07/03/2005

Parecer sobre o Projeto de Lei n.° 3897/2004, por Rosane F. Lacerda

I – A Proposição.


Trata-se de Projeto de Lei de autoria do Deputado Marcos Abramo, que visa alterar o art 56 da lei n.° 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), para que, em caso de crime cometido por indígena, sejam eliminadas as previsões de atenuação da pena e de seu cumprimento em regime de semiliberdade, e que sua cominação atenda ao grau de integração do indígena.


Atualmente o dispositivo em questão possui a seguinte forma:


“Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.” (Grifamos)


“Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.” (Grifamos)


Propõe o referido PL, em seu art. 1.º, que o art. 56 da Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973, passe “a viger com a seguinte redação”:


Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá atender ao seu grau de integração.”  (Grifamos)


II – Análise quanto à Justificativa do Projeto.


Em linhas gerais o Projeto assenta-se nas seguintes alegações:


1.ª) que a previsão em vigor, de atenuação da pena e de seu cumprimento em regime de semiliberdade, roubaria ao juiz  a dosimetria da pena, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, circunstâncias e conseqüências do crime, conforme seja necessário e suficiente para sua reprovação e prevenção.”


Ocorre que em nenhum momento  o dispositivo vigente suprime ao Julgador a necessidade de proceder à análise de “culpabilidade, antecedentes, conduta social,  personalidade do agente, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime”. Tanto que a hipótese tratada pelo caput do art. 56 da Lei 6.001/73 é aquela que resulta em condenação do indígena ao cumprimento de pena, e não em isenção de pena. Em outras palavras, a hipótese de condenação do réu indígena já pressupõe, inevitavelmente, a observância ao devido processo legal, o que inclui a avaliação dos aspectos acima mencionados.


Observe-se também que o parágrafo único do referido art. 56 menciona que  a condenação do indígena pode ser a penas de reclusão e de detenção:


“Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado.” (Grifamos)


De igual modo, vê-se no dispositivo supra que o cumprimento da pena em regime especial de semiliberdade não consiste em garantia absoluta, posto que foi submetida pela lei vigente à expressão “se possível”, ou seja, aplicável unicamente após a verificação de sua viabilidade, esta também submetida ao Poder Judiciário.


Observe-se também que a possibilidade de regime especial de semiliberdade, que o PL pretende eliminar, é objeto de atenção pela Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que “dispõe sobre povos indígenas e tribais em países independentes”. Dispõe a Convenção – cuja incorporação ao ordenamento jurídico nacional foi promulgada pelo Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, que em caso de imposição de sanções penais,:


“Artigo 10


(…)


2. Deverá dar-se preferência a tipos de sanção distintos do encarceramento.” (Grifamos)


2.ª) Alega também a “Justificativa” que a redução obrigatória da pena e seu cumprimento em regime de semiliberdade seriam incompatíveis com o que entende ser “a realidade atual dos indígenas”, de uma suposta integração à comunidade nacional, equivalente à “plena capacidade de entender a natureza do delito cometido”. Daí propor que a pena deva “atender ao grau de integração” do indígena.


            Ocorre que a avaliação do grau de integração do indígena pelo Juiz não é nenhuma novidade. É providência que encontra-se expressamente prevista no caput do art. 56 da Lei 6.001/73 (“… na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.”)


Neste sentido, o PL afigura-se inócuo, vez que propõe providência que já se encontra contemplada no dispositivo questionado da lei vigente.


Ademais, há que considerar ainda que a previsão de sujeição ao “grau de integração do silvícola”, consiste em matéria derrogada do texto da Lei 6.001/73, dado não haver sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, como se vê adiante.


Esta previsão de integração do indígena é inclusive matéria superada pela Convenção 169 da OIT, que excluiu qualquer referência ao termo, antes presente na Convenção 107 da mesma organização, que dispunha sobre “proteção e integração das populações tribais e semitribais de países independentes”.


III – Análise quanto aos fundamentos do voto do Relator.


            Na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, votou o Relator pela aprovação do PL,  por entender :


1.º) que o regime tutelar previsto nos arts. 7.º e 8.º da Lei 6.001/73 teria sido recepcionado pela CF/88 “apenas no que tange à sua natureza civil ”.


