26/02/2005

Índios de Roraima pressionam por homologação imediata

Em entrevista exclusiva, o tuxaua Marinaldo Justino Trajano, novo coordenador do Conselho Indígena de Roraima, diz que o movimento não aceitará as concessões negociadas pelo governo federal com fazendeiros, que podem alterar o mapa da Terra Indígena. 


Patrícia Bonilha 


 


Com o objetivo de avaliar a atual problemática indígena e direcionar as futuras ações do movimento, lideranças dos povos Ingaricó, Macuxi, Patamona, Tauperang, Sapará, Wapichana, Wai Wai e Yanomani, reuniram-se por quatro dias (de 12 a 15), na 34ª Assembléia Geral dos Povos Indígenas do Estado de Roraima, realizada na comunidade de Maturuca, na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol. O encontro teve a participação de mais de mil pessoas, entre representantes de 186 comunidades indígenas, líderes, conselheiros regionais, agentes de saúde, professores, convidados e membros de outras organizações indígenas. Representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ibama também participaram da assembléia.


 


A imediata homologação em área contínua da reserva Raposa Serra do Sol foi definida como a prioridade número um dos índios do Estado. Avaliação é de que sem esse reconhecimento de direito histórico não será possível o avanço das ações comunitárias. Eles também denunciam que a protelação do processo tem provocado o acirramento da violência na região e que líderes e membros da comunidade são constantemente ameaçados.


 


A homologação da TI Raposa/Serra do Sol vem se arrastando em um longo processo de idas e vindas do sistema judiciário, que pode ser traduzido como um jogo de interesses envolvendo os políticos do estado, empresas mineradoras, madeireiros, garimpeiros, sojicultores e as populações indígenas, tradicionais da área.


 


Em seu último capítulo, no dia três de janeiro, a vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Ellen Gracie, acatou uma ação cautelar movida pelo senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) e suspendeu a portaria 820, de 1998, do Ministério da Justiça, que demarca a área. Esse ato impediu, mais uma vez, que a realização da homologação em área contínua fosse feita. O processo depende agora de apreciação do Plenário do STF. Segundo assessoria do Conselho Indígena de Roraima (CIR), durante 14 meses não houve impedimentos jurídicos para que o presidente Lula assinasse o decreto de homologação. Mesmo assim, o decreto não foi assinado.


 


Além da urgente homologação, o extenso documento final – que foi enviado às autoridades governamentais – apresenta outras reivindicações e afirma a disposição dos índios de lutar pela garantia dos direitos estabelecidos na legislação, como a expulsão de invasores de terras indígenas. Na área de crimes ambientais, dentre outros, foram citados os casos dos arrozeiros que poluem os rios com agrotóxicos, causando doenças na população e má formação dos peixes, o constante despejo de lixo das vilas nas terras indígenas, a atuação dos garimpeiros e a sobreposição de áreas de unidade de conservação nas terras indígenas.


 


Nas áreas de saúde e educação, além de investimento em estrutura e compra de equipamentos e materiais, foram encaminhadas propostas reivindicam a consideração e o respeito às diferenças culturais. Como por exemplo, o apoio à criação de centros regionais para medicina tradicional, que envolvam pajés, rezadores, parteiras, hortas medicinais e preparo dos medicamentos tradicionais.


 


No último dia da assembléia, tomou posse o coordenador eleito do CIR, o tuxaua Marinaldo Justino Trajano. Juntamente com o vice-coordenador, Jairo Pereira da Silva, ele se responsabiliza a dar encaminhamento às questões debatidas no encontro. Para a secretaria do Movimento de Mulheres foi eleita Lavina Salomão. O mandato para todos os eleitos é de dois anos. Em entrevista à Agência Carta Maior, o novo coordenador Marinaldo Trajano fala da atual situação e dos desafios que o povo indígena das comunidades de Roraima, estimado em aproximadamente 40.000 pessoas (segundo dados do Instituto Socioambiental), têm à frente.


 


Agência Carta Maior – Quais são os mecanismos que as comunidades indígenas têm para pressionar as autoridades pela homologação das terras da Raposa Serra do Sol?


Marinaldo Trajano – Essa questão foi muito discutida durante o nosso encontro e acreditamos que a melhor forma é através de ocupações e construção de comunidades nas áreas desocupadas, principalmente nos limites da área. Assim também fica visível que ali existem comunidades vivendo, trabalhando. Esse é o caso da aldeia, ás margens do rio Surumu, onde em 23 de novembro do ano passado, arrozeiros, fazendeiros e até índios destruíram tudo, as casas, as roupas, as lavouras. Passaram com os tratores em cima de tudo, atiraram, feriram. Mas não desanimamos e estamos lá reconstruindo tudo novamente. Também juntamente com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (COIAB), estamos nos articulando para a realização do Fórum dos Povos Indígenas, previsto para acontecer durante a semana do índio, de 18 a 23 de abril deste ano, em Brasília. Queremos estar bem organizados lá para exigir nossos direitos.


 


CM – É a questão da continuidade ou não das terras que emperra o processo de homologação das terras da Raposa Serra do Sol?


