16/06/2005

Cimi pede que SRF instrua como Comunidades Indígenas poderão obter CNPJ, sem terem que se constituir em associações civis registradas em cartório

EXMO SENHOR SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL


 


O Conselho Indigenista Missionária – CIMI, pessoa jurídica de direito privado, de caráter religioso e filantrópico, órgão anexo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, dedicado à defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas, com sede no SDS Ed. Venâncio III, salas 309 às 314, Brasília – DF, representado, nos termos do que estabelece o inciso I do art. 18, c/c o inciso I do art. 19, ambos do seu Estatuto, por seu Vice-Presidente, no exercício da Presidência, Senhor Saulo Ferreira Feitosa, brasileiro, professor, casado, portador do RG nº 487.077 SSP/AL e CPF nº 318.022.734-68, residente e domiciliado nesta capital vem, por seu procurador (mandato em anexo),  com base no que estabelece a alínea “a” do inciso XXXIV do art. 5º da Constituição Federal expor, para ao final requerer o que segue:


 


I. Os fatos que revelam a necessidade de inscrição de comunidades indígenas no CNPJ


 


1.       Muitas comunidades indígenas, necessitando firmar contratos de depósito bancário com instituições financeiras ou apresentar projetos para efeito de recebimento de apoio em recursos financeiros vindos de pessoas jurídicas naturais ou jurídicas de direito privado e público, nacionais e estrangeiras, têm se deparado com a necessidade de indicar o número de sua inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas -CNPJ;


 


2.       Ao tentar providenciar suas respectivas inscrições nesse Cadastro Nacional, deparam-se com dificuldades decorrentes da necessidade indicada pela orientação adotada pela Secretaria da Receita Federal, expressa na Instrução Normativa SRF nº 200, de 13 de setembro de 2002, publicada no DOU de 01 de outubro de 2002, no sentido de que cada uma das comunidades indígenas que pretenda sua inscrição no CNPJ, conforme previsto no inciso II do art. 15 da referida IN/SRF n.º 200/2002 deverá formalizar o pedido de inscrição com a “remessa, à unidade cadastradora de jurisdição do contribuinte de…”:


 


cópia autenticada do ato constitutivo da pessoa jurídica, devidamente registrado no órgão competente”;


 


3.       Como as comunidades indígenas não têm ato constitutivo de sua existência registrado em cartório e muito menos Estatuto estruturador de sua organização interna, para viabilizar uma inscrição no CNPJ e com isso contratarem com instituições financeiras a abertura de contas de depósito bancário, a solução que muitas vem adotando, inclusive com estímulo de terceiros é a constituição de associações civis, constituídas por membros da comunidade;


 


4.       Essa circunstância, diante do que estabelece o caput do art. 231 da CF, representa grave perturbação na organização sócio-cultural das comunidades indígenas, já que sobre a organização social desses grupos étnicos, constituída com base nos valores culturais e tradicionais dos povos dos quais fazem parte é criada uma pessoa jurídica, com os mesmos membros dessa organização social, representada pela comunidade indígena.


 


II. A natureza jurídica das comunidades indígenas


 


5.       Os cidadãos, que são denominados como “índios” organizam-se socialmente, no Brasil, em cerca de 225 grupos étnica e culturalmente distintos entre si e da sociedade brasileira;


 


6.       Nos termos da definição constante no inciso I do art. 3º da Lei n.º 6.001/73, índio é “todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”;


 


7.       Por sua vez, a Convenção n.º 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que dispõe sobre “povos indígenas e tribais em países independentes”, cujo texto já foi aprovado pelo Congresso Nacional, por intermédio do Decreto Legislativo n.º 143, de 20 de junho de 2002, publicado no DOU de 21 de junho de 2002, já tendo sido promulgado pelo Exmo Senhor Presidente da República, em Decreto de 19 de abril de 2004, estabelece na alínea “b” do inciso 1 do seu art. 1º, que aplica-se:


 


aos povos em países independentes, considerados indígenas em função de sua descendência e populações que habitavam o país ou região geográfica a qual pertencesse o país à época da conquista ou colonização ou do estabelecimento das fronteiras estatais atuais, e que, qualquer que seja sua situação jurídica, conservam todas as suas instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou algumas delas”;


 


8.       Importa observar que nos termos do inciso 3 do art. 1º da Convenção n.º 169:


 


o uso do termo ‘povos’ nesta Convenção não deverá ser interpretado como tendo qualquer implicação no que se refere aos direitos que possam conferir-se ao termo no Direito Internacional“;


 


9.       Com efeito, os povos indígenas, na acepção da Convenção 169 da OIT, constituem-se na referência de grupos sociais que se identificam e são identificados étnica e culturalmente distintos entre si e da sociedade nacional que os envolve, guardando relações de descendência com populações que habitavam, por ocasião da constituição do Estado nacional, no qual atualmente habitam;


 


10.    Ocorre que esses povos ou essas etnias materializam suas expressões organizativas em grupos sociais locais, também denominados como comunidades indígenas;


 


11.   Nessas comunidades, a identidade étnica e a organização social do povo, conforme observado anteriormente, se manifesta com estruturas normativas e de poder próprios;


 


12.    São, portanto essas comunidades indígenas, ou os grupos locais dos povos indígenas que possuem expressão jurídica própria, distinta de seus membros, a ensejar a percepção, reconhecida em lei, de que possuem personalidade jurídica própria, independente de registro em cartório;


 


13.   O Estado brasileiro, por sua vez classifica as pessoas jurídicas, nos termos do disposto no art. 41 e no art. 44, ambos da Lei n°10.406, de 2002 pela sua natureza como:


 



  1. de direito público – a União, os Estados, os Municípios, as autarquias e as demais entidades de caráter público criadas por lei; e
  2. de direito privado – as associações, sociedades e as fundações;


14.    A partir desta classificação poder-se-ia concluir que as comunidades ou grupos indígenas não têm personalidade jurídica própria;


 


15.   Esta impressão poderia se basear em análises sobre as implicações da incapacidade civil relativa imposta aos índios no revogado inciso III do art. 6º do Código Civil anterior e com a orientação inscrita no parágrafo único deste dispositivo legal, segundo o qual:


 


“… Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país”;


 


16.   A perspectiva estatal de viabilizar a adaptação dos índios à civilização do país ganhou foro constitucional a partir de 1934, através do instituto da “incorporação a comunhão nacional”;


 


17.   Regulado pela Lei nº 6.001/73, que dispõe sobre o Estatuto do Índio a incorporação, constitui o estágio de contato com a sociedade brasileira de forma a possibilitar seu conhecimento e compreensão sobre o funcionamento deste grupo social no qual se incorporaria;


 


18.   Quando o inciso III do art. 4º do Estatuto do Índio dispõe que os índios integrados são os “… incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis”, externa a compreensão e a vontade estatal no sentido de que os índios passem a vivenciar os valores da sociedade dita nacional;


 


19.   Nesta linha de argumentação a conclusão a que se poderia chegar seria pela inexistência de personalidade jurídica das comunidades indígenas, já que na ótica incorporativista poderiam perder suas características culturais e com isso seriam tratados como cidadãos idênticos aos não-índios;


 


20.   Esta visão etnocêntrica predominante na sociedade brasileira informaria a desconsideração doutrinária sobre a existência de grupos sociais conhecidos como indígenas por manterem vinculação histórica com sociedades pré-colombianas e que se identificam e são identificados como pertencentes a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem de outras sociedades, embora se tenha presente o esforço que muitos juristas fizerem, como ainda fazem, para afirmar o respeito a existência destes grupos sociais, inclusive como povos que são;


 


21.   Talvez a partir da consideração de aspectos como os abordados acima se possa compreender a razão pela qual, no relacionamento das comunidades indígenas com os setores estatais e da sociedade brasileira pretenda-se aplicar as mesmas regras de funcionamento da sociedade brasileira, no caso, relativo à forma e a prova de sua existência enquanto pessoas jurídicas;


 


22.   Ocorre que no mesmo texto legal, que disciplina a situação jurídica dos índios no Brasil, outros dispositivos conferem às comunidades ou grupos indígenas a titularidade sobre bens. Para tanto, analisem-se os arts. 32, 40 – II e III da Lei n.º 6001/73; e a legitimação processual, art. 37 da Lei n.º 6001/73:


 


“Art. 32 – São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.”


“Art. 37 – Os grupos tribais ou comunidades indígenas são partes legítimas para a defesa dos seus direitos em juízo, cabendo-lhes, no caso, a assistência do Ministério Público Federal ou do órgão de proteção ao índio.”


“Art. 40 – São titulares do Patrimônio Indígena”;


II – o grupo tribal ou comunidade indígena determinada, quanto à posse e usufruto das terras por ele exclusivamente ocupadas, ou a ele reservadas;


III – a comunidade indígena ou grupo tribal nomeado no título aquisitivo da propriedade, em relação aos respectivos imóveis”;


 


23.   Com estes dispositivos, o Estatuto do Índio de 1973 refletiu, significativo avanço na percepção jurídico-legal do Estado no sentido de que após 57 anos de vigência do Código Civil, aquela perspectiva no sentido de que os índios ao se adaptarem a civilização do país pudessem perder sua identidade étnica e cultural não era tão determinante, embora prevalecesse com a concepção incorporativista ou integracionista, a idéia de que a sociedade brasileira devesse ser o único referencial na construção dos relacionamentos sócio-econômicos;


 


24.   Na medida em que o Estado, através de ato normativo do Poder Legislativo Federal reconheceu a titularidade dos bens e a legitimação processual às comunidades indígenas projetou-as no plano jurídico como entes distintos de seus membros ou integrantes e possuidores de capacidade para possuir e exercer direitos sobre seus bens e ações;


 


25.   Esta circunstância fez com que a legislação indigenista rompesse a limitação conceitual expressa no Código Civil, impondo a obrigação de todos em respeitar esta peculiaridade;


 


26.   Analisando a capacidade processual das comunidades indígenas, o renomado Prof. Dalmo de Abreu Dallari comenta sobre a personalidade jurídica das comunidades indígenas, nos seguintes termos:


 


“Antes de tudo é preciso considerar que as comunidades indígenas não tem apenas existência de fato mas também de direito. A lei federal n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), fala inúmeras vezes na comunidade indígena, inclusive como proprietária de terras, reconhecendo, portanto, sua personalidade jurídica.


Um dado importante, que os juristas mais apegados ao formalismo não consideram, é que a comunidade indígena é um forma especial de associação, que não se subordina as formalidades exigidas para outras espécies de associações. O Estatuto do Índio, em vários de seus artigos, determina que seja respeitados os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas. E nenhuma lei diz como se constitui, como se organiza e como funciona uma comunidade indígena, embora o direito reconheça a comunidade como existente e lhe assegure inúmeros direitos. Assim, pois, seria absurdo pretender que a comunidade indígena tivesse estatutos registrados em cartório para ter reconhecidas sua existência e sua condição de pessoa jurídica. A lei não exige isso.” (publicado no jornal FOLHA DE SÃO PAULO, em 23.04.83);


 


27.   Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o disposto no art. 231 contribuiu de forma significativa para a afirmação desta compreensão. A perspectiva incorporativista até então em vigor, cedeu lugar ao princípio do “respeito a diversidade étnica e cultural” expresso no reconhecimento aos índios de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e na determinação de respeito a todos os seus bens;


 


28.   Com isso entende-se estar incompatibilizada a relativa incapacidade dos índios e seu correspondente instituto da tutela (ver texto em anexo);


 


29.   Além disso, o art. 232 da CF considerou as comunidades indígenas, bem como os índios e suas organizações, partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Neste aspecto é interessante observar a mudança constitucional em relação ao disposto no art. 37 do Estatuto do Índio, ao eliminar a assistência do Ministério Público Federal ou do órgão de proteção ao índio;


 


30.   A personalidade jurídica das comunidades indígenas decorre ainda, do disposto no art. 61 do Estatuto do Índio, que conforme indicado anteriormente, estende “…aos interesses do Patrimônio Indígena os privilégios da Fazenda Pública, quanto à impenhorabilidade de bens, rendas e serviços, ações especiais, prazos processuais, juros e custas”;


 


31.   Não há dúvida, portanto de que as comunidades indígenas, por decorrência de expressa previsão legal têm personalidade jurídica própria. Em conseqüência não necessitam e nem devem se constituir em associações civis, com registro em cartório para poderem contratar com terceiros e mesmo obter inscrição no CNPJ.


 


III. A prova da existência das comunidades indígenas


 


32.   Estabelecida a compreensão sobre os fundamentos da personalidade jurídica das comunidades indígenas resta abordar o tema relativo a prova de sua existência, já que os registros cartorários cumprem esta função;


 


33.   Neste particular também vale considerar o comentário do Prof. Dalmo Dallari, no mesmo artigo publicado na imprensa paulista, acima citado:


 


“Um ponto interessante, que também desafia o formalismo, é a forma de representação das comunidades indígenas, ou seja, quem dará procuração a um ou mais advogados em nome da comunidade. Esse pormenor é muito importante porque a lei brasileira exige, como regra geral, que as partes estejam representadas por advogado para ingressarem em juízo.


