Palanques e intervenções
A pedido do presidente Lula foi à Dourados, nesta segunda feira dia 8, uma delegação com os presidentes da Funai, Incra, Funasa e assessor da Presidência da República. A imprensa local anunciou o fato como “intervenção”. Mais uma das dezenas de iniciativas dos governos municipal, estadual e federal, desde que começaram a ser anunciadas as mortes de crianças Guarani, em dezembro do ano passado. As CPIs, Comissões Especiais, Audiências Públicas, Seminários, Reuniões constituíram-se em verdadeiros palanques durante esses cinco meses, em que, muitas vezes o que menos tem contado é de fato a solução do grave problema da fome e as causas fundamentais que são a falta de terra, destruição ambiental e desestruturação da economia indígena.
Se olharmos a fundo os atores, as ações, as intenções veladas e as reveladas, as conseqüências, os bodes na sala ou os bodes expiratórios da realidade dramática dos Kaiowá-Guarani, teremos o enredo de um drama que se estende por séculos e décadas da história dessa região, que vai desde seu processo de ocupação até a consolidação dos interesses econômicos e políticos baseados hoje na estrutura de fazendas e agronegócio.
Uma coisa é certa, a questão indígena na Terra Indígena Dourados e na região do cone sul do Estado transformou-se em palanque para a oposição e de intervenção e manobra dos governos em todos os níveis.
Da parte dos executivos
O prefeito Tetila, de Dourados, sem dúvida sensível e bem intencionado em apoiar os índios, chegou a escrever um livro sobre Marçal de Souza, e como prefeito, implantou dezenas de projetos nas terras indígenas. Diante dos malogros e fracassos de todo esse esforço, e das constantes acusações de seus opositores, chegou a desabafar em alguns fóruns e reuniões, mostrando-se profundamente magoado e decepcionado. Certamente está pagando um preço alto pelas iniciativas e posturas equivocadas, embora bem intencionadas.
Em nível do governo do Estado, várias ações têm sido desenvolvidas através de secretarias, porém desconexas e desarticuladas, que em quase nada contribuído para superar a miséria e fome nas Terras Indígenas Kaiowá-Guarani. Apesar do vice-governador Egon Krakhecke, também ter militado na questão indígena e ter tomado algumas atitudes favoráveis aos direitos indígenas, particularmente a terra e evitando a utilização da polícia estadual para expulsar os índios, o governo estadual não conseguiu estruturar ações eficazes para o problema.
O governo federal primou pelo descompasso entre as intenções e prática revelando total incapacidade de ações conseqüentes e vontade política, especialmente na causa principal que é a questão da terra. Apesar da Funai ter colocado a questão das terras Guarani como prioridade nos últimos dois anos, quase nada aconteceu na prática de identificação, regularização e garantia das terras desse povo. Outro exemplo de total falta de política indigenista articulada foi a destinação de cinco milhões de reais para investir nas terras Guarani, de um momento para o outro. O resultado foi pífeo, e apesar, de alertados sobre o possível fracasso das ações implantadas às pressas, ainda assim, boa parte da verba acabou sequer sendo destinada aos índios. A destinação de mais cestas básicas e alimentos esbarrou em entraves práticos e burocráticos que revelam uma desorganização crassa. Mesmo por parte da Funasa, as medidas adotadas muito pouco conseguiram interferir na gravidade da situação. Ao contrário, acabaram sendo apontados aspectos de malversação de recursos, ineficácia e politicagem na administração.
Nas mais de dez prefeituras em que existe população Guarani, houve vários encontros para discutir medidas emergenciais, especialmente no aspecto de saneamento básico (água, por exemplo), estas revelaram um grande desconhecimento e despreparo dos executivos municipais para lidar com a questão. Chegou a haver disputa pelo pertencimento das terras indígenas, como foi o caso de Itaporã, que reivindicou que parte da Terra Indígena de Dourados passasse a pertencer ao seu municípiogena de Dourados passasse a pertencer ao seu munic indo e despreparo dos executivos municipais para lidar com a questão.
Da parte dos legislativos
As iniciativas foram inúmeras. Logo se cogitou numa CPI por parte da Câmara de vereadores de Dourados. Porém, a Assembléia Legislativa do Estado foi mais ágil em instituir a Comissão de Inquérito da Desnutrição. Mesmo assim, isso apenas aconteceu sob algumas condições, dentre as quais, a forma de tratar ou não tratar da questão da terra. Já a Câmara Federal dos Deputados também se comoveu diante da gravidade do fato e por já se terem armado em torno dele alguns palanques políticos, criou também sua Comissão Especial. Afinal de contas, os políticos do Estado do Mato Grosso do Sul não poderiam deixar de manter o controle sobre qualquer iniciativa a respeito. O Senado definiu então sua estratégia de constituir audiências públicas a respeito do tema, a partir da sua Comissão de Direitos Humanos.
Portanto, em todos os níveis do legislativo a movimentação se deu no sentido de garantir o controle sobre as discussões, evitando incursões que pudessem contrariar os interesses políticos e econômicos do status quo.
As inúmeras mortes de crianças Kaiowá-Guarani, a desnutrição e fome crônica, as violências e a dramática situação em que vivem esses povos, e que foram abundantemente divulgados pela mídia, serviram de oportunidade para essa série de ações numa operação jamais vista em torno da temática indígena.
Da parte do Judiciário
Este poder tem se notabilizado pela agilidade em conceder liminares favoráveis aos fazendeiros. Nesta conjuntura de ampla divulgação da grave situação dos índios confinados em mínimos pedaços de terra, a decisão com relação à Nhanderu Marangatu e Buriti, foi da manutenção da atual situação, até que se julgue o mérito da ação de reintegração de posse impetrada pelos fazendeiros. E isso certamente não tardará, uma vez que os fazendeiros e o agronegócio tem pressa em ver os índios fora das terras.
Depois dos palanques
A delegação de mais de uma dúzia de representantes do governo federal e da chegada da força tarefa (sem a tarefa principal, a terra!) parece que, da parte do governo federal se espera estar colocando um ponto final nesta questão que lhe trouxe tanta dor de cabeça, chegando a respingar até a imagem tão zelosamente construída e cultivada interna e externamente.
Já da parte das CPIs e Comissões estas parecem já ter concluído suas heróicas tarefas de dizer muito sem dizer o essencial. Talvez a mais promissora das iniciativas, a Comissão Especial da Câmara Federal, já aprovou e divulgou seu relatório. Dentre as medidas e ações sugeridas está a da regularização das terras indígenas. Porém, diluída dentre outras tantas medidas emergenciais e paliativas, será que as medidas que deverão enfrentar as causas de fundo do problema terão alguma efetividade?
A CPI estadual já prometeu seu relatório preliminar. E provavelmente terá relatórios em separado, uma vez que as avaliações dos integrantes são bastante distintas e dificilmente se consolidarão em propostas comuns.
As audiências públicas com relação ao tema, no Senado, certamente perderão seu objeto de interesse sem que se saiba se algo efetivamente contribuirá para a superação da grave situação de falta de terra, destruição ambiental e da economia indígena.
A pergunta que todos se fazem é o que efetivamente estará sendo feito para dar esperança de vida e de futuro com dignidade e autonomia aos Kaiowá-Guarani, daqui pra frente, quando o manto do silêncio novamente voltará a encobrir a fome, as mortes e as violências.
Egon Heck – Cimi MS