03/03/2005

Dourados: uma cidade de costas para os índios

Prefeitura do município realizou reunião com mais de 50 pessoas sobre medidas estruturantes para a população indígena. Apenas três indígenas estavam presentes


 


A cidade de Dourados, que surgiu em meados do século passado em função do projeto geopolítico do presidente Getúlio Vargas para ocupação da fronteira através da colonização, vive um momento de certa comoção pelo anúncio seguido de mortes de crianças indígenas Kaiowá Guarani, vítimas da desnutrição, fome e miséria. E a cidade, hoje com mais de 200 mil habitantes, a segunda mais importante do Estado, se desenvolveu e expandiu sobre a terra indígena. Hoje a realidade vivida pelos índios é símbolo dessa contradição brutal decorrente do processo de expansão econômica e política sobre os povos nativos desta região.


 


A situação na Terra Indígena de Dourados, de 3.500 hectares e com aproximadamente 11 mil índios, é considerada uma das piores e mais complexas do país. E isso apesar de inúmeros projetos de assistência e desenvolvimento que estão sendo ali realizados pelos diversos órgãos estaduais, municipais e federais.  “Para sair da linha da miséria e ficar na linha da pobreza seria necessário investir pelos menos 10 milhões de reais”, afirmou o secretário de governo do município, em reunião realizada ontem na prefeitura municipal, com o objetivo de “avaliar e debater um novo arranjo institucional de responsabilidades sobre as políticas publicas estruturantes a serem desenvolvidas nas comunidades indígenas de Dourados”. A reunião teve a presença do prefeito em exercício e mais de duas dezenas de instituições e órgãos locais, estaduais e federais, além de igrejas e universidades. Quase 50 pessoas se apinharam na sala de reuniões do prefeito. O fato em si foi considerado significativo e muito importante, pois foi uma demonstração de que a cidade, que tradicionalmente está de costas para os índios e de certa forma os torna invisíveis, sequer se dando conta quando os índios por ela passam, não mais pode ignorar o drama porque passam milhares dessas pessoas que ali estão na periferia e nos diversos espaços da cidade. “Não é mais possível esconder os índios catando lixo ou pedindo esmola” conforme tem afirmado Antonio Brand, assim como a imprensa, que se encarregou de divulgar para o Brasil e o mundo a situação de fome e desnutrição em que vivem as populações indígenas, em meio a uma das regiões de maior riqueza do país.


 


Uma das observações feitas pelo índio Fernando Terena, da aldeia Jaguapiru, foi sobre a presença de apenas três indígenas na reunião. Ressaltou a importância da participação dos índios em todo o processo. Caso contrário, continuarão sendo objeto de projetos ou laboratório de experiências fadadas ao fracasso. Só assim é possível entender a grande quantidade de projetos desenvolvidos nesta terra indígena nos últimos anos, por vários órgãos e instituições, que tiveram como resultado o agravamento da situação em que vivem os indígenas. Criticou o desmonte de ações na área de saúde e que agora, em função da denúncia da gravidade da situação começam a ser retomadas. Destacou que os índios não querem e não precisam ser objetos de caridade ou assistencialismo, querem e precisam ter seus direitos constitucionais respeitados.


 


A comoção e a reação


 


Diante desse quadro que tem gerado uma certa comoção nacional, não mais era possível ficar parado. Até por que a imagem da cidade e do país passaram a ter respingos preocupantes. Talvez nunca em sua história essa terra indígena tenha assistido a uma avalanche tão grande de pessoas querendo entender e ajudar a sair dessas estatísticas tão devassadoras. Conforme o secretario de governo, neste momento há oito grupos de trabalho agindo na terra indígena. A pergunta que vários fizeram é porque então a situação tem gradativamente piorado. Certamente os fatores que convergem para essa situação são muitos. Porém não se pode duvidar de que a causa fundamental é a falta de terra e a destruição total dos recursos naturais restantes. Dentre as outras causas convergentes para a falta de resultados positivos de todos esses recursos investidos é o desconhecimento do sistema social e cultural indígena, as ação desconexas e desarticuladas, o impacto desestruturador da economia capitalista sobre a lógica da reciprocidade e não acumulação indígena, o confinamento de inúmeros grupos de famílias extensas que tem aumentado os conflitos internos… Enfim o complexo quadro resultante de séculos de dominação agora se traduz no fracasso das tentativas de integrar o índio numa sociedade preconceituosa, estratificada, injusta e opressora.


 


Houve várias manifestações salientando o desconhecimento dos índios e sua cultura, de que as medidas paliativas e assistencialistas apenas haviam agravado o quadro de dependência e miséria, e portanto era preciso começar e buscar algo novo, com políticas e ações articuladas coordenadas, estruturantes. Será necessário um novo paradigma, uma nova metodologia, baseada na realidade, autonomia e protagonismo indígena. Foi ressaltado pelo representante do Cimi de que nada disso seria possível se não houver uma decisão política e ação urgente de reconhecimento e legalização das terras indígenas. E ao mesmo tempo chamou atenção para as contradições existentes, pois enquanto ali se reunia um grupo tão expressivo de representantes dos governos e sociedade, lá fora estavam se postando inúmeros policiais para ultimar os preparativos do despejo dos índios no Cerro Marangatu. O prefeito em exercício informou que o prefeito Tetila estará hoje em Brasília onde estará pleiteando e cobrando do governo a ampliação da Terra Indígena de Dourados. Uma nova semente está sendo plantada no vermelho chão de Dourados. Constituiu-se uma secretaria executiva para elaboraram termo de acordo entre as instituições e se designaram representantes para coordenar a elaboração de propostas de ações nas diversas áreas. Talvez a dura lição faça surgir bons frutos. E assim a cidade não mais continuará de costas para os índios.


 


Dourados (MS), 03 de março de 2005.


 


Egon Heck


Cimi Regional Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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