A solução desse problema é muito simples, desde que se tenha em conta que a comunidade indígena é uma forma especial de associação, sujeita a regras próprias.


Quem representa a comunidade é o próprio índio ou o grupo de índios que, de acordo com os costumes tribais, fala habitualmente em nome da comunidade. Basta que os representantes costumeiros de um comunidade indígena compareçam a um Tabelião, juntamente com duas ou mais pessoas que tenham documento de identidade e que atestem que aqueles índios são realmente representantes de sua respectiva comunidade. Assim será dada uma procuração por instrumento público, não deixando margem a qualquer dúvida”;


 


34.   Admite-se, assim para a prova da existência de uma comunidade indígena qualquer meio de prova previsto na legislação brasileira. Porém, destes destacam-se, por sua facilidade:


 


a) a prova documental – sejam textos publicados, documentos oficiais autenticados, declarações ou atestados de agente do poder público, no caso das comunidades indígenas, dos Administradores Regionais, Chefes de Postos, ou outra autoridade do órgão indigenista federal ou mesmo do Governo estadual ou municipal, declarando ou atestando a existência, a localização e mesmo a forma de representação; e


b) a prova testemunhal, que consiste no testemunho, perante a pessoa ou a instituição que solicite a prova, de pessoas idôneas e conhecidas da parte a quem se destina a prova, sobre a existência, a localização e a forma de representação da comunidade;


 


35.   No que tange a forma de representação deve-se considerar o disposto no art. 231 da Constituição Federal, quando reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições;


 


36.   As comunidades indígenas enquanto grupos sociais diferenciados entre si e da sociedade brasileira por razões étnicas e culturais organizam-se de forma própria, baseados nos seus valores culturais;


 


37.    Na medida em que o Estado reconhece as formas próprias de organização social dos índios, fixa-se a obrigatoriedade de que nos relacionamentos que venham a ser estabelecidos com estas comunidades estes aspectos sejam considerados;


 


38.   Neste sentido, torna-se necessário, antes de qualquer iniciativa, conhecer, através de estudo antropológico, como determinada comunidade com quem se pretenda relacionar se organiza socialmente. A partir deste conhecimento será possível estabelecer os contatos devidos para que a pretensão ou o objetivo contratual ou o ato jurídico sejam praticados;


 


39.   Embora não se deva generalizar, percebe-se que em muitos casos as comunidades indígenas têm na figura do CACIQUE , ou TUXAUA a pessoa legitimada para externar o consenso ou a opinião dos demais membros da comunidade. Em outros casos o Cacique ou o Tuxaua se fazem acompanhar por outros membros, às vezes anciãos da comunidade. Ou existem formas organizativas que exigem a presença de vários membros da comunidade que, em conjunto, talvez como representantes das unidades familiares, expressam a vontade da comunidade;


 


40.   Neste aspecto o que parece relevante destacar, consiste na necessidade dos sujeitos não-índios, que pretendam se relacionar com as comunidades indígenas, compreenderem a importância do conhecimento e respeito sobre as formas próprias de organização social e de seus valores culturais;


 


41.   Observe-se que estas orientações aplicam-se integralmente para quaisquer situações em que se pretenda o estabelecimento de relações jurídicas com as comunidades indígenas. Ou seja, tratam-se de contratos de depósito bancário, recebimento de doações de pessoas naturais ou jurídicas nacionais ou estrangeiras, inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas na Secretaria da Receita Federal, do Ministério da Fazenda, outorga de poderes em procuração através de instrumento público registrado em cartório, compra e venda de imóveis e de veículos.


 


IV. Conclusão


 


Do exposto, o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, requer que a Secretaria da Receita Federal, no uso de suas atribuições, reconhecendo que as comunidades indígenas possuem personalidade jurídica própria, por decorrência do que estabelecem os arts. 32, 40, II e III e 61, todos da Lei n.º 6.001/73 e o art. 232 da Constituição Federal, expeça Instrução Normativa destinada a dispor sobre a inscrição das comunidades indígenas no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.


 


N. Termos


E. Deferimento


Brasília, 09 de maio de 2005.


 


Paulo Machado Guimarães


OAB-DF n.º 5.358


 


Cláudio Luiz dos Santos Beirão


OAB-AL n° 3.347


 

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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