15/03/2005

A cruz de Gildo Terena

Ano 2000. Gildo marcha resoluto e indignado em direção ao batalhão de soldados raivosos comandados pelo coronel Muller. Acabava de passar por Coroa Vermelha, onde foi plantada a primeira cruz. Gildo mira com um olhar de 500 anos aqueles algozes a jogar bombas de gás lacrimogêneo e outros artefatos contra a pacífica multidão de índios que marchavam até Porto Seguro. Roga, implora, se ajoelha frente ao batalhão, abre os braços em forma de cruz. É ignorado pela marcha inexorável dos repressores. Deita-se no chão de braços abertos, numa desesperada tentativa de conter a violência contra os índios. Os soldados continuam avançando sobre o corpo de Gildo, em cruz. Essa imagem ficou fortemente marcada em nossos corações e mentes e correu o mundo inteiro. Gildo era então apenas um jovem de uns 20 anos, cuja intuição, audácia e ousadia surpreendeu a todos.


 


Cinco anos depois


 


Chegamos à casa simples na terra indígena Buriti, município de Sidrolândia, no sul do Mato Grosso do Sul. Começamos a conversa com o velho Terena Leonardo e com o Janeo. Eles nos contam um caso para elucidar a luta que enfrentam hoje pela recuperação de seu território tradicional. Leonardo falou de um Tapirapé que casou-se com uma Terena e foram para o Mato Grosso. Isso em 1998. Eles convidaram outros parentes e quase 30 famílias saíram de Buriti, onde os 2.090 hectares não possibilitavam mais o trabalho na agricultura para mais de dois mil índios.  Começou uma grande peregrinação com inúmeras lutas e frustrações até conseguirem um pedaço de chão para plantar e viver. Inúmeras áreas e fazendas foram sendo buscadas, junto com o Incra. E essa realidade foi se arrastando. Foi nessa condição que Gildo integrou a Marcha Indígena 2000, rumo a Porto Seguro e a Conferência Indígena em Coroa Vermelha.


 


Terra


 


Hoje, a mais de dois mil quilômetros de sua terra original, Gildo e um grupo de aproximadamente 40 famílias Terena vivem numa terra no rio Iriri, no norte do Mato Grosso, na divisa com o Pará. Chegaram a ir para lá umas 80 famílias. Porém, quase a metade não se adaptou e retornou à sua terra de origem.


 


Na terra indígena do Buriti, a partir das lutas e decisão de construção de uma nova história, os Terena iniciaram a luta pela retomada de parte de seu território tradicional. Retomaram 14 fazendas de invasores da terra indígena, identificada em 17 mil hectares. Sofreram muita pressão e repressão. Acabaram desocupando a metade das fazendas retomadas. Hoje pesa sobre eles nova ameaça de expulsão. Uma liminar de reintegração de posse estava para ser executada na semana passada. Já havia um batalhão das polícias Federal e Militar, com ordem de expulsar os índios. Uma decisão judicial da desembargadora Ana Pimentel, do TRF da 3ª Região prorrogou o prazo até o final do mês. Portanto eles têm apenas mais alguns dias para que o Estado Brasileiro e a Justiça decidam de vez pelo direito dos índios e haja continuidade na regularização da terra indígena Buriti. Se isso não acontecer outros Terena em cruz terão que tentar impedir mais essa agressão ao seu povo.


 


Plantando a terra e a esperança


 


Na terra Buriti, o indígena Janeo foi conosco ver as plantações feitas após a retomada. Construíram um barracão para apoio ao trabalho das famílias que se estabeleceram nessas terras e que hoje têm ali plantações de arroz, mandioca, cana e algodão, dentre outros produtos. “Imagina, enquanto os Guarani-Kaiowá estão morrendo de fome e desnutrição, nós aqui temos grandes roças, podemos até ajudar a eles com nossa produção, mas estão querendo destruir essa nossa produção e nos expulsar da terra”, desabafa.


 


O povo Terena, com uma importante tradição agrícola, está praticamente sem condições de plantar, pois as pequenas áreas de confinamento não oferecem mais condições para viverem da agricultura. Daí a razão de centenas de famílias terem migrado para outras terras, como é o caso do grupo que hoje está na divisa com o Pará. Estima-se que só em Campo Grande vivam quase cinco mil Terena. Continuam plantando esperança, apesar de estarem espremidos nos pequenos pedaços de chão. O que mais os está movendo neste momento é a luta pela retomada de partes de seu território tradicional.


 


Quando lembramos os cinco anos da Marcha e Conferência Indígena, nos deparamos com o triste quadro de não regularização e respeito à maioria das terras indígenas em todo o país. Só com muita ousadia e determinação, como fez Gildo ao enfrentar o batalhão da polícia de choque, é que os povos indígenas poderão ter suas terras livres e garantidas. Enquanto isso muitas cruzes continuarão sendo plantadas, do rio Buriti ao rio Iriri, com vidas ameaçadas ou sangue derramado.


 


Campo Grande (MS), março de 2005.


 


Egon Heck


Cimi Regional MS


 

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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