03/03/2005

Guarani e Kaiowá: da liberdade e fartura para o confinamento e a fome

“Éramos uma nação livre. Tínhamos fartura, e hoje estamos escravizados em nossas próprias terras, ou nas terras que nos foram roubadas…”. Com essas palavras Marçal de Souza Guarani, olhando para o rosto do papa João Paulo II em Manaus, em 1980, expressava a realidade de seu povo, que já era grave pela falta de terras e pela exploração da mão-de-obra indígena. Esta mesma situação volta a chamar a atenção do país neste momento em que crianças morrem de fome e desnutridas e que a violência chega a um índice alarmante.


 


Belos os tempos que continuam no imaginário e na utopia Guarani e Kaiowá, em que viviam tranqüilos entre a abundante e densa floresta povoada de inúmeros animais e aves, cortada por límpidos rios e córregos, numa terra que a cada período de roçada fazia brotar com exuberância dezenas de tipos de milho, tubérculos, e outras plantas. Era a fartura, saboreando carnes de animais silvestres, tomando tererê e chimarrão à sombra de frondosas árvores ou nas choupanas cobertas de sapé. Foram se passando alguns séculos e começam a surgir gente de outras cores e interesses, que vão ocupando as terras, derrubando a mata, matando os animais. Com a destruição e invasão chegam as doenças, a tristeza e a fome. Achando que estava preservando suas vidas, numa espécie de mal menor, o Serviço de Proteção aos Índios, confina os Kaiowá e Guarani do Mato Grosso do Sul em oito pequenos pedaços de terra, conhecidos como reservas, e que não chegavam a 20 mil hectares. Iniciou-se então o longo e penoso calvário desse povo, que começou a perder o que mais preza: sua liberdade e as condições que do “bem viver Guarani”.


 


Quando vemos quase diariamente os anúncios de mortes e violências se abatendo sobre esse povo fica muito difícil entendermos as razões de tamanha crueldade. O historiador e aliado dos povos indígenas, Antonio Brand, faz um longo relato mergulhando na história de ocupação econômica e política dessa região para ali identificar as causas do atual processo. E não é difícil identificar uma das principais e fatais causas: “o confinamento”. Quando os índios começaram a perder suas terras e sua liberdade, ali se iniciou essa espécie lenta de agonia de um povo, que hoje tem esse caráter etnocida. Hoje a situação é extremamente complexa e grave. Porém não restam dúvidas de que as causas principais residem na perda da terra, na destruição do meio ambiente e dos recursos naturais, e da desestruturação da economia dos Kaiowá.


 


Números das contradições


 


Quem vive no Mato Grosso do Sul convive com as contradições de um estado onde alguns poucos exploram a terra e acumulam capital, enquanto grande parte da população é mantida excluída deste processo. Os números elucidam este quadro. Segundo o IBGE, em 2004 o Mato Grosso do Sul produziu:


 


– 3,2 milhões de toneladas de soja, produzidas em aproximadamente dois milhões de hectares;


– 2,3 milhões de toneladas de milho;


– 241.000 toneladas de arroz;


– 493,3 mil toneladas de mandioca.


 


O Mato Grosso do Sul tem 30 milhões de cabeças de gado, e é um dos maiores exportadores do país. A estrutura fundiária baseada no agronegócio tem uma alta concentração de terra, estando 35% das terras do estado na mão de 1% da população. Do outro lado da cerca das grandes propriedades, existe mais de uma centena de acampamentos de trabalhadores rurais e índios vivendo na beira das estradas.


 


A população indígena Guarani, em torno de 30 mil pessoas, vive hoje em pouco mais de 20 mil hectares apesar de haver, no Mato Grosso do Sul, 100 mil hectares de terras reconhecidas como de ocupação tradicional dos Guarani, divididos em 29 terras indígenas de tamanhos entre 500 e 13.000 hectares. Conforme estatísticas do Cimi existem 120 terras indígenas, consideradas a partir dos registros feitos das terras Guarani “tekoha”, donde os índios foram expulsos nas últimas décadas.


 


Parte destas terras indígenas estão hoje submetidas a ações judiciais que questionam seus relatórios de identificação ou a ações de reintegração de posse. No Mato Grosso do Sul acontecem alguns dos casos mais violentos de disputas de terras entre fazendeiros e indígenas. De tempos em tempos, as ameaças de reintegração de posse – executadas pela Polícia Federal com apoio da Funai – ameaçam os povos que vivem no estado. Os casos mais prementes ficam nos municípios de Antonio João e de Dois Irmãos de Buriti, nas terras indígenas Nhande Ru Marangatu, dos Guarani, e de Buriti, dos Terena.


 


Perda das terras indígenas e destruição dos recursos naturais


 


Apesar dos impactos negativos da instalação da Companhia Matte Larangeiras em suas terras, desde o final do século XX, este povo conseguia exercer parcialmente sua liberdade de locomoção buscando áreas de refúgio nas matas remanescentes. A extração da erva mate nativa exigia mão-de-obra, e os indígenas trabalhavam para a empresa. 


 


A partir da década de 1970, porém, se inicia na região o plantio intensivo da soja, com processos altamente mecanizados, destruindo os últimos pedaços de mata e desta forma destruindo esses espaços que ainda serviam de refúgio para os Guarani e Kaiowá. Intensifica-se o confinamento. “Na década de 80 não apenas o confinamento físico cresce, mas os indígenas são realmente empurrados das regiões onde vivem porque a mecanização não precisa da mão-de-obra dele”, relata Brand. Nesse período também se instalam na região as usinas de açúcar e álcool, onde os indígenas passam a trabalhar em alguns períodos do ano. 


 


Em conseqüência dessa expansão econômica sobre as terras indígenas, que acaba com os recursos naturais importantes no equilíbrio da economia e organização Guarani, também foram afetados os laços sociais que garantiam estabilidade do povo, gerando a violência e o suicídio. Não é possível entender a realidade de desnutrição, fome, mortes, violências e suicídios sem considerar esse processo de despojamento de terras. Assim, também não é possível combater a fome e a desnutrição sem que sejam tomadas medidas que apontem para a questão do tamanho e das possibilidades de utilização das terras.


 


Podemos dessa forma compreender um pouco deste complexo quadro atual que transformou esse povo altaneiro, nobre, profundamente religioso, portador de uma forte cultura e resistência, a uma situação de confinados em pequenos pedaços de terra ou mesmo às beiras das estradas como tantos sem terra, privados dos seus “espaços de bem viver”, de sua liberdade, vivendo numa grave situação de fome, desnutrição, violência, dependência e morte. É um clamor e uma denúncia desse sistema que onde os povos indígenas não tem lugar para viver.


 


Dourados (MS), 03 de março de 2005.


 


Egon Heck e Priscila Carvalho


Especial de Dourados – Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi Regional MS e Cimi Assessoria de Imprensa
Share this: