Um dia na Marcha Nacional pela Reforma Agrária
Pelas manhãs, pé firme no asfalto; às tardes e noites, pisoteando a brachiara de latifúndios
De Goiânia a Brasília, de 1o a 17 de maio de 2005.
Delze dos Santos,
Frei Gilvander Moreira e
Renata Versiani
É quase impossível descrever o que vimos e vivemos ao lado dos 12 mil cidadãos e cidadãs sem-terra marchantes. Uma cidade que se desloca diariamente, a pé, de Goiânia para Brasília, de 1o a 17 de maio. Nossas mães que nos perdoem, mas, neste dia das mães, fizemos o que os nossos corações pediam há muito tempo: realizar a experiência de viver intensamente a luta com os trabalhadores rurais sem terra. Sentir, com eles, cada passo que separa a partida do objetivo a ser alcançado. Acreditar que é possível chegar bem, sem medo de enfrentar as dificuldades do frio da noite, do sol quente no asfalto, dos calos e bolhas nos pés, das dores nos joelhos e tornozelos, da carência quase absoluta de bens materiais de consumo. Ficar boquiabertos diante da enorme capacidade de organização e de mobilização do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – que congrega trabalhadores e trabalhadoras, inicialmente com um nível tão pequeno de escolaridade, mas que até durante a Marcha aproveitam para estudar. Assim vão construindo um outro Brasil e vão se construindo. Sabem muito bem que a ignorância é prisão. O conhecimento há de ser o caminho de libertação. Vencer a colonização pela informação. Formar cidadãos e cidadãs conscientes de que qualquer mudança há de ser construída pela força dos próprios trabalhadores, organizados em movimentos sociais legítimos.
Chegamos ao acampamento, às margens da rodovia no Município de Abadiânia em Goiás, por volta das 12h de sábado, dia 07 de maio. A Marcha havia chegado há poucos minutos atrás. Os companheiros responsáveis pela segurança tomaram todos os cuidados para fazer a nossa identificação logo na chegada. Não foi difícil encontrar as duas tendas das brigadas de Minas Gerais. Um baiano muito simpático nos deu as boas vindas e, já nos convidando para a noite cultural em sua tenda, acompanhou-nos até onde estavam os filhos e filhas de Minas. Aproveitando a sombra da enorme lona azul, estendemos os nossos colchonetes no mesmo espaço quase totalmente ocupado pelos 430 membros das brigadas de Minas que ali tinham espalhado colchonetes, um ao lado do outro. Era um mar de gente, bonito de se ver. Ao lado dos companheiros e companheiras , ainda mais queimados pelo sol da manhã, fomos informados da agenda da Marcha, já em seu 7o dia.
Mais tarde, de alojamento em alojamento, peregrinando pelos quase 23 circos montados em cerca de cinco hectares de terra improdutiva, fomos conversando e entendendo a organização da Marcha. A diversidade cultural desse enorme continente chamado Brasil faz com que cada ponto do acampamento seja um convite para conhecer um pouco dos 23 (vinte três) Estados brasileiros ali representados. Parar, cantar e dançar ao som de sanfonas, violões, pandeiros e gaitas, tomar um gole de chimarrão. Acompanhar atentos os dedos das mulheres artesãs que, enquanto descansam o corpo debaixo da lona, continuam tecendo; a seriedade de homens e mulheres reunidos avaliando suas atribuições do dia anterior e planejando o dia atual e os seguintes. Observar as crianças em suas atividades na Ciranda Infantil. Outros jogando baralho; escrevendo uma poesia, fazendo anotações em um diário. Alguns, devotamente lendo um salmo na Bíblia. Perguntamos: “A Bíblia precisa estar na marcha?” “Sem dúvida, pois Deus caminha conosco. Aqui descobrimos que somos Povo de Deus em busca de terra, pão e liberdade. Deus está conosco. Infeliz quem tenta impedir nosso projeto que é libertar a mãe terra!”
Chama atenção a democratização de todas as decisões. A responsabilidade de cada integrante é levada muito a sério, sob pena de comprometer os objetivos a serem alcançados. Tudo é discutido e assumido por todos. Discute-se entre todos simplesmente tudo, nas centenas de brigadas, grupos e sub-grupos. Desde como os companheiros e companheiras da brigada da água devem servir a água – se mete o copo dentro do balde, comprometendo a higiene, ou se despeja a água do balde no copo correndo o risco do desperdício – até como agir para economizar água ou como deve ser a postura do Brasil em relação à ALCA, às multinacionais. Qual a pauta de reivindicação que será entregue em Brasília, para o Lula, para o Congresso Nacional e Poder Judiciário.
