16/02/2005

Martírio da Irmã Dorothy denuncia a iniqüidade do agronegócio

Irmã Dorothy, brutalmente assassinada no sábado, 12 de fevereiro, chocou e encheu de indignação a todos. Sua morte denuncia, diante do Brasil e do mundo, a absurda estrutura rural de concentração da terra em grandes propriedades, ao lado de milhões de famílias que, teimosamente,  buscam, sem consegui-lo, um pequeno pedaço de chão que lhes sirva de abrigo e que providencie seu sustento.


 


O latifúndio, mascarado de agronegócio e modernidade, quer manter esta estrutura fundiária intocada, porque isto lhe garante a manutenção do seu poder hegemônico e seus privilégios sobre todas as instâncias do Estado brasileiro. Fazendeiros, madeireiros, plantadores da soja, acobertados pelo discurso da produtividade, avançam sobre as terras públicas, sobre territórios ocupados pelas populações tradicionais – indígenas, ribeirinhos, posseiros e muitos outros. Promovem a grilagem de terras,  a devastação das florestas e do cerrado, a poluição das águas, usando para isso, até com apoio político e policial do governo estadual, muitas formas de violência, que vão desde a intimidação, passando pelo trabalho escravo e chegando ao assassinato.


 


Do seu lado a atuação que a Irmã Dorothy vinha desenvolvendo junto às comunidades de Anapu era o anúncio de um novo tipo sociedade agrária, buscando a terra como lugar de vida e convivência, na preservação dos valores da solidariedade, respeitando e cuidando do meio-ambiente e produzindo o alimento com sustentabilidade. Mas esta forma de vivência afronta o modelo econômico atualmente adotado pelo Brasil e se torna um estorvo para os que buscam, acima de tudo, o  lucro imediato.


 


Em Anapu, com mais de 90% de suas terras consideradas devolutas, os movimentos sociais conseguiram a criação de alguns Projetos de Desenvolvimento Sustentável – PDS, onde estavam sendo assentadas 600 famílias. Nestas áreas, onde as comunidades harmonizavam a produção familiar, a coleta florestal e o respeito ao meio ambiente, é que fazendeiros têm usado de todas as formas de terror e violência para expulsá-las, culminando com prisões de lavradores e agora com a morte da Irmã. 


 


Visto que este vil assassinato teve uma inusitada repercussão internacional será elucidado rapidamente e seus responsáveis julgados e punidos. O Governo já está enviando para lá 2.000 soldados do Exército. Mas a profecia da Irmã Dorothy continua apelando, como ela apelou sem ser ouvida, pela atenção do Governo, para o crime organizado na região, com o envolvimento de autoridades e da polícia do governo estadual, na corrida e na disputa pelo domínio, a qualquer preço, daquela área de total desordem fundiária, com claro desafio e enfrentamento da Autoridade constituída.


 


Além disso, do lado do Estado temos um Judiciário cuja praxe na questão da terra tem sido lamentável. Os juízes, na sua maioria, não assimilaram ainda o avanço constitucional da função social da propriedade da terra. Este Poder tem se mostrado extremamente parcial ao expedir liminares de reintegração de posse contra lavradores, sobre áreas com titularidade muitas vezes duvidosa, inclusive contra comunidades tradicionais, que ocupam as terras há dezenas de anos. Em 2003, 35.292 famílias foram despejadas da terra. E dados parciais de 2004 indicam o despejo de outras 34.850 famílias camponesas.


 


O mesmo Poder é extremamente lento para julgar crimes cometidos contra os lavradores. Das 1.379 mortes no campo, registradas pela CPT, de 1985 a 2004, somente 75 casos foram julgados, tendo sido condenados apenas 15 mandantes e 64 executores. Destes, 523 assassinatos aconteceram no Pará e só foram a julgamento 10 casos, com a condenação de 5 mandantes e 8 executores. O massacre de Eldorado de Carajás tem sido paradigmático da forma como são tratados os crimes contra os trabalhadores e de como a Justiça tem agido. Dos 154 levados ao banco dos réus, apenas dois comandantes da tropa foram condenados.


 


O testemunho de Irmã Dorothy exige que a Reforma Agrária se torne, efetivamente, uma ação prioritária do governo federal, sem medo de desapropriar o latifúndio e com peso financeiro não inferior ao que é prodigamente dado ao agronegócio. Que se retomem as terras públicas invadidas por grileiros e sejam destinadas para projetos de assentamento. Que se ampliem os recursos para o combate ao trabalho escravo; que se rompa o acordo efetuado com os madeireiros, suspendendo todos os planos irregulares de manejo florestal. Também é indispensável que o Congresso cumpra o artigo 51 das Disposições Constitucionais Transitórias que determina a revisão das doações, vendas e concessões de terras públicas no país e que coloque em pauta para aprovação imediata a proposta de Emenda Constitucional que confisca as terras onde se explora o trabalho escravo.


 


As Igrejas se lançaram, com feliz inspiração ecumênica, na Campanha da Fraternidade 2005 pela Paz, fundada na Justiça. E a CPT comemora, também neste ano, seu jubileu de trigésimo aniversário e vai celebrá-lo no seu 2º  Congresso nacional com o lema: “Fidelidade ao Deus dos pobres, a serviço dos povos da terra”. Nossa Irmã foi assassinada por causa de sua fidelidade a este Deus que tomou o partido dos pobres. Foi por Ele que ela se colocou radicalmente a serviço dos pobres de Anapu.


 


Que o martírio de Irmