22/03/2005

Aty Guasu: indignação e força Guarani-Kaiowá

Para quem vive encastelado em seus privilégios ou na miséria, no campo e na cidade, fica difícil imaginar o que se passou entre as montanhas e vales no interior do município de Antonio João-MS, nas fronteiras com o Paraguai. Se as lindas paisagens e os montes falassem descreveriam mais um belo capítulo da heróica história de luta e resistência de um povo. Guiados pela lua companheira e pelas atentas e brilhantes estrelas, eles passaram três noites em ritual, com cantos e danças que desceram à profundeza da terra e ao alto do céu, no encontro de guerreiros e deuses da vida e do universo. Foram três dias de debate, socialização e celebração. Foram dias e noites de intensa atividade, de muita indignação e revolta.


 


Mais de 400 pessoas de quase todas as terras e aldeias indígenas do Kaiowá Guarani participaram desse Grande Encontro. Conforme os membros da comissão organizadora, essa tem sido uma das Aty Guasu mais expressivas e significativas, especialmente nessa retomada do processo de discussão e organização das lutas, a partir da questão da terra, e com a força maior centrada nos “nhanderu” (pagés, caciques). Além disso, ela se realizou numa das terras de maior tensão hoje, em função de ser uma terra demarcada e ao mesmo tempo existir uma liminar de reintegração de posse para os fazendeiros. Tudo isso fez com que essa Aty Guasu estivesse marcada por forte indignação e revolta, pois foi o chão de muita luta e sofrimento, onde deram a vida Marçal de Souza e Dom Quitito, e onde poderá em breve se repetir a situação de conflito e derramamento de sangue.


 


Mulheres guerreiras aguerridas


 


Um dos destaques dessa Aty Guasu foi a presença forte e decisiva das mulheres, que não apenas estavam na cozinha, nas celebrações, mas também nas plenárias e nos grupos. Foram delas as falas e cobranças mais incisivas. Em sua sensibilidade e sofrimento, elas demonstraram grande preocupação com relação aos jovens (não apenas em função do alto índice de suicídio), mas também pelo gradual afastamento da cultura Guarani. Elas manifestaram o desejo de que os jovens se envolvam cada vez mais na luta pela terra e com isso também estarão alimentando a esperança e enxergando um futuro melhor para todos. “Vamos lutar junto com nossa batalha, junto com os homens e as autoridades”, afirmaram em seu trabalho de grupo. As mulheres também demonstraram sua tristeza e revolta por verem tantos de seus filhos morrerem de fome e de falta de sentido da vida (suicídio).


 


Ali também estava dona Quitéria, viúva de Dom Quitito, que veio a falecer no dia 19 de abril, em Coroa Vermelha (BA), quando participava da Marcha e Conferência Indígena 2000. Ele tinha ido lá levando a luta pela terra, e em especial do Cerro Marangatu, cuja retomada ele liderou em 1998. Lá está ele enterrado. Por ironia do destino o então prefeito de Amambai e um dos invasores da terra indígena, mandou fazer uma sepultura. Depois de um mês de sua morte um de seus filhos se suicidou. E Quitéria estava ali, no silêncio de seu sofrimento e na certeza de sua luta, pois Quitito continua os inspirando e dando força.


 


“Estamos tristes… estamos em guerra”.


 


As falas, as celebrações, os rituais, as danças, tudo foi profundamente envolto pela preocupação com o que poderá estar acontecendo em breve, caso o presidente Lula não homologue a terra antes do dia 31, data da reintegração de posse. Nos gestos e no olhar se externava muita angústia, mas também decisão: “estamos em guerra. Querem roubar nossa terra. Daqui não vamos sair. Podem matar dois ou muitos, mas nós vamos vencer…”. Essa foi a tônica de vários depoimentos. A costumeira tranqüilidade e paciência Guarani parecia ter-se definitivamente esgotado. Diante da eminência de mais uma covarde agressão, se propõem a unir-se na luta, com a ajuda de todas as aldeias e mesmo outros povos.


 


E quando lembraram história de luta e organização, através das Aty Guasu que começaram em 1984, relembraram os inúmeros líderes que tombaram na luta pela terra. A emoção tomou conta daquele grupo aguerrido. Lágrimas rolaram pelas faces sofridas daqueles lutadores.