Ocorre que o regime tutelar mencionado:


a) sempre esteve limitado à esfera civil, como proteção ao indígena, declarado pelo Código Civil de 1916 (art. 6.º, inc. I e par. único) e pela Lei 6.001/73 (arts. 7.º e 8.º ) como relativamente incapaz para o exercício de atos da vida civil. O instituto nunca teve qualquer comunicação com a questão da responsabilidade penal do indígena, e muito menos a ponto de implicar numa suposta situação de inimputabilidade penal.


b) não foi de modo algum recepcionado pela CF/88, uma vez que esta fez cair por terra a idéia da “incapacidade” do indígena. É que os reconhecimentos expressos no caput do art. 231 do texto constitucional[1] substituiu a perspectiva etnocêntrica da incorporação dos índios à comunhão nacional, pela perspectiva do respeito e proteção à diversidade étnica e cultural dos povos indígenas como valores intrínsecos, tornando portanto ultrapassada a concepção do indígena enquanto portador daquela incapacidade.


Esse dever de proteção e respeito à diversidade étnico-cultural indígena veio, portanto, a DERROGAR tanto o instituto da tutela indígena quanto a discriminação – etnocêntrica – dos indígenas, numa suposta escala de “integração” à sociedade nacional envolvente.


2.º) Entende também o voto do Relator que a aprovação da proposta analisada consistiria num avanço, pois estaria compatibilizando o tratamento dado à matéria pela Lei 6.001/73 aos “ modernos conceitos introduzidos” pela CF/1988 em relação à questão indígena, substituindo “critérios de cunho etnológico por outros que tenham como fundamento a capacidade de entender o caráter ilícito do ato praticado”, o que resultaria num “tratamento isonômico a índios e não índios”.


De fato, ao reconhecer aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e ao determinar à União Federal a responsabilidade na sua demarcação, proteção e respeito, a CF/88 introduziu modernos conceitos em relação à questão indígena. Porém, contrariamente ao voto do Relator, não para “substituir critérios de cunho etnológico”, e sim  para reforçá-los, como instrumentais de aferição mais adequados e precisos do relacionamento entre indígenas e entre estes e os membros da sociedade nacional envolvente.


A propósito, veja-se também o tratamento dado ao tema pela Convenção 169 da OIT, que teve sua vigência promulgada na esteira destas modernizações introduzidas pelo texto constitucional de 1988. Diz a Convenção:


“Artigo 9


(…)


2. As autoridades e os tribunais chamados a pronunciar-se sobre questões penais deverão ter em conta os costumes desses povos na matéria.


Artigo 10


1. Quando se imponham sanções penais previstas pela legislação comum a membros desses povos, deverão ter-se em conta suas características econômicas, sociais e culturais.” (Grifamos)


Veja-se que até mesmo a Convenção 169 da OIT reforça, e não substitui os  critérios de cunho etnológico” que o PL em questão pretende substituir.


Além do mais a análise do comportamento do indígena através da compreensão de suas especificidades étnico-culturais não pode ser entendida como procedimento antagônico ou substitutivo da análise quanto à  capacidade do indígena de, no momento do crime, entender o caráter ilícito do ato praticado.


A leitura da redação atual da Lei 6.001/73 (art. 56), feita à luz do caput do art. 231 da CF/88 resulta exatamente em que é inafastável a necessidade de aferição da capacidade do indígena em entender o caráter delituoso do ato praticado. Mas não a partir de seu suposto grau de integração à sociedade envolvente, e sim dos elementos de sua organização social, costumes, crenças e tradições, único critério este que garante o tratamento isonômico entre índios e não-índios.


3.º) entendeu também o Relator que a matéria (eliminação da obrigatoriedade de atenuação da pena e eliminação da possibilidade de cumprimento em regime de semiliberdade) “não contém nenhuma norma que possa ofender os interesses dos índios e de suas comunidades”.


Ocorre que, muito pelo contrário, tanto a atenuação da pena quanto a possibilidade de seu cumprimento em regime de semiliberdade consistem em importantes instrumentos legais de amortecimento dos impactos sócio-culturais negativos advindos das formas, via de regra desastrosas, de relacionamento da sociedade não-indígena com essas comunidades.


Os dados da realidade comprovam que as comunidades indígenas e seus membros encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. São alvo de toda a sorte de violências, preconceitos e atitudes discriminatórias. Via de regra, quanto mais próximas geograficamente das comunidades indígenas, mais preconceituosas e hostis em relação a estes se revelam as populações não-indígenas locais.


A situação acaba na grande maioria das vezes por contaminar a aplicação da justiça, especialmente nos casos de âmbito criminal. Certamente este tem sido um dos motivos que explicam a impunidade nos casos de violência contra indígenas como marca registrada. E, em contraste, deve explicar também o índice crescente de condenações de indígenas pela prática de delitos.


