04/03/2005

Nos caminhos das aldeias


 


 


 


Saída de Dourados, no caminho de Itaporã (pedra bonita em Guarani). Nem bem acaba a cidade e uma grande placa adverte: Cuidado, Reserva Indígena. Uma série de quebra molas tentam evitar a velocidade que tem vitimado dezenas de índios. Adentrando um dos ramais de acesso às aldeias um olhar um tanto estupefato sobre plantações de soja. “É 70% das plantações da terra aqui são de soja. E muitos deles são em parceria com não índios”, comenta alguém que nos acompanhava.


 


O que pode parecer uma grande contradição, é na verdade, o resultado de políticas desenvolvidas pelo extinto  Serviço de Proteção ao Índio e depois Funai, que favorecendo alguns que demonstravam maiores habilidades de produção foi acentuando a concentração de terra e bens. Política essa agravada pela ação de aproveitadores inescrupulosos.  “Isso é fruto de muita violência e opressão que foi instalada e estimulada pelos órgãos indigenistas dos diversos governos durante muito tempo”, comentou uma liderança indígena. Estamos diante de uma situação de fato, que merece muita reflexão e posicionamentos das próprias comunidades.


É claro que serão oportunas reflexões coerentes também da parte de quem apenas vê isso como uma grave distorção entre os índios e alimenta e sustenta igual ou pior desigualdade na nossa sociedade. Talvez, uma atitude bem coerente seria pela erradicação da concentração de terras e capital em nossa sociedade. Só então estaríamos livres da advertência bíblica: “hipócrita, só vês o cisco no olho do teu irmão e não vês a trave no teu próprio olho”.  Nada de acobertar oportunismos ou malandragens. Porém,  não podemos cair no simplismo de julgar essa situação sem uma compreensão mais profunda, do ponto de vista histórico e antropológico, das causas dessa realidade de hoje.


 


 


 


“Roubaram as crianças”


 


“Existe um descumprimento da Constituição quando não se permite a presença da mãe ou dos pais com as crianças indígenas nos hospitais”, comenta indignada a enfermeira Maria Izaura, do Cimi, saber que “os pais roubaram as crianças” ou “é hábito cultural as mães retirarem as crianças quando essas começam a melhorar”.



O Estatuto da Criança e do Adolescente garante esse acompanhamento dos pais a crianças de até 12 anos. “E se isso é visto como um direito e até necessidade em nossa sociedade, não o será com maior razão com relação aos povos indígenas?”, pergunta. Estamos novamente diante de algo bem mais complexo do que um simples julgamento com olhares e compreensões estranhos à cultura de um povo indígena. E não precisamos ser antropólogos ou indigenistas para saber que cada cultura desenvolve os melhores mecanismos possíveis para garantir a vida e harmonia de seu povo. E é, no mínimo, um desrespeito e agressão simplesmente produzir uma avaliação e julgamento sem conhecer esses mecanismos e explicações a partir da cosmovisão de cada povo.


 


 


 


As saídas que vem do povo


Um dos caciques (nhanderu ou líder religioso)  ao se referir a morte de três crianças de seu grupo, identificou como principais sugestões para enfrentar esse quadro de desnutrição e mortes, a atuação do próprio governo com sua política assistencialista. “ Ao invés de dar comida deviam ajudar na preparação de roças, um ou dois hectares por família onde se plantaria um pouco de cada coisa: cana, milho, batata, banana…A cesta básica acaba numa semana ou um pouco mais. Já a roça dura muito tempo e se pode ir lá e pegar comida quando a criança quer…” Citou também o trabalho nas usinas como agravante nessa situação de fome e desnutrição “hoje quando os homens vão trabalhar na usina já recebem um vale quinze dias antes…Aí vai gastando e quando vai trabalhar a família já fica praticamente sem nada”. Também falou do esforço de manter viva a cultura do  seu povo Guarani Kaiowá, dizendo que lamentavelmente alguns rituais e práticas estão sendo deixadas. “Já são poucos os que usam tembetá” (uma espécie de  tala localizada no lábio inferior). Até o “batismo do milho” (ritual por ocasião da maturação do milho) já estava sendo deixado. Mas na semana passada fiz um aqui”, comentou um cacique.


 


Porém, todos se manifestaram com muita ênfase sobre a necessidade de realizarem as Aty Guassu (Grande Reunião dos Guarani) como momentos fortes para decidir as lutas e  juntar as forças para garantir a vida do povo. “Nós não vamos deixar nosso maracá, nosso canto, nossa dança”. Já um dos mais reconhecidos nhanderu da aldeia foi enfático ao falar da importância de manter e construir casas de reza pois “quando se plantou  a casa de reza a terra já é nossa”. E referiu-se à não existência ainda de casa de reza no Cerro Marangatu,  pois ali ainda estavam com medo de serem expulsos.


 


Nos caminhos da aldeia a gente vai aprendendo e compreendendo um pouco mais da vida, lutas e dramas,  mas este é apenas mais um passo no longo caminhar pela vida desse sofrido, porém resistente  e digno povo. Quem sabe a sociedade brasileira venha a conhecer e ser mais solidário com os Guarani Kaiowá e todos os povos indígenas do Brasil e do mundo.


 


 


 


Egon Heck


 


 


Fonte: Cimi
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