Na cozinha todo cuidado é pouco para não faltar alimento para aquela multidão. A higiene e a qualidade das refeições são buscadas o tempo todo. Nas 23 cozinhas, uma por Estado, em um total de 450 cozinheiras e cozinheiros, a alegria de servir está estampada no rosto de todas e todos. O abastecimento de água potável estava ocorrendo de forma satisfatória, mas desperdício nem pensar. Os 100 banheiros químicos garantem um mínimo de conforto e a certeza de poder andar pelo enorme campo de brachiara, agora transformado em uma cidade de marchantes, sem o risco de pisar em algo desagradável. A brigada da saúde, atentíssima, cuida de todos para que possam ir bem até o final da Marcha. Prioritariamente, aplica meios da medicina alternativa e naturista.
Ao cair da noite, iniciou-se uma reunião na praça pública improvisada. Ali havia uma camionete com um telão para assistir ao vivo os jornais nacionais. Assistimos ao filme Caminhando para o Céu, um documentário da Marcha dos sem-terra para São Gabriel no Rio Grande do Sul. Saboreamos um inspirado sarau com poetas populares encantando a todos com suas poesias, trovas e desafios. Um sem-terra gritou: “Eu aposto a riqueza, que não tenho, que o Jornal Nacional não vai passar nada sobre a nossa Marcha.” Dito e feito. Ficou claro, mais uma vez, como a mídia cria um mundo virtual muito distante do Brasil real. Para anestesiar o povo, fala-se de mil e uma coisas exóticas e entretenimento.
Encantador também foi passar a noite naquele enorme acampamento, sob o céu estrelado e fugazes luzes dos faróis. Recolhidos na tenda dos mineiros batemos papo, contamos causos e piadas. Quando algo se perdia em volta da gente, era só perguntar: Quem tem um isqueiro aí? Logo aparecia alguém com uma faísca de luz que fazia aparecer os óculos perdidos. A falta de energia elétrica transforma as sobras em algo sobrenatural. Os medos de assombração são agora alegoria que encanta aquele bate papo amigo com os caminhantes até que cheguem o dia seguinte e a hora de retomar a Marcha. Todas essas lembranças de noites vividas na roça, agora acompanhadas de uma esperança muito grande para o Brasil, ao amanhecer. Após muita prosa e piadas, alguém sugere: “A turma da segurança está recordando que já está na hora de fazer silêncio. Vamos rezar um pai nosso antes de dormir.” E eis que o sono envolve todos como um alimento que revigora as energias para seguir marchando no dia seguinte. A última sinfonia acaba sendo as tosses provocadas pela inevitável friagem da noite passada na fragilidade do abrigo de lona improvisado.
Às 4 horas da madrugada, foguetes anunciaram a hora de levantar, arrumar os poucos pertences, pôr a mochila nas costas, os colchões nos caminhões de apoio e seguir em frente. Ainda no escuro, surgiam de todos os lados pessoas alegres, animadas, preparadas para vencer mais 18 km de caminhada. Na organização, as regras já estão claras e sabidas de cor. Cada dia um Estado puxa à frente. Dentro de cada Estado, cada dia, uma regional lidera. Esse revezamento é muito significativo para ir desmistificando as lideranças eternas e criando oportunidades para que novos integrantes mostrem a sua criatividade, responsabilidade e capacidade de liderar. No dia 08 de maio foi à frente Pernambuco. Empurrou o Rio Grande do Sul. Entre os companheiros de Minas Gerais, puxou à frente o acampamento Rosinha Maxacali, uma mártir dos sete povos indígenas mineiros ainda existentes, e resistentes.
Cada marchante saía do barracão, levando nas costas uma mochila com uma garrafa d’água e livros do Movimento, além de cartilhas e um caderno, caneta e lápis. Cada um recebeu emprestado do Fórum Social Mundial um rádio com fone de ouvido – 12 mil ao todo. Com o pé na estrada, pelo radinho, cada marchante ouvia as orientações da Rádio Brasil em Movimento, verás que teu filho não foge à luta.
Tudo nos conformes, lentamente, o enorme cordão humano vai se formando ao longo da BR 060. Imaginem a cena, doze mil pessoas enfileirando-se em três colunas para começarem a marchar. Não há erro. Quando a delegação do 23o Estado entrou na rodovia, deixando o acampamento, o início da Marcha já estava a cerca de 06 km de distância. Equipes de animação, de comunicação, de coordenação, de cantores, poetas, trovadores e de lideranças iam se revezando nos trios elétricos que acompanham a Marcha e na condução da Rádio. Durante todo o percurso são entoados cantos, são proferidas palavras de ordem. Nada artificial. Cada gesto retrata o estado de espírito de quem sabe o que quer, onde está e onde deve chegar.
Após a última delegação botar o pé na estrada, a brigada da mística entra em ação e, demonstrando uma criatividade sem limites, “inspiração pra mais de metro”, vai envolvendo todos, através de símbolos, músicas, poesias e gestos. Vai construindo militantes revolucionários, acordando dentro de cada um/a os valores mais sublimes. As místicas são tão marcantes que se tornam, desde então, inesquecíveis.
