17/03/2005

Governo vacila e o cerco político se fecha

Um dos maiores exemplos da omissão do governo federal em relação aos povos indígenas é a recusa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em assinar a homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima. Essa crítica é de dom Franco Dom Masserdotti, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em entrevista ao Brasil de Fato.


A omissão de Lula incentivou os poderes locais a criarem novos obstáculos jurídicos para a conclusão do processo de identificação daquela área. “A cumplicidade ativa de setores do Poder Judiciário nesse processo revela que o cerco político e jurídico se fecha sobre os direitos dos povos indígenas”, diz o bispo do Cimi, organismo criado há mais de 30 anos e ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).


Dia 25 de fevereiro, dom Dom Masserdotti e sua equipe apresentaram uma análise do atual quadro de violência contra os povos indígenas e seus direitos constitucionais, na nota Paz e Terra para os Povos Indígenas.


Segundo a nota, ao contrário do que se esperava, o governo Lula não trouxe nada que sinalizasse uma mudança significativa de rumo das políticas indigenistas. “Essa política de frases bonitas, sem práticas bonitas, cria uma situação de insegurança e fortalece setores contrários aos povos indígenas. A violência que temos visto no Estado do Pará acontece em diversos lugares do Brasil onde há povos indígenas”, analisa o bispo.


Em dois anos de governo Lula, foram 63 índios assassinados. A tendência é esse quadro se agravar ainda mais com o avanço do agronegócio, que provoca a destruição ambiental e cultural e coloca em risco a sobrevivência dos povos e de suas formas de vida. “Para os povos indígenas, a terra não é apenas um lugar para o trabalho e para a sobrevivência econômica. É também espaço de sobrevivência cultural, e por isso precisam de terras, e de terras que não estejam ameaçadas”, explica.


 


Brasil de Fato – Que balanço o senhor faz da política indigenista do governo Lula?


Dom Franco Masserdotti – Nosso balanço não é positivo. Eu diria que existe uma continuidade, até agora, daquilo que já estava acontecendo no governo Fernando Henrique Cardoso. Tínhamos confiado muito na possibilidade de uma mudança, inclusive com base nas promessas de campanha de Lula. Nos primeiros meses de 2003, encaminhamos ao Ministério da Justiça um miniprojeto para concretizar algumas idéias que o próprio Lula, em campanha, havia apresentado. Reforçamos nossa visão a respeito da necessidade de fazer da questão indígena uma ocasião para uma nova política de democracia participativa.


 


BF – O Cimi defende o fim da Fundação Nacional do Índio (Funai)?


Dom Masserdotti – A Funai podia ser repensada, não mais como um organismo vinculado ao Ministério da Justiça, mas como braço executivo das políticas indigenistas, que seriam pensadas e planejadas por meio da participação popular. Haveria um conselho superior das políticas indigenistas com representantes do governo, dos povos indígenas e das entidades indigenistas e interessadas. Isso confluiria depois nesse conselho superior das políticas indigenistas. Quando apresentamos essa proposta, até fomos bem recebidos, ouvimos elogios. Mas, depois, nunca mais fomos consultados.


 


BF – O projeto foi engavetado?


Dom Masserdotti – Sem dúvida. Não é que pretendêssemos que o nosso projeto fosse aprovado, mas que pelo menos toda a problemática fosse reexaminada, entrasse no debate político, levando em conta também o fato que isso fazia parte da campanha política do candidato Lula. Porém, praticamente, isso não deu em nada.


 


 


BF – A criação desse conselho é uma sugestão do Cimi, apoiado pelos movimentos indígenas?


Dom Masserdotti – É uma sugestão nossa, mas já estava embutida nas próprias propostas políticas da campanha eleitoral do Lula. Era uma tentativa de concretizar aquilo que estava sendo previsto em linhas gerais. Entre os povos indígenas, hoje, o clima é de total decepção, porque não aconteceu nada daquilo que se esperava. A minha impressão é que há uma diferença entre o atual governo e os anteriores: o diálogo é muito mais fácil. Porém, esse diálogo termina em nada. Quer dizer, nascem novas promessas, mas não se chega a qualquer conclusão.


 


BF – Isso vale para a situação da terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima?


Dom Masserdotti – Se o presidente assinar o decreto de homologação, sem dúvida, vai abrir as portas para outras homologações que estão emperradas. O problema é que não temos sinais de que isso possa acontecer. Dias atrás, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos prometeu mais uma vez que o decreto seria assinado. De novo, mais uma promessa.


 


BF – Por que essa recusa em assinar a homologação da Raposa/ Serra do Sol. Há empecilhos políticos?


Dom Masserdotti – Eu acho que a razão da recusa é simbólica. É paradigmática daquilo que, também, provoca recusa em outros lugares no resto do Brasil, no sentido de que o governo é bastante vacilante e está cada vez mais direcionado a forças políticas contrárias aos povos indígenas. O Lula foi eleito, mas a maioria das bancadas parlamentares não está de acordo com o programa apresentado em campanha. São forças contraditórias na coalizão que dá sustentação ao governo e que, às vezes, são um pouco oportunistas. Para mim, é muito esquisito conviver numa mesma coalizão siglas tão opostas como o Partido dos Trabalhadores e o Partido Liberal.


 


BF – Como o senhor avalia essas alianças políticas em nome da governabilidade?