 


Dr. Charles, Procurador da República em Dourados, também esteve presente e alertou para os riscos de enfrentamento e derramamento de sangue, caso Lula não homologue a área até o final do mês. “Não posso mais fazer nada em termos judiciais, pois já recorri três vezes”, afirmou, lembrando que o presidente vem tendo bom desempenho fora do país, mas “está deixando de fazer o dever de casa”.  E o contraditório é que essa é uma das terras indígenas já com seu processo de regularização avançado, pois já está demarcada.  A homologação do Cerro Marangatu seria uma resposta evidente para começar a resolver o problema das terras indígenas no Mato Grosso do Sul, ressaltou. Lamentou que as terras indígenas infelizmente estão servindo de moeda de troca neste governo.


 


Muita união, força Guarani e apoio de aliados no Brasil e no mundo


 


O último dia da Aty Guasu foi tomado pela expectativa de dialogar com os aliados e exigir ação imediata do governo. Estavam convidados vários ministros de Estado, presidentes de órgãos ligados à questão indígena, indígenas de outros povos, imprensa, igrejas, entidades… Mais de duas dezenas de pessoas chegaram pelos difíceis, tortuosos e empoeirados caminhos do Cerro Marangatu. Todos foram ritualmente recepcionados. Depois foram convidados a conhecer a beleza da paisagem e a dureza da vida com os casebres no meio do colonião.


 


Em seguida começaram as falas dos convidados e das lideranças indígenas. De um lado a manifestação de solidariedade com a luta pela terra, e do outro o pedido veemente de compromisso com a reconquista da terra e esperança Guarani. Mais uma vez foram as mulheres que protagonizaram a cena impactante ao se postarem diante das mulheres representantes de parlamentares e cobrarem apoio efetivo na luta pela terra.


 


Estiveram presentes o presidente da Câmara de Vereadores de Antonio João, trazendo também a solidariedade e apoio dizendo que “não queremos que nosso município fique conhecido pelo derramamento de sangue”. A Diocese de Dourados esteve representada por uma delegação junto com o coordenador das Pastorais Sociais. Disse que o apoio solidário vinha especialmente através da ação e presença do Cimi em todos os instantes e instâncias de luta. O presidente do Centro de Defesa de Direitos Humanos Marçal de Souza, recém-eleito, também veio com uma delegação. Trouxeram um pôster ampliado de Marçal, especialmente para o momento de celebração. Deixaram seu apoio irrestrito, especialmente através de toda a rede de direitos humanos em todo o país. Também estiveram manifestando seu apoio representantes de universidades, antropólogos, representantes do Ministério do Meio Ambiente e da Embrapa, além do Procurador da Republica em Dourados.


 


Foi um momento bonito, que terminou com uma manifestação com gritos pela homologação, no terreiro da aldeia.


 


Homenagem aos guerreiros que tombaram, no local do assassinato de Marçal


 


A Aty Guasu teve seu encerramento com uma celebração da memória de Marçal e de todos os que tombaram na luta pela terra. O ato se realizou no local do assassinato em 23 de novembro de 1983. Uma pequena cruz de madeira já envelhecida, amarrada com arame, num pequeno espaço cercado de tijolo. Ali haviam crescido vários arbustos, ficando no mento apenas um pé de goiaba. Ao redor pés de mandioca, ao lado de um rancho. Esse cenário modesto ficou repleto de significado e emoção ao serem lembrados os lutadores que tombaram. Foi chamada a atenção para a importância das crianças e os jovens estarem se inteirando dessa história de luta. Foi um ato celebrativo em que os “nhanderu”, os pagés ou caciques, evocaram o espírito dos guerreiros que continuam presentes animando a travessia de todas as dificuldades, desafios e lutas.


 


No final foi lido o documento enviado ao presidente Lula, pedindo a homologação de Cerro Marangatu e a regularização de todas as terras indígenas.


 


Na avaliação da Comissão de Direitos Kaiowá – Guarani, que está coordenando esses grandes encontros, essa foi uma Aty Guasu muito especial por se realizar numa área de conflito e sem praticamente estrutura. Muitas pessoas dormiram ao relento mesmo, sem que isso tirasse o ânimo de ninguém.


 


A próxima Aty Guasu foi marcada para julho (7 a 10) na aldeia de Caarapó.


 


Também foi encaminhada uma comissão que irá a Brasília, falar com as autoridades e, se possível, com o presidente Lula.


 


Os anfitriões fizeram os agradecimentos finais na certeza de que mais uma etapa importante na união e estratégias de luta foi construído.


 


Dourados, 21 de março de 2005.


 


Egon Heck


Cimi Regional Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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