Guarani-Kaiowá são povo que não gosta de desavenças
“Para nós, Guarani-Kaiowá, liderança boa é aquela que não briga, que conversa, dá conselho, fica calmo e conversa com os espíritos para eles acalmarem”, afirma Anastácio Peralta, liderança de Caarapó, na manhã de sábado. “Gurani-Kaiowá não briga”, diz Nito Nelson durante uma conversa no meio da tarde do mesmo dia. “Fizemos reunião com os colonos 12 vezes, até entrarmos em acordo”, contou Valdomiro, liderança da terra indígena Panambizinho que nos falava sobre a história da reconquista da terra pelo seu povo.
Os temas de cada uma das conversas eram diferentes, mas a forma como as lideranças se referiam ao seu próprio povo impressionou pela semelhança. As estratégias de resistência dos Guarani-Kaiowá sempre estiveram relacionadas à busca pelo consenso. “São um povo que evitou o conflito enquanto pôde, embrenhando-se nas matas enquanto elas existiram”. Kaiowá, no idioma guarani, significa “aquele que mora no mato”, explicou Nito.
Ir para o mato não foi apenas uma estratégia de resistência à colonização, aos jesuítas ou às políticas integracionistas do Estado brasileiro. Quando os Guarani tinham diferenças a resolver, muitas vezes a solução se dava pelo afastamento físico.
Assim, a falta de terras e o confinamento – apontados pelos antropólogos e indigenistas como as causas principais da situação de violência e de falta de perspectivas em que vivem os Kaiowá – impedem também os Guarani-Kaiowá de utilizarem seu “mecanismo de solução de desavenças”, que é o distanciamento.
Homicídios, suicídios, e a conversa com Nito
Para o historiador Antônio Brand, a compreensão dos casos de suicídios e de homicídios violentos está relacionada com a quebra das estruturas de relações dentro da sociedade Guarani. Este processo de desestruturação influencia as relações pessoais entre os Guarani-Kaiowá, porque as torna mais frágeis. Desavenças que pareceriam simples, relacionadas a brigas dentro de famílias, entre pais e filhos, entre namorados ou com jovens que fracassam em algo, muitas vezes terminam em mortes. “São problemas comuns, que existem em qualquer sociedade e que podem ser solucionados desde que a sociedade funcione, que a família e as relações funcionem”, diz Brand.
“As aldeias da terra indígena de Dourados não oferecem nenhuma das condições que são historicamente buscadas pelos Kaiowá para a sua organização social. Hoje é praticamente impossível alguém se deslocar, se distanciar quando alguém morre ou quando há conflitos. Eles não têm mais seu mecanismo para resolver tensões, e talvez esta seja uma das causas por que recorrem a outros mecanismos, como a bebida, a violência física, as drogas”, afirma Brand.
Segundo a Funasa, houve 212 suicídios no MS entre 2000 e 2004. Destes, 53 ocorreram em 2003 e outros 20 em 2004.
Das 387 mortes registradas até setembro de 2004 no Mato Grosso do Sul pela mesma Funasa, 17,46%, ou 66 deles, foram por causas violentas.
Dentro da visão de mundo Guarani-Kaiowá, as mortes violentas e também os suicídios são relacionadas a feitiços.
Em uma das nossas muitas viagens pelas estradas de terras que levam das aldeias às cidades, conversamos com o indígena que nos acompanhava sobre a questão dos suicídios. “Mas por que as pessoas se suicidam, Nito?”, perguntei. “As pessoas podem morrer de muitas dores”, ele respondeu. E nos contou que cada tipo de morte está ligado a uma forma de dor.
Disse também que “os Guarani não brigam” e que, quando há briga, é porque existe algo que já está fora do normal, algo que já faz com que o indígena atue de forma estranha. Muitas vezes, é este mal estar que leva ao suicídio, e que isto está relacionado com o feitiço.
“Feitiço, para os Guarani, é uma capacidade que eles têm de provocar mal indiretamente a uma pessoa. Pra eles, a morte por feitiço é a mesma coisa que morte por assassinato, pois ela é provocada por alguém. Então, as acusações de feitiços mostram uma grande tensão interna e externa, mostram a existência de conflitos e de desajustes”, diz Brand, que novamente ressalta a relação deste mal estar com a falta de terra. “O confinamento de tanta gente num espaço tão exíguo cria um ambiente de mal estar, e as acusações de feitiço remetem para este clima. A excessiva proximidade física nas aldeias, com as diversas famílias vivendo muito próximas, cria um clima de grande tensão”, complementa.
Diálogo é forma Guarani de resolver os conflitos
Os Guarani-Kaiowá são um povo que acredita no diálogo, mesmo com os colonos que os impediam de andar por suas terras, que os ameaçavam quando tentavam buscar lenha e que só saíram da terra indígena Panambizinho, de 1240 hectares, depois de reassentados e indenizados pelo Incra. “Para conquistar os colonos é difícil, mas a gente tem que entrar em diálogo”, ressalta o indígena Valdomiro.
A terra indígena Panambizinho, que fica no município de Dourados, foi homologada pelo presidente Lula em outubro de 2004, depois de os colonos terem sido indenizados e reassentados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Nem bem acabaram de se assentar em suas terras, os Kaiowá contam que em novembro de 2004 já receberam ofertas dos antigos colonos, interessados em arrendar a terra indígena para continuar criando gado. Sinal de que o interesse sobre aquelas terras vai continuar ainda por muito tempo.
Assim como vai levar tempo para que os Kaiowá possam realmente usufruir suas terras, degradadas pela soja e pelos pastos deixados pelos colonos.
Priscila Carvalho
Assessoria de Imprensa do Cimi