Aty Guaçu, povo Guarani e aliados
Um vento forte bate no toldo colorido instalado para receber os participantes de uma Aty Guasu, que alguém intitulou como sendo do “compromisso”, ou da busca do consenso em torno da estratégia de luta e da articulação necessária.
Haviam chegado com muita expectativa pois sempre é um momento político e religioso importante. Um momento de conseguir enxergar para além das enormes dificuldades impostas pela história de confinamento e destruição de seus territórios tradicionais. Curiosamente no convite da Funai falava da ampla presença de representantes do órgão, além da presença de representantes de sete ministérios envolvidos diretamente com a questão indígena.
No início dos trabalhos já eram mais de trezentas lideranças e inúmeras crianças que davam um tom alegre e descontraído ao ambiente. Dos não índios também havia um pouco mais de uma dezena de diversos órgãos e entidades. Tratava-se de uma Aty Guasu que surgia numa conjuntura em que o governo, acuado e sem ter conseguido dar respostas satisfatórias aos problemas cruciais desse povo, especialmente na questão da terra e produção de alimentos, pagava alto preço pela sua inabilidade e falta de decisão política em garantir os direitos indígenas. Era preciso uma ação que efetivamente caminhasse no rumo do clamor do povo Guarani e Kaiowá. Daí a convocação para ouvir, debater e apresentar propostas na questão da terra e gestão territorial.
Inúmeros carros estavam ao redor da escola “Ñande Reko Arandu”, dentre eles carros da polícia e do exército.Indicativo de segurança e preocupação na Terra Indígena na fronteira com o Paraguai. Os não indígenas presentes estavam sendo cuidadosamente fotografados, talvez para algum serviço de inteligência.
Terra: o grito de todos
Após breve apresentação das delegações das mais de vinte aldeias e dos aliados, foi sugerida uma proposta de trabalho para a identificação dos principais desafios que o povo está enfrentando e como agir para supera-los. Logo foram criados grupos de trabalho, que englobavam os das áreas de conflito, das áreas em revisão de limites, dos agentes de saúde, dos professores, dos jovens, das mulheres, dos não índios, dentre outros. Na plenária todos os grupos foram unânimes em colocar a questão dramática em que vivem em função da falta de solução na questão da terra. Discursos duros foram apresentando a situação angustiante em que vive a maioria das comunidades sem que providências sejam tomadas pelo governo, através da Funai, que é a responsável de encaminhar os processos de regularização das terras.
A questão da terra foi efetivamente o grande tema que marcou esse primeiro dia de mais uma Grande Assembléia. Além disso, foram discutidas as propostas de participar ou não de um encontro para o qual estavam sendo convidados e que tinha como promotores a Associação das Comunidades Indígenas do Mato Grosso do Sul, uma organização apadrinhada por políticos e interesses econômicos, a exemplo do que acontece em Roraima e outras regiões do país. O palanque estava sendo montado para que a Comissão de Direitos Humanos do Senado, tendo à frente o senador Juvêncio, pudessem expor suas propostas, interesses e resultados que estavam obtendo a partir das Audiências Públicas. Na pauta constava um posicionamento com relação à PEC ( do Mozarildo), que submeteria a aprovação das terras indígenas ao Senado, e um “protocolo de intenções”. O título do encontro já sugeria o rumo pretendido “terras sim, conflitos não”. Os membros da Aty Guasu questionaram a intenção divisionista do evento, dizendo que as lideranças Guarani Kaiowá estavam ali na Aty Guasu”, e que ninguém iria a essa reunião de Dourados. Ficou decidido que ninguém iria a esse encontro em Dourados, mas que enviariam convite para que os Senadores viessem conversar com eles na Aty Guasu.
Outro assunto debatido foi sobre o Estatuto dos Povos Indígenas. Vendo que era bastante difícil e complicado para aprofundar e entender tudo que implica a luta por essa nova lei a reger as relações do Estado e da sociedade brasileira com os povos indígenas, ficou o indicativo de promoverem momentos específicos para conhecer e aprofundar esse assunto.