MT – Há muitas informações equivocadas feitas por quem não conhece a realidade. A população indígena que está lá dentro é que tem conhecimento. Há muitos políticos que agem somente por interesse próprio. São pessoas que não pensam nos seus filhos, netos e bisnetos. Há grandes empresas mineradoras que têm interesse nos minérios da região. Para nós, a demarcação das terras em ilhas não tem cabimento. A homologação da demarcação contínua das terras não vai impedir o desenvolvimento do estado, como muitos falam. Nós somos parte do estado e vamos contribuir para o desenvolvimento do estado. Tirar os arrozeiros da área não vai parar o desenvolvimento. As áreas bloqueadas têm causado muitos problemas porque algumas comunidades indígenas ficam sem terra para plantar, sem água, e tem que obrigatoriamente migrar, às vezes indo até para as cidades. Gostaríamos que o governo parasse de acreditar nas mentiras de políticos, do governo estadual, de alguns índios, que são pagos uma mixaria para mentir. O que impede o desenvolvimento do estado é a corrupção. Por exemplo, aqui em Roraima, 300 milhões de reais foram desviados dos cofres públicos. Nós, índios, temos projetos de desenvolvimento para as nossas terras. Mas elas estão invadidas pela monocultura da soja, das acácias, pelo desmatamento, pelos garimpeiros, pescadores. Invasão de uma área indígena que é protegida pelas leis do país.


 


CM – O senhor disse que às vezes índios são pagos para dar depoimentos falsos, eles também são pagos para desmatar?


MT – Com certeza. Às vezes, a comunidade faz o que o líder está pedindo, sem saber muito bem o que há por trás. Esses líderes recebem migalhas dos políticos e quem sofre é a comunidade.


 


CM – Quais são as conseqüências que a protelação da homologação traz para as comunidades indígenas?


MT – Está acontecendo uma rápida ampliação do desmatamento na área. As comunidades são constantemente ameaçadas pelos fazendeiros. Os rios estão ficando poluídos. O uso dos agrotóxicos está aumentando muito e causando doenças nos índios. Comunidades antigas ou reconstruídas, em áreas de expansão de arroz, estão sendo cercadas pelos arrozeiros. Ontem (17) mesmo, passei na comunidade Jawari, que fica no sul da área da Raposa Serra do Sol e vi os trabalhadores dos arrozeiros Paulo César Quantieiro, Ivalcir Centenário e Ivo Barelli, fazendo a cerca de arame enfarpado. Eles cercam e depois dizem que aquelas terras são deles. Os moradores da comunidade estão com medo de que a qualquer dia, quando voltem da lavoura encontrem, novamente, as casas destruídas. Agora mesmo, durante a nossa assembléia, no dia 14, os carros com pistoleiros ficavam passando ali. Nós estamos sempre sendo ameaçados porque nós, do CIR, não temos medo de discutir nossos direitos. A nossa posição é a de que não vamos ficar em cima do muro, vamos sempre denunciar o que não está certo. Estamos agindo na defesa do nosso povo.


 


CM – No documento final da assembléia, as lideranças afirmam estar muito preocupadas com as negociações sobre os limites da TI Raposa Serra do Sol. O que essas negociações envolvem?


MT – O governo federal está negociando com o governo do estado as áreas da faixa da fronteira, as sedes de municípios, como o de Uiramutã, que foi criado depois da demarcação e, portanto, é inconstitucional, as área de estradas e o Parque Nacional de Roraima. Nós não vamos negociar. Depois de tanta luta dos nossos ancestrais, não podemos negociar essas terras. Elas são nossas por direito, vamos protegê-las.


 


CM – Já foram tomadas providências em relação aos problemas de saúde que os agrotóxicos estão causando nas populações? E em relação ao lixo das vilas ao redor que vem sendo jogado nas terras indígenas?


MT – Já convocamos o Ibama e todas as outras organizações da área. Denunciamos esses casos infinitas vezes, mas não somos nunca atendidos. Já fomos até para Brasília para reivindicar ações. Lá, todos falam muito bonitinho, mas ninguém cumpre com o que prometem. A situação está cada vez mais difícil.


 


CM – Em que se baseiam as reivindicações de saúde e educação diferenciadas para as populações indígenas?


MT – As populações indígenas sempre tiveram a natureza como maior referência. Nós aprendemos muito com a natureza e por isso a respeitamos tanto. Ela é a nossa escola. Cada ser vivo é uma biblioteca viva para nós. As plantas são remédios vivos. Por isso, é muito importante para as nossas escolas o papel da natureza nas nossas línguas, no artesanato, nas nossas tradições e cultura. Na área da saúde também, nós temos nossos pajés, que hoje estão trabalhando e curando até mesmo em Boa Vista. Nós temos nossas técnicas e conhecimentos, que são muito diferentes dos conhecimentos dos médicos. O médico tem valor nas nossas comunidades, mas nós acreditamos muito também no poder de cura dos nossos pajés.


 


CM – O tema desta 34ª assembléia foi “Makunaíma: vivo até o último índio”. Quem foi Makunaíma e o que ele representa para os povos indígenas?


MT – Makunaima foi um ser que viveu há muito tempo e que tinha todo poder. Ele sabia o que era bom para seus filhos. Ele os educava a respeitar o meio ambiente, as florestas os igarapés. Um ser muito poderoso. Para nós, ele representa esse poder, além de também ser essa força da resistência, da coragem. Por isso, ele está vivo entre nós.


 


 

Fonte: Agência Carta Maior
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