08/03/2005

Especial Mato Grosso do Sul: Um olhar sobre a mulher Guarani-Kaiowá

 


No sábado, dia 5, fomos à terra indígena Caarapó. Ela faz parte das 8 terras que foram reservadas, ainda na década de 1920, pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e tem 3.594 hectares, com 2.377 habitantes. 


 


É uma terra que tem todos os problemas das outras, no atendimento à saúde ou na realidade de terras degradadas, mas que conta com experiências de incentivo à produção e de recuperação ambiental. (leia abaixo o texto O caminho a Caarapó: Sol quente e poeira)


 


Em Caarapó, cheguei com a intenção de conseguir conversar com as mulheres, o que exige um esforço um pouco maior de aproximação, já que as lideranças políticas, com quem temos contato primeiro, geralmente são homens. Pela manhã, enquanto eles estavam reunidos na frente da casa debatendo a próxima reunião geral do povo, chamada Aty Guasu, foi possível conversar com a esposa de um deles, que estava preparando almoço para todos nós.


 


Braulina é professora da escola indígena. Este ano ela dá aulas de Guarani para a quinta série. Em Caarapó, 235 crianças vão a cinco escolas espalhadas area. Ela mostra orgulhosa sua pasta com desenhos e textos dos alunos. Braulina não trabalha na roça, porque trabalha na escola.


 


Pergunto sobre o quintal que ela tem em volta de sua casa. Ela planta milho, mandioca, banana e melancia. Pergunto se também há remédios no quintal e ela diz que não planta muitos. Ela tem “Doril”, “que serve para dor de cabeça”, hortelã, e usa também a folha de uma bela flor de cerrado, “que acalma criança”. “Remédio eu pego lá no brejo”, diz Braulina.


 


Antonio Brand, pesquisador que coordena o Programa Kaiowá-Gurani da Universidade Católica Dom Bosco do Mato Grosso do Sul, havia nos contado que em Caarapó, uma das atividades do Programa que funcionou bem incentivava as mulheres a plantar em seus quintais. “O trabalho deu certo e contribuiu inclusive com a reversão da desnutrição. São práticas que também fortalecem a auto-estima: mulheres retomam seu papel na produção e administração das casas”. Segundo o pesquisador, o papel da mulher na administração da casa e da alimentação começou a ser perdido quando os homens passaram a trabalhar nas usinas ou nas fazendas, trazendo de lá grande parte do dinheiro que sustenta as casas.


 


Não foram necessários mais que alguns minutos na conversa com todas as mulheres até que elas citassem o trabalho nas usinas,  que são a principal fonte de trabalho para os homens não só em Caarapó, mas em outras áreas, como a de Dourados. O trabalho acontece por contratos temporários, e os homens ficam fora por períodos de 70 dias. Em geral, recebem um adiantamento que varia entre R$ 70 e R$ 150,00 reais. Só em Caarapó, a cada ano saem de 400 a 450 homens para as usinas. Pelas conversas que tivemos, o uso deste dinheiro varia dependendo das famílias. Houve mulheres que disseram que os maridos enviam dinheiro a cada mês. Outras contam que é possível usar vales nos mercados das cidades próximas. Mas nem sempre esse rendimento é usado na sustentação das famílias. Muitas vezes ele é gasto pelos homens antes de chegarem em casa, especialmente em bens que trazem algum prestígio, como bicicletas ou roupas. Assim, nem sempre o trabalho nas usinas se reverte em benefícios conjuntos para as famílias indígenas.


 


Depois do almoço, fomos visitar Maria, esposa do capitão de Caarapó, Zenildo. No quintal desta família, que tem 3 filhos, as árvores frutíferas contrastam com a aridez  da paisagem nos outros locais da terra indígena. Quando chegamos, Maria conversava com duas mulheres, sentadas na sombra embaixo de uma mangueira.


 


Somos recebidas com Tererê e com laranjas, colhidas ali mesmo no quintal. Há também pés de manga, abacate, jabuti, mexerica,goiaba, abacaxi e limão. Aliás, o limão usado para o suco que tomamos no almoço, na casa de Braulina, veio dali.


 


Maria diz que já trabalhou muito na roça, mas que deixou estas atividades depois que passou a cuidar dos filhos. “A gente só vive assim, no contrato”, conta ela, referindo-se ao trabalho dos homens nas usinas de cana  de açúcar da região.


 


Maria fala bastante na dificuldade que é andar pela terra indígena sob o sol e da dificuldade de ir para a roça nestas condições. Conta que não tem mais vontade de ir tomar banho no açude, porque ele está sujo. Ela diz que prefere mesmo ficar em casa cuidando dos filhos.


 


Mulheres sem espaços de socialização


 


O pesquisador Antonio Brand lembra que um dos fatores que acompanhou a degradação da qualidade de vida e a desestruturação dos Kaiowá entre os anos 80 e 90 foi a perda dos espaços de socialização das mulheres. “Com as famílias extensas, a ida para a roça era um trabalho coletivo. Quando as mulheres iam para o córrego, não iam sozinhas, mas em grupo. Hoje, com as casas unifamiliares, não há mais o costume de ir para a roça. Os espaços de socialização foram comprometidos”, diz Brand. Essas transformações precisam ser entendidas no contexto de perda das terras e de confinamento pelos quais passaram os Guarani- Kaiowá dede a segunda metade do século 20. (Sobre isso veja o texto Fome entre os Gurani-Kaiowá é conseqüência da falta de terras )


 


Ainda segundo Brand, em casos extremos, como o da terra indígena de Dourados, “as mulheres ficam isoladas dentro das casas. Elas estão com os filhos, mas não têm como resolver os problemas deles porque não tem condições objetivas, dentro da realidade em que vivem, de produzir alimentos, por exemplo”. Em Caarapó, a situação é semelhante. Apesar de haver mais terra, elas estão invadidas pelo capim ou degradadas pelo uso.