Dom Masserdotti – A grande heresia do governo é o fato de que em nome da governabilidade não se governa. Em nome da governabilidade não se avança. Eu acho que o Lula é refém dos poderes econômicos e políticos locais e centrais, que condicionam demais as políticas econômicas do governo e o desenvolvimento de políticas sociais mais audaciosas. Sempre acreditei que o poder econômico – quer dizer, quem detém os meios de produção – condiciona a política de um país. É isso o que está acontecendo. Mas eu gostaria também de fazer uma outra observação: a eleição do Lula tinha criado um caminho um pouco milagreiro. Temos um presidente que é do povo, então ele vai resolver todos os nossos problemas. Acontece que, na história, nunca se deu uma democracia de cima para baixo. Uma democracia é sempre feita de lutas populares. Por isso, é preciso continuar o diálogo. Sem muita esperança, mas sem perder por completo a esperança. É necessário também que, de forma democrática e articulada, os movimentos sociais e populares se juntem para fazer pressão social, superando pequenas diferenças. Que possam se unir para ser esse movimento de força, de pressão popular que vem da rua, que vem do mundo rural, para realmente exigir que se realize a democracia que está dentro das normas e do espírito da atual Constituição cidadã.


 


BF – Como seria esse movimento de contestação ao governo?


Dom Masserdotti – Nós não queremos fazer uma contestação ao governo, no sentido de querer derrubar Lula, sonhando um outro governo que possa fazer melhor pelas causas populares. A gente sabe muito bem que não é por aí. Um cacique indígena lá da Bahia, eleito vereador pelo PT, disse que o seu partido traiu um pouco a causa dos índios, mas também que no PT ainda restaria uns 30% de petistas que amam os índios. Nos outros partidos não há nem 3%. Não é dizer: “Vamos agora derrubar esse governo para construir outro que seja mais de esquerda!”. Não estamos trabalhando nessa perspectiva. Queremos ajudar o atual governo para que realmente ele se abra para uma visão mais corajosa, que deixe de lado essa política tão vacilante, tão condicionada. Deixe de lado também aquela obsessão pela reeleição em 2006, que parece paralisar uma agenda política do governo mais aberta ao social.


 


BF – Essa política de alianças partidárias em vista da reeleição pode prejudicar ainda mais os povos indígenas?


Dom Masserdotti – Acho que sim. É claro que na política a gente não deve ser ingênuo, mas também não é justo condicionar demais a construção de uma nova democracia participativa, da atuação das normas constitucionais, a esses ventos que sopram de um lado para o outro em função de uma reeleição. No governo Lula foram assassinados 63 índios, a maioria deles por problemas de conflitos de terra. Isso também é devido ao terrível fenômeno da impunidade. Essa violência não é restrita aos povos indígenas, mas faz parte de uma violência maior, que envolve todo o Brasil, muito ligada à problemática da terra. A violência no campo tem como um dos capítulos aquela contra os índios. E se trata de um problema ainda mais grave dada a particularidade em que se encontram esses povos, pela disposição constitucional que exige que essas terras tradicionais sejam devolvidas a eles. Até agora, somente 30% das terras foram demarcadas e, muitas vezes, são ameaçadas e invadidas por garimpeiros e mineradores. Tudo isso faz parte de uma violência mais geral. Só no Pará, epicentro da violência no mundo rural, nos últimos 20 anos houve mais de 800 assassinatos de posseiros em confronto com grileiros e fazendeiros. O caso da irmã Dorothy Stang é símbolo dessa situação que se torna cada vez mais grave.


 


BF – Como o senhor avalia a nova presidência na Câmara dos Deputados?


Dom Masserdotti – Parece que está prevalecendo um corporativismo escandaloso entre os parlamentares, e cada vez menos é dada atenção a assuntos como o Estatuto dos Povos Indígenas, engavetado há anos. A conjuntura atual torna mais difícil a articulação em favor dos povos indígenas e movimentos populares.


 


BF – A morte de crianças indígenas por desnutrição no Mato Grosso do Sul também revela um descaso do governo e do congresso?


Dom Masserdotti – Esses casos são a ponta do iceberg que revela o mal-estar de uma sociedade que não está assumindo seus problemas com seriedade suficiente. Os povos indígenas recebem também pouca atenção da opinião pública. É preciso que casos como esse chamem atenção, muitas vezes do ponto de vista negativo, como no ano passado, quando houve a morte de garimpeiros em Rondônia, na reserva Roosevelt. A imprensa caiu em cima daquele fato, e recordo que naquele dia estávamos juntos na assembléia dos bispos, e dom Antônio Possamai (bispo da diocese de Ji-Paraná) disse: “Nós condenamos esse comportamento, mas devemos também condenar as provocações, condenar o fato de que os Cinta-Larga eram 70 mil e foram reduzidos a 7 mil”.


 


BF – A retomada das terras pelo movimento indígena tem ganhado força nos últimos anos?


Dom Masserdotti – Os povos indígenas não estão apenas cansados de esperar por mudanças. Eles estão vendo que está acontecendo justamente o contrário do que eles esperavam. Um exemplo é o avanço do agronegócio como algo fundamental para o equilíbrio da balança de pagamentos, que se apresenta como salvação da economia brasileira. O agronegócio avança, destruindo a natureza e ocupando as áreas dos povos indígenas. Para os povos indígenas, a terra não é apenas um lugar para o trabalho e para a sobrevivência econômica. É também espaço de sobrevivência cultural, e por isso estes povos precisam de terras, e de terras que não estejam ameaçadas.


 


Quem é?


Dom Franco Masserdotti, 63 anos, é bispo da diocese de Balsas, no sul do Maranhão, região do cerrado que vem sendo invadida pela monocultura da soja. Membro da Congregação dos Missionários Combonianos, dom Masserdotti é italiano de Bréscia. Formado em sociologia, está no Brasil há mais de 30 anos. (por Paulo Pereira Lima) 


 



 


 

Fonte: jornal Brasil de Fato
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