A inconstitucionalidade dos projetos de decreto legislativo para sustar os efeitos da homologação da demarcação da terra indígena Raposa/Serra do Sol
I. Os Projetos de Decreto – Legislativo para sustar a homologação da demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol
Tramitam na Câmara dos Deputados seis (6) Projetos de Decreto – Legislativo (PDC) de n° 1621, 1622, 1623, 1624, 1625, 1626, e 1631, todos de 2005, propostos respectivamente pelos Deputados Federais Francisco Rodrigues – PFL/RR, Rodolfo Pereira – PDT/RR, Almir Sá – PL/RR, Maria Helena – PPS/RR, Luciano Castro – PL/RR, Pastor Frankembergen – PTB/RR e Suely Campos – PP/RR, todos com o propósito de sustar, sob o fundamento do que estabelece o inciso V do art. 49 da Constituição Federal, a aplicação do Decreto, sem número, do Presidente da República, de 15 de abril de 2005, que homologa a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, tradicionalmente ocupada pelos Povos Indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Patamona, localizada no Estado de Roraima.
No Senado Federal, o Senador Mozarildo Cavalcanti também propôs o Projeto de Decreto Legislativo (PDS) n° 192, de 2005, com a mesma finalidade da iniciativa dos parlamentares de Roraima, na Câmara dos Deputados.
II. A competência do Congresso Nacional para sustar “atos normativos” do Poder Executivo
A Constituição Federal confere competência exclusiva ao Congresso Nacional para:
“Sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Trata-se de mais uma das possibilidades intrínsecas ao Poder Legislativo, para o exercício da fiscalização das atividades do Poder Executivo.
No caso, a previsão admitida pelos constituintes originários refere-se à possibilidade do Congresso Nacional impedir que atos normativos do Poder Executivo, que exorbitem de seu poder regulamentar gerem efeitos jurídicos.
Com efeito, esta possibilidade constitucional se presta mesmo à preservação do poder normativo do parlamento, contra excessos de titulares do Poder Executivo.
Daí a referência à possibilidade de sustar atos normativos.
III. A natureza jurídica dos Decretos de Homologação de Demarcação de Terras Indígenas
A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios é uma atribuição constitucional da União, prevista no caput do art. 231 da CF.
De acordo com o que estabelece o art. 19 da Lei n° 6.001/73 por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, ou seja, a Funai, as terras indígenas serão administrativamente demarcadas de acordo com “processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”.
Atualmente o “processo” administrativo destinado à demarcação das terras indígenas está regulado no Decreto n° 1775/96.
A homologação da demarcação administrativa de uma terra indígena, que resulta de determinação legal, inscrita no § 1º do art. 19 da Lei n° 6.001, consiste em fase do procedimento administrativo destinado à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
O Decreto do Presidente da República, que homologa a demarcação de uma terra tradicionalmente ocupada por índios é um ato materialmente administrativo, despido de qualquer natureza normativa.
A demarcação consiste assim, em ato administrativo, por intermédio do qual a União explicita os limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, de acordo com os usos, costumes, crenças e tradições de cada grupo étnico ou dos povos que ocupam a terra ser demarcada.
Nesse sentido, a demarcação das terras indígenas tem caráter declaratório.
Com efeito, a ocupação tradicional de uma terra por índios é que legitima sua posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos das terras que tradicionalmente ocupam.
Não é por outra razão que o texto constitucional reconhece aos índios os “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
No que se refere à natureza jurídica dos atos relacionados à demarcação das terras indígenas, convém lembrar o entendimento firmado unanimemente pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 710-6-RR, proposta pela Assembléia Legislativa do Estado de Roraima, contra o Decreto n° 22, de 1991, posteriormente revogado pelo já mencionado Decreto n° 1775, de 1996 e contra a Portaria n° 580, de 15 de novembro de 1991, por intermédio da qual o então Ministro de Estado da Justiça declarou os limites das terras tradicionalmente ocupadas pelo Povo Indígena Yanomami e determinou sua demarcação administrativa pela Funai.
A semelhança desse precedente com a hipótese tratada nos Projetos de Decreto Legislativo resulta da circunstância de que o Decreto sem n°, do Presidente da República, que homologou a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, baseou-se nos limites declarados na Portaria n° 534, de 13 de abril de 2005, do Ministro de Estado da Justiça, que tem natureza e finalidade idêntica à Portaria n° 580, de 1991, do Ministro da Justiça.
No julgamento da ADI 710-6/RR, o Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto do Relator, o Exmo Senhor Ministro Marco Aurélio, que em relação à Portaria n° 580/91 se se manifestou nos seguintes termos:
“A Portaria n° 580 define a área que se entende como de posse permanente indígena, havendo referência a municípios e encerra determinação à FUNAI para que promova a demarcação administrativa, proibindo o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do perímetro especificado. Daí a convicção de que os atos impugnados não são normativos, mas simplesmente administrativos, como salientado no parecer do Ministério Público Federal, subscrito pelo Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Moacir Antônio Machado da Silva e aprovado pelo Procurador Geral da República, Dr. Aristides Junqueira Alvarenga. A impugnação veiculada tem como móvel, em si, a extensão da área declarada como de posse permanente indígena, tema, aliás, tratado apenas na Portaria n°580”.
O Acórdão[1] do julgamento[2] desta Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 710 foi ementado nos seguintes termos, a servir de parâmetro para o deslinde da questão no âmbito do controle da constitucionalidade pelo Poder Legislativo:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ATOS MATERIALMENTE ADMINISTRATIVOS”.
A ação direta de inconstitucionalidade é meio impróprio ao ataque de atos meramente administrativos. Isto ocorre quando se impugna Decreto do Chefe do Poder Executivo e Portaria de Ministro de Estado que disciplinam a demarcação de terras indígenas, traçando parâmetros para a atividade administrativa a ser desenvolvida. Possível extravasamento de área contido na Portaria resolve-se no âmbito da ilegalidade ““.
IV. A inconstitucionalidade dos Projetos de Decreto Legislativo que pretendem sustar o Decreto do Presidente da República que homologou a demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol
Os Projetos de Decreto Legislativo que pretendem sustar o Decreto do Presidente da República que homologou a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol deve ser rejeitado por vício de inconstitucionalidade.
Com efeito, os pressupostos para que o Congresso Nacional possa sustar um ato do Poder Executivo é que este ato seja normativo e que, além disso, o Poder Executivo tenha exorbitado de seu poder regulamentar.
No caso, conforme analisado o Decreto que homologou a demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol não tem caráter normativo, sendo, como bem delineado pelo Supremo Tribunal Federal, ato materialmente administrativo.
Além disso, este ato administrativo de homologação decorre de expressa determinação legal, recepcionada pelo texto constitucional de 1988.
V. Conclusão
Do exposto, conclui-se no sentido de que os Projeto de Decreto Legislativo que pretendem sustar os efeitos jurídicos do Decreto de 15 de abril de 2005, do Presidente da República, que homologou a demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol devam ser rejeitados, por não preencherem os requisitos constitucionais para sua admissibilidade.
Brasília, 10 de maio de 2005.
Paulo Machado Guimarães
OAB-DF n° 5.358
Assessor Jurídico do Cimi