Povo de Deus em marcha
Dom Tomás Balduino*
Milhares de pessoas, homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos, todos juntos numa grande caminhada. Para que? Para dizer ao governo e à sociedade que a Reforma Agrária é uma necessidade, tem que ser feita, não se pode mais protelar sua concretização. Para mostrar a todos e todas que a concentração da terra, através dos latifúndios, tem que acabar. E que o agronegócio é predador dos bens naturais, poluidor do meio-ambiente e causador do êxodo rural, com o conseqüente aumento do desemprego. Por onde o agronegócio passa, fica um rastro cada vez mais profundo de violência contra os trabalhadores e de violação dos direitos humanos.
Enquanto os pés caminham, já cansados de uma longa jornada, cheia de tropeços, a mente e o coração vão se abrindo, entendendo as causas que provocam tanto sofrimento para os pequenos. Assim os olhos começam a vislumbrar no horizonte uma nova terra de partilha e de fartura, onde há lugar para todos, onde todos conseguem com alegria o pão de cada dia, e onde o cansaço se transforma em alegria.
Esta marcha também vai deixar um rastro bem marcado e profundo na história do povo brasileiro. É o rastro da dignidade daqueles que, mesmo tendo sido excluídos do banquete preparado para todos, não se deixam abater e lutam para conquistar o espaço que é seu e do qual foram alijados. É o rastro da fé de quem sabe que esta luta vai construindo uma nova terra.
Esta marcha me faz lembrar daquela outra grande marcha registrada no livro sagrado, a Bíblia. O Povo de Deus que conseguiu se libertar da escravidão do Faraó, no Egito, depois de ter atravessado o mar Vermelho, se põe em marcha para a conquista da terra Prometida. Foram 40 longos anos de caminhada pelo deserto, sofrendo sede e fome. Enfrentando desavenças internas. Sendo tentado a buscar e cultuar outros deuses que lhe prometessem respostas mais fáceis e lhe oferecessem soluções sem ter que enfrentar as dificuldades. Mesmo no meio de situações tão adversas, o povo continuou caminhando. Nesta longa caminhada é que foi se forjando a identidade e a unidade deste povo que assim conseguiu juntar energias para ao final conquistar uma terra, a terra que o Senhor lhes prometera. Uma terra onde corre leite e mel.
A caminhada que esta multidão faz hoje de Goiânia para Brasília quer conquistar também a terra. E vai tomar de assalto o poder central que teima em manter intactas as estruturas arcaicas e injustas sobre as quais se alicerçou a sociedade brasileira; que mantém os privilégios, muitas vezes espúrios de uns poucos, em detrimento da grande maioria do povo; que prefere empregar os recursos do povo para pagar juros de uma dívida que não se sabe ao certo como se formou, em vez de direcioná-los para atender as necessidades elementares dos cidadãos.
Os marchantes, ao tomarem Brasília, querem acordar o presidente Lula, que mesmo tendo garantido ser a Reforma Agrária uma das prioridades de seu governo, não consegue dar passos concretos e significativos neste rumo. Querem sacudir o Congresso onde se aninham, não os defensores do povo, mas os negociadores dos grupos poderosos e das elites, que mantêm e ampliam os privilégios sobre os quais se assentam até hoje. Querem tentar abrir os olhos do Judiciário, cuja cegueira é emblemática. Realmente é cego para ver as justas e legítimas reivindicações dos pequenos à terra, à alimentação, ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação, mas enxerga com nitidez o “direito” dos poderosos, sobretudo o direito à propriedade sem reservas e sem limites. Essa massa humana vai ocupar o Planalto Central para mostrar a todos que existe, que está de pé, que não se acovarda diante dos percalços, e das rasteiras que os grandes lhe prepara.
Como o povo de Deus conquistou a Terra Prometida, este povo caminhante quer conquistar além da terra para trabalhar e produzir, a terra da consciência dos brasileiros e das brasileiras, para que se somem à luta pela conquista do direito de todos a uma vida digna.
* Bispo emérito da Cidade de Goiás e presidente da Comissão Pastoral da Terra