Neste sentido a previsão de atenuação da pena, expressa no caput do art. 56 da Lei 6.001/73, cumpre importante papel como medida de compensação da vulnerabilidade do indivíduo indígena, submetido que está a um sistema de julgamento estranho aos seus padrões sócio-culturais específicos. Além disso, a atenuação da pena garante também ao indígena uma proteção contra a enorme carga de preconceito que pesa contra si pelo só fato de tratar-se de indígena.


Enquanto isso, a previsão, contida no parágrafo único do art. 56 da Lei 6.001/73, de cumprimento da pena “se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado consiste em medida de fundamental importância.


Tal dispositivo, que o PL 3897/04 injustificadamente pretende extinguir, contempla, em primeiro lugar, o cumprimento da pena não exatamente enquanto castigo, mas enquanto  processo de recuperação do indivíduo, dando-se ao indígena apenado a possibilidade de, dentro de certa margem de liberdade, vir a desenvolver atividades socialmente e psicologicamente úteis ao seu processo de recuperação.


Em segundo lugar, o dispositivo vem ao encontro das propostas direcionadas à possibilidade de aplicação, em certos casos, de alternativas ao cumprimento das penas em estabelecimentos prisionais comuns. Como todos sabem o sistema prisional em todo o país encontra-se repleto de graves problemas, como a superpopulação carcerária, a violência sexual, a disseminação de doenças infecto-contagiosas, as rebeliões, a proximidade com indivíduos com vida pregressa repleta de antecedentes criminais, a corrupção, etc. Em suma as prisões acabam consistindo, como já disseminado no jargão popular, em verdadeiras “escolas de criminalidade”, de onde não se pode esperar que venha o indivíduo (em especial o indígena) a sair melhor do que quando entrou.  


Em terceiro lugar, o parágrafo único do art. 56 da Lei 6.001/73 possibilita que o indígena apenado venha a ser acompanhado de perto pela família e comunidade, mantendo assim laços de importância fundamental para a recuperação do indivíduo, inclusive no que diz respeito à perspectiva de retorno à vida em comunidade.


Por último, há que observar que não por acaso a Convenção 169 da OIT, como já havíamos dito, orienta a que as sanções penais aplicáveis sejam, preferencialmente, “distintas do encarceramento (art. 10, 2.).


IV – Resumindo.


A possibilidade de aprovação do referido projeto de Lei representa profundo e temerário retrocesso no tratamento legal até hoje dado à matéria, uma vez que:


a) a eliminação da previsão de atenuação da pena do indígena, como hoje determina o caput do art. 56 da Lei 6.001/73, implica na desconsideração de que a conduta delituosa foi praticada no contexto de diferentes padrões sócio-culturais;


b) a supressão do parágrafo único do art. 56 (que atualmente possibilita o cumprimento da pena em regime especial de semiliberdade em local de funcionamento do órgão indigenista oficial mais próximo da habitação do condenado) além de  apresentar frontal incompatibilidade com o tratamento dado à matéria pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, representa enormes perdas:


b.1 – em relação ao processo de recuperação do indivíduo, por lhe roubar a possibilidade de desenvolver atividades úteis no meio social, de preferência junto à sua própria comunidade;


b.2 – em relação à possibilidade de se evitar a sua exposição a um ambiente prisional explosivo e degradante;


b.3 – em relação à manutenção dos laços com a família e a comunidade, o que facilitaria a perspectiva de retorno à convivência com sua comunidade de origem.


c) a  fixação do “grau de integração” como critério para a definição da pena afigura-se como proposta:


c.1 – formalmente inócua, vez que a previsão de sujeição ao “grau de integração” já faz parte da Lei 6.001/73 no dispositivo questionado;


c.2 –  juridicamente inviável em razão de a “integração” consistir em forma de distinção não recepcionada pelo texto constitucional de 1988, restando portanto derrogada a sua presença no texto da lei indigenista de 1973; e,


c.3 – incompatível com o tratamento dado à matéria pela Convenção 169, que também já se livrou da presença retrógrada e etnocêntrica da “integração” na relação com os povos indígenas.


V – Conclusão:


            À vista do exposto, somos no sentido de que o referido PL 3897/2004 venha a ser rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.


            Brasília – DF, 25 de fevereiro de 2005.


Rosane F. Lacerda


Assessora jurídica do Cimi – Secretariado Nacional.


 






[1] “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, … competindo à União …, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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