Para trás ficaram os companheiros das brigadas de apoio, das barracas, da cozinha e da limpeza geral. Os responsáveis pelas barracas desarmam rapidamente toda a estrutura de ferro e plástico e seguem nos enormes caminhões para deixarem pronta a estrutura do próximo acampamento. Os companheiros responsáveis pela limpeza passam uma varredura no acampamento desmontado, juntando os sacos de lixo. Deixam para trás somente as marcas do capim pisado. Levam sempre a utopia da transformação de uma sociedade injusta – uma das mais desiguais do mundo -, e marcam de forma indelével o coração de tantos que assistem aquela “banda passar”, como diria Chico Buarque de Holanda.
Quando a Marcha chega ao novo acampamento, os circos já estão remontados. É a cidade itinerante da cidadania!
Com a ternura e a liberdade das crianças, com a coragem e a teimosia das mulheres, com a resistência dos negros e com a mística dos nossos parentes indígenas, com filosofia marxista e a Teologia da Libertação na cabeça, apoiados pelo povo das Comunidades Eclesiais de Base e pela Comissão Pastoral da Terra, levando no coração a utopia e o testemunho de Jesus Cristo, de Zumbi e dos Quilombos, de Karl Marx, de Rosa Luxemburgo, de Olga Benário, de Gandhi, de Martin Luther Kin, de Che Guevara, dos camponeses do Contestado, de Antônio Conselheiro e Canudos, das Ligas Camponesas, dos/as mais de dois mil mártires do grande movimento popular que co(i)nspira a construção de Um Outro Brasil, justo e humano, 12 mil sem-terras marcham pelo planalto central.
“Nunca vi tanta organização assim!” Esta frase brotava a todo o momento da boca de quem chegava para engrossar a Marcha. Há sempre brigada para tudo. Brigada da cozinha, de barracas, da saúde, da água, da segurança, da comunicação, de mística, do vídeo, das coordenações, das mulheres, da CPT, da Conferência das freiras e freis do Brasil.
Incrível é perceber o respeito e a seriedade com que cada marchante cumpre suas tarefas. Em todos os momentos, por maior que seja a correria, não se vê sem terra destratar ou ser mal educado com qualquer pessoa. Ao contrário, sempre solidários e prontos para ajudar – difícil de se ver hoje em nossa sociedade, marcada pelo individualismo e pela exacerbação da competição.
Momentos como esses, vividos com o MST, fazem a diferença. Ver no outro alguém como você mesmo, merecedora de respeito e consideração. Exatamente isso o que os sem terra retomam. Muito antes de se auto-proclamar ou discursar a mudança social, ensinam fazendo. Internalizam valores que há muito estão esquecidos na nossa sociedade.
Muitos ainda perguntam: O que querem afinal os trabalhadores do MST com essa Marcha? Já de início podemos afirmar. O objetivo principal é a realização da tão esperada Reforma Agrária no Brasil. Uma Reforma Agrária que já não pode ser mais concebida como a mera distribuição de terras improdutivas. Contrariamente, uma Reforma Agrária que seja ao mesmo tempo uma profunda reforma na iníqua estrutura fundiária brasileira e também uma política capaz de criar nova correlação de forças na sociedade. Onde o primado do lucro seja superado pelo respeito e solidariedade – por todos (e tudo) – de forma a cumprir os objetivos da nossa Constituição Federal que é o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a marginalização e diminuindo as desigualdades regionais.
Ao vermos trabalhadores rurais – que já passaram por tantas dificuldades como a maioria dos brasileiros -, lendo livros, discutindo e acreditando neles mesmos, retomando sua dignidade e força de viver, não acreditando mais que são pobres porque são piores ou não tiveram competência para serem melhores ou mais ricos, com essa coragem para desafiar as distâncias, mostrar o descaso das políticas públicas, criando condições efetivas para pôr fim à pobreza no Brasil, começamos a acreditar que outro país é possível, que nossa história pode e deve ser diferente.
Onde estivermos, continuaremos gritando palavras de ordem, com a disposição de lutar sempre contra toda forma de injustiça, pela imediata implantação da Reforma Agrária no Brasil. Em pensamento, estaremos estendendo tapete vermelho para receber na capital federal quem realmente faz a história no Brasil. Um Outro Brasil, justo e solidário.
Um abraço terno, firme na luta.
Frei Gilvander Moreira,
assessor da Comissão Pastoral da Terra.
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Delze dos Santos Laureano,
Advogada da RENAP e professora de Direito da PUC/Minas e do Instituto Metodista Isabela Hendrix.
Email: [email protected]
Renata Versiani Scott Varella,
Bacharel em Direito e integrante do Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG.
Email: [email protected]
Belo Horizonte, 10 de maio de 2005,
dia em que celebramos 19 anos do assassinato de Pe. Josimo Tavares, assessor da CPT.