“Foi criada a escola para o índio. Nós queremos a escola do índio”
As crianças da aldeia de Caarapó, que fica no município do mesmo nome, eram consideradas péssimas alunas na escola da cidade. Levavam três, quatro anos para serem alfabetizadas. Demorou anos para que se percebesse que a dificuldade de alfabetização em português acontecia porque, ao contrário das crianças não índias, que aprendiam o português em suas casas desde que nasciam, a língua materna dos Guarani-Kaiowá era o guarani. Quando chegavam na escola, elas tinham não apenas que aprender a escrita mas, antes disso, aprender a falar o próprio português. Por isso sua alfabetização demorava tanto. Em 1998, o município entendeu que, para mudar a situação de 70% de reprovação de alunos indígenas, seria necessário mudar a própria escola. Depois de alfabetizados em guarani, fica muito mais simples aprender o português, como segunda língua. A escola no idioma do povo indígena valoriza os conhecimentos dos indígenas e permite que eles aprendam respeitando as estruturas de pensamento que são próprias de cada povo e que são expressas no idioma. Um curso de formação de professores indígenas A alguns quilômetros de Dourados, fomos conhecer um curso de formação de professores indígenas. O cartaz no fundo da sala ampla, onde estudam 50 professores, diz que o Projeto Ará Verá é um curso normal em nível médio para a formação de professores Guarani-Kaiowá, realizado pelo governo do estado do Mato Grosso do Sul. O curso dura 3,5 anos e os encontros presenciais acontecem a cada seis meses. Os professores estão cursando o sexto módulo, de um total de sete. Neste último, tiveram aulas de matemática e de biologia, que aborda temas como saúde e higiene. A primeira edição do curso formou 75 professores Guarani-Kaiowá. “Aqui no curso, todo dia tem dois relatores que fazem a memória do dia. Um registra em português, o outro em guarani. Os relatos em português são sempre mais curtos e limitados. Os registros em guarani são feitos com todos os detalhes das aulas”, conta Anari Nantes, uma das coordenadoras do curso. A metodologia de trabalho é um dos pontos importantes da formação dos professores. “A gente já sabe, mas não sabe como trabalhar o que sabemos”, disse o jovem Heliodoro, 21 anos, de Caarapó. Antes de cada módulo, há reuniões de preparação que contam com a presença de alguns dos participantes e de lideranças políticas das aldeias. Durante as aulas, estão presentes lideranças religiosas (que aqui são chamadas de caciques ou de Nhande Ru), intervêm na discussão quando acham necessário. “Tem muita coisa que só o cacique sabe a explicação. Ele é como um professor também, é o professor tradicional, o mestre tradicional”, conta Joaquim, Guarani Nhandeva da aldeia Porto Lindo. O curso trabalha com apreensão de conteúdos, mas trabalha também com a preparação dos professores para a pesquisa, com ferramentas para que os professores busquem o que não sabem e que construam o conhecimento juntos com os alunos. “ A gente vai aprendendo as coisas junto com as crianças e elas aprendem com a gente”, disse um dos participantes durante a aula. A produção de material didático também é feita pelos professores, já que há poucas publicações em guarani. Cartazes, textos reproduzidos no mimeógrafo a álcool com contos, receitas típicas, artesanato e de plantas usadas por cada povo vêm sendo confeccionados nas salas de aula e servem como material de apoio nas escolas. Funcionam também como forma de registro dos conhecimentos indígenas. “Trabalhamos com pesquisas das matas nativas que ainda existem: pesquisamos as árvores, quantos tipos existem, se há alguma que não existe mais e por que acabou. Na árvore entra também o mito. Não é estranho para os alunos o que ensinamos. Eles trazem o conhecimento de casa, do seu dia-a-dia. E a gente não divide as matérias, como no planejamento do município. A gente usa matemática junto com ciências, nosso método de aprender é assim, tudo englobado numa coisa só. Porque na nossa vida na aldeia a gente não separa o acontecimentos. Nossa escola é interdisciplinar”, conta o professor Enoqui, Guarani-Kaiowá da terra indígena Taquaperi, que diz também que esta liberdade de planejamento ainda gera atritos com algumas das secretarias de educação. Natanael, Guarani Nhandeva da terra indígena Panambizinho, reforça a importância dos materiais diferenciados: “ tem coisas que vocês não índios podem achar que é um mito ou uma lenda, mas que para nós são reais. E a gente coloca isso escrito”, afirma. Mais sobre as diferenças culturais “ A gente aprende a escrever a realidade do mato sobre a nossa visão. Nos livros que a gente estudava antes, as árvores tinham olho, boca. As girafas tinham chapéu. A gente convive muito com a natureza, não vê a natureza assim. Eu via nos livros e pensava que era assim. Depois fomos estudando, perguntando, e meus pais falaram que não era assim. O não índio inventa isso para chamar a atenção das crianças”, disse Heliodoro. O professor continua: “ Por isso hoje não desprezamos os idosos, eles têm o que contar e nós também passamos para os alunos. Eu não dava valor ao que o meu avô contava, e era muito rico. Ele acendia fogueira e contava histórias do mato, dos animais, de como era. Eu nunca pensava que ia usar o que o meu avô sabia”, conta. Cestas básicas e lixo nas aldeias A conversa com o professor segue e ele conta como os debates do curso, que hoje tinha aulas de biologia, se ligam com a realidade na aldeia. Assunto em todo lugar, o tema das cestas básicas distribuídas nas mobilizações recentes contra a desnutrição infantil vem à tona: “Hoje de manhã a gente tava discutindo as cestas básicas. Junto com elas vêm latas que são jogadas no terreno, demoram para desaparecer. Tinha que entrar carro para recolher o lixo. Na nossa aldeia, até o ano retrasado tinha isso. Ano passado não aconteceu mais. Não adianta mandar, mandar, mandar. E aquelas latas, pra onde vão?” Priscila D. Carvalho Dourados, MS – especial Mato Grosso do Sul