foi criado. Apenas uma pequena terra foi delimitada, Sapotal, do povo indígena Kokama (AM). A Funai não deu seqüência a 28 estudos de identificação realizados nos dois últimos anos. Ficaram sem seqüência também os GT’s criados para rever limites de 18 terras indígenas. Longas prorrogações de prazo para entrega de relatórios de identificação estão sendo concedidas, a exemplo das terras Tapeba (CE) prorrogada por 638 dias, Tumbalalá (BA) por 308 dias e Karitiana (RO) por 306 dias. Frente a essa paralisia, cerca de 240 Terras Indígenas são reivindicadas pelos povos indígenas junto à Funai e aguardam para serem demarcadas. Dessas, apenas 64 tiveram seus processos administrativos para demarcação iniciados pela Funai. Diante a tais fatos, as declarações do atual Presidente da Funai de que as demarcações de terras indígenas no Brasil estão chegando ao fim, revelam-se de todo improcedentes e carregadas de conteúdo político contrário ao direito indígena à terra. Percebe-se, porém, que esses entraves verificados nos processos administrativos para a demarcação das Terras Indígenas coincidem, na maioria esmagadora dos casos, com a pressão da base parlamentar e política de sustentação do governo no Congresso Nacional, caracterizando-se uma negociação política, sem precedentes, do direito indígena à terra. As condutas do Ministro da Justiça e do Presidente da Funai adequam-se, assim, às preocupações do Palácio do Planalto no sentido de não contrariar interesses regionais. Evidencia desta atitude é a criação de uma inconstitucional comissão no Estado de Santa Catarina, constituída por representantes da União e do Estado, para analisar as terras a serem demarcadas, o que tem resultado na paralisia das demarcações naquele Estado. Do mesmo modo, a moratória das demarcações de Terras Indígenas naquele Estado solicitada pelo sojicultor e governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, também foi atendida pelo Governo Federal, e as demarcações em Mato Grosso também estão paralisadas. Questionamentos de cunho supostamente técnicos ou diligências destinadas a esclarecimentos, suscitadas pelo Ministro da Justiça e pelo Presidente da Funai e Diretoria de Assuntos Fundiários, assumem caráter meramente protelatório e/ou de atendimento a interesses políticos. A resistência a não rever os limites de Terras Indígenas incorretamente demarcadas e a reconhecer os direitos à terra dos povos que reassumiram ou que estão reassumindo suas identidades étnicas, caracterizam aspectos da mesma resistência político-administrativa conveniada a interesses políticos e econômicos regionais. A politização impressa pelo Governo Federal aos procedimentos de demarcação das TIs tem sinalizado ao Poder Judiciário no sentido de assumir uma posição ideológica frente às Terras Indígenas, abrindo precedentes perigosos, como a revogação da Homologação da TI Serro Marangatú em Mato Grosso do Sul que, antes de julgar seus fundamentos legais, visa legislar sobre a matéria. Como conseqüências imediatas da paralisia das demarcações, constata-se o crescimento do número de conflitos pela posse nas Terras Indígenas, expondo membros de comunidades e lideranças indígenas à violência e ao extermínio, como nos assassinatos das lideranças Guajajara no Maranhão, Nhãndeva no Mato Grosso do Sul e Truká em Pernambuco. Ao tempo em que promove-se gigantescos saques dos recursos naturais nas Terras Indígenas, já evidentes nas terras Manoki, do povo Irantxe, e Batelão, do povo Kayabi, ambos no Estado do Mato Grosso. A inércia, o retardamento ou mesmo a negação da garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam consiste, assim, no principal fator de agravamento das agressões e violências contra os povos indígenas. Em 2003 foram 33 índios assassinados. Em 2004, 30 índios foram mortos. E apenas no primeiro semestre do corrente ano de 2005, foram praticados 23 homicídios contra índios no Brasil. O Ministério da Justiça, o Departamento de Polícia Federal e os órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público devem atentar para a dimensão sociopolítica dos problemas resultantes das graves e tensas disputas pela posse da terra, avaliando-se criticamente caracterizações de ilícitos penais supostamente praticados por membros e lideranças dos povos indígenas nesses casos. Diante deste contexto, o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas vem à público repudiar a indevida politização e respectiva paralisação da tramitação dos processos administrativos destinados à demarcação das Terras Indígenas promovida pelo Governo Federal, reiterando a reivindicação apresentada na mobilização do Abril Indígena de 2005 para que sejam concluídos os processos administrativos de demarcação de Terras Indígenas ora paralisados. Requer-se isso não apenas para evitar perdas humanas e materiais para os povos indígenas e fazer cumprir a Constituição Federal, como também para não gerar a falsa expectativa de que as demarcações das Terras Indígenas estão chegando ao fim, expectativa extremamente prejudicial à continuidade e aplicação dos direitos territoriais indígenas. É fundamental que os cidadãos e as cidadãs brasileiros e as entidades da sociedade civil brasileira se unam aos povos indígenas para que este cenário genocida seja imediatamente revertido na perspectiva do respeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas no Brasil. FDDI – Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (1) São elas: Aldeia Condá/SC, Sarauá/PA, Cacique Fontoura/MT, Piaçaguera/SP, Ribeirão Silveira/SP, Cachoeirinha/MS, Baia dos Guató/MT, São Domingos do Jacapari e Estação/AM, Batelão/MT, Lãs Casas/PA, Xapecó/SC, Toldo Pinhal/SC, Matintin/AM, Potiguara de Monte Mor/PB, Tenharim Marmelos gleba B/AM, Boa Vista/PR, Taunay Ipegue/MS, Guyraroká/MS, Lagoa Encantada/CE, Arroio Corá/MS, Trombetas Mapuera/RR/AM/PA, Anaro/RR, Yvyporâ Laranjinha/PR, Xipaia/PA, Manoki/MT, Morro dos Cavalos/SC, Toldo Imbú/SC, Balaio/AM, Pitaguary/CE e Kariri Xokó/AL.