 


 


Panambizinho: volta recente à terra


 


 


No final da tarde, chegamos a uma outra aldeia, chamada Panambizinho. Não fosse pela placa da Funasa avisando que, em certo ponto da estrada de terra, começava uma terra indígena, poderíamos passar por ali sem suspeitar disso. Ás margens da estrada, a mesma paisagem de capim infinito.


 


As 64 famílias Guarani-Kaiowá de Panambizinho viveram décadas no meio do colonião e da brachiara (tipos de capim) e da soja, cercados por fazendas que invadiram seu território tradicional, numa situação de violência que os impedia até de andar pela região.


 


A área foi homologada em 2004 e os colonos foram reassentados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Em outubro do ano passado, depois de 30 anos de luta e negociação, o grupo indígena pode voltar a ocupar os 1.028 hectares de suas terras.


 


Puderam também voltar a plantar mandioca, milho saboró e abóbora, como nos contou Roseli Jorge, indígena que vive em Panambizinho.


 


Já havia alguns minutos que estávamos conversando com Valdomiro, vice-capitão de Panambizinho, quando Roseli nos trouxe água gelada para o tererê e nos cumprimentou. Levando o filho mais novo no colo, ela se aproximou e começamos a conversar sobre os filhos dela que estão na escola, sobre a divisão das casas das fazendas depois da retirada dos colonos, sobre o trabalho dela na plantação. Ela conta que cada família tem uma roça, que ela trabalha diariamente na plantação de sua família e que a plantação deste ano deu bem, apesar de eles ainda não terem podido plantar tudo o que gostariam, já que só entraram na terra em outubro: “Agosto, dia primeiro, tem que plantar melancia, mandioca. Milho Saboró planta em outubro, dia 12. Tem que fazer chicha”, conta Roseli, que fala português com muito sotaque Guarani.  Chicha é uma bebida indígena feita de milho e usada em comemorações e rituais, como o ritual do milho saboró, que deve acontecer no próximo final de semana.


 


Ali, naquele povo que só recentemente voltou a ter condições de planejar seu sustento, as famílias ainda se questionam sobre como será possível utilizarem algumas das estruturas deixadas pelos fazendeiros, entre elas os currais e os açudes. E as mulheres parecem ter espaço para reestruturar seu modo de vida ligado à terra e à produção do sustento familiar.


 


 


Saúde da mulher


Em outras conversas nas aldeias, tentamos abordar mais os temas da saúde. Não é simples chegar na casa de indígenas e querer saber de coisas pessoais. Primeiro, porque o tempo e a lógica das conversas não funcionam para esta idéia que temos, os jornalistas, de entrevistas. A conversa segue por caminhos bem menos diretos, e os assuntos aparecem aos poucos. E pensando bem, que obrigação têm aquelas pessoas de saírem contando sobre suas vidas para um estranho que chega fazendo perguntas?


 


No entanto, no meio das conversas sobre as árvores, as crianças e o atendimento dos programas de saúde, ouvimos coisas como “suspeita de câncer” e “doença no sangue”. Se lembrarmos que, para sobreviver, os homens passam meses longe de suas casas, nas usinas, e o quanto as aldeias do Mato Grosso do Sul estão próximas às periferias da cidade, fica claro que é importante que os órgãos públicos ligados à saúde indígena precisam intensificar sua preocupação com a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, com especial atenção à saúde das mulheres.


 


 


 


O caminho a Caarapó: Sol quente e poeira


 


A cidade de Caarapó fica a 50 km de Dourados. Do município até a terra indígena Caarapó passamos por alguns quilômetros de estrada de terra e muita pedra. Não chove na região ha um mês a poeira entra pelo carro, cobre a pele, as roupas, os óculos.


 


Impressiona, na terra Caarapó, a aridez da paisagem. Vimos muito capim e pouca árvore. Vimos mulheres e crianças caminhando sob aquele sol forte. Parece que a bicicleta é um dos meios de transporte mais usados do local. Cruzamos com várias na estrada de terra, que tem também trânsito de caminhões, já que ela liga Caarapó a Ponta Porã. É mais um caso de rodovia que corta uma terra indígena.


 

Chegar a uma terra indígena  por aqui esperando aquele modelo de casas dispostas em círculo é garantia de desapontamento. Os Guarani-Kaiowa não vivem assim: vivem em casas distantes umas das outras, divididos em famílias. Atualmente, muitas das casas tem famílias no sentido usado pelos não índios, compostas por pais, mães e filhos. Mas, em geral, as moradias abrigam famílias que são compostas por pelos avós, filhos e netos. Os grupos vivem na mesma casa ou em casas próximas, dentro de um mesmo “ terreno”.

Fonte: Cimi
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