Também foi feito um questionamento sobre a utilização da palavra Guarani “Recovê” que quer dizer “viver”, para negar e combater os direitos indígenas, através dessa organização dos fazendeiros. Foi levantado a possibilidade de solicitar ao Ministério Público para que entre com uma ação pedindo a não utilização dessa palavra Guarani para pelos que são contra seus direitos.
Alguns grupos colocaram em suas conclusões o pedido de indenização pelos caciques assassinados. A indenização seria a imediata demarcação de todas as terras.
Para o segundo dia ficou marcado um amplo debate em torno das propostas de identificação e demarcação das terras Guarani em curso e que leva em consideração as cinco bacias dos rios: Amambaí, Apa, Dourados, Iguatemi e Evinhema.
Avançar na terra e na esperança
Uma chuva fina veio embalar a noite, trazendo também um frio com algumas preocupações e incômodos. Mas nada poderia conter o ânimo de avançar na discussão, exigências e definição de estratégias de reconquistar a terra sagrada e necessária recuperando sempre mais a esperança combalida por tantas mortes, violência e sofrimentos.
Os trabalhos sempre começam e terminam com ritual Guarani, onde os nhaderu – caciques realizam seus cantos e danças pedindo coragem e força para todos os presentes.
Foi formada uma ampla mesa de assessores para apresentar e debater as propostas com relação às terras Kaiowá Guarani. Foi historiado o processo definido na Funai de trabalhar a questão das terras por bacias dos rios já mencionados. Um dos trabalhos de levantamento já está concluído. Resta agora a Funai dar seqüência ao trabalho através da constituição de grupos técnicos. Houve muitos questionamentos e dúvidas, especialmente sobre o tempo e efetiva viabilidade dessa inovadora sistemática de ver de forma ampla e articulada o estudo e definição dos territórios Guarani. E uma preocupação bem concreta foi sobre as condições de sobrevivência nesse tempo de definição das terras. A questão que ficou muito evidente é de que apenas com a organização e pressão permanente e ampla das comunidades indígenas e suas organizações é que o processo de reconquista das terras irá avançar.
Foram apresentadas inúmeras situações em que as comunidades pedem providências urgentes. Uma delas foi novamente a de Ñanderu Marangatu. Em documento lido e aprovado na Assembléia eles denunciam: “Nós comunidade indígena da aldeia Mande Ru Marangatu reunidos no dia 17 de maio de 205, vimos por meio desta pedir que o responsável sobre a indenização da nossa terra, indenizem os invasores o mais rápido possível. Estamos exigindo a imediata retirada destes invasores, porque já esperamos demais e porque eles estão acabando com tudo que são plantas nativas, como madeira, remédios medicinais, palmeiras que nós utilizamos para a construção de nossas casas e nós indígenas que somos dono da terra não podermos utilizar nada nem mesmo tirar lenha para cozinhar nossos alimentos” .
Também foi encaminhado ao Ministro da Justiça e presidente da Funai denunciando a grave situação em que vive a população na aldeia de Tkuapery, anfitriã da Aty Guasu, onde vivem mais de quatro mil pessoas em 1.877 hectares de terra. Apesar de todas as violências uma estrada recentemente asfaltada tem causado a morte de 13 índios em menos de dois anos.
Em tom indignado e certa descrença as lideranças ficavam sem entender como um dos poderes faz uma coisa e outro desfaz, especialmente com relação às terras e as inúmeras ações judiciais que estão paralisando a regularização e em casos como Sucuri’y, as terras já estão até registradas e os índios continuam impedidos e ocupá-las.
Documentos e discriminação
Quando foi levantado o assunto da falta de documentação especialmente de grande número de adultos, em conseqüência de uma portaria da Funai, houve um debate acalorado. Foram mostrados inúmeros casos em que os índios são impedidos do acesso a direitos por falta de documento, ora da Funai, ora o civil. Foram feitos relatos dramáticos vivenciados nas comunidades. Falaram de morte de idosos na fila sem ser atendido por não possuir documento da Funai. Outros relataram fatos em que os índios sem o documento da Funai não ter direito ao caixão para serem enterrados. Vários casos de constrangimento foram relatados, considerados como discriminação. Perguntaram: “Porque documento de índio não vale? Não somos estrangeiros. Se valem documentos de japonês e outros que são carimbados quando vem pra cá, por que o do índio não vale?”. Uma liderança falou que não quer virar não índio, pois nunca viu um gavião virar urubu e vice-versa. Após o relato da morte de um senhor que morreu com 90 anos e que não tinha documento, mas que depois de ter morrido fizeram rapidamente uma declaração para que pudesse ser enterrado. Conclui perguntando:como pode alguém morrer se não existiu?
O procurador da República, Charles Pessoa, questionou a Funai pelo fato de ter criado uma situação estremamente grave com a edição de uma portaria decidindo não mais dar documento indígena para pessoas de mais de 12 anos. Disse já ter manifestado essa posição para funcionários do órgão e caso não houvesse uma revogação dessa portaria em breve, iria processar a Funai. Para os índios disse que infelizmente neste momento o que lhes resta fazer é andar com os dois documentos, o de índio e o civil. Isso até que não se regulamente a situação através do novo Estatuto dos Povos Indígenas. Para o representante do Cimi, isso é apenas revelador de uma situação mais séria que é a continuidade de relações colonialistas e assimétricas com que o Estado e a sociedade brasileira tem tratado os povos indígenas.
Apesar da chuva e do frio o resultado tem sido bastante promissor e já está marcada outra Aty Guasu para julho em Te Kuê (Caarapó) em julho.
Egon – Cimi – MS , Campo Grande, 23 de maio de 2005.
Anexo 1
Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, 17 de maio de 2005
Sr. Ministro da Justiça
Sr. Presidente da Funai
Nós comunidade indígena da aldeia Mande Ru Marangatu reunidos no dia 17 de maio de 205, vimos por meio desta pedir que o responsável sobre a indenização da nossa terra, indenizem os invasores o mais rápido possível. Estamos exigindo a imediata retirada destes invasores, porque já esperamos demais e porque eles estão acabando com tudo que são plantas nativas, como madeira, remédios medicinais, palmeiras que nós utilizamos para a construção de nossas casas e nós indígenas que somos dono da terra não podermos utilizar nada nem mesmo tirar lenha para cozinhar nossos alimentos.
A terra indígena Mande Ru Marangatu foi demarcada em outubro de 2004 e foi homologada conforme o decreto no. 1.775 no dia 28 de março de 2005 e publicada no diário oficial da união no dia 29 de março de 2005.
Segundo o administrador regional de Amambaí o tempo possível de espera é de 120 dias para a entrega de terra para nós, após a data da homologação.
Não aceitamos que ultrapasse este prazo. Pois a partir deste prazo estaremos ocupando nossa terra.
c.c. Ministério do Meio Ambiente
Ministério da Saúde
Ministério da Educação
Ministério do Desenvolvimento Agrário
Anexo 2
Terra Indígena Takuapery, 21 de maio de 2005
Senhores Senadores da Comissão de Direitos Humanos
a/c Sen. Juvêncio da Fonseca
Nós, mais de trezentas lideranças Kaiowá Guarani reunidos em nossa Aty Guasu – Grande Assembléia, na Terra Indígena Takuapery, soubemos da presença dos senhores Senadores da Comissão dos Direitos Humanos em Dourados, neste dia 21 de maio.
Soubemos também que os organizadores do encontro estão interessados em que algumas lideranças indígenas presentes na Aty Guasu, fossem a Dourados.
Discutimos sobre isso na nossa Assembléia decidindo que será muito mais proveitoso que os senhores venham conversar conosco na Aty Guasu, pois todos gostariam de estar manifestando sua opinião, ouvindo e debatendo as propostas dos senhores.
O momento por que passa o nosso povo é de grande preocupação e esforço para unir e juntar forças especialmente para a demarcação e garantia de nossas terras. Por isso estamos fazendo esse convite para os senhores senadores virem até nossa Assembléia.
Na esperança de sermos compreendidos e atendidos,
Atenciosamente
Comissão de Direitos Kaiowá Guarani
Comissão Estadual de Direitos Indígenas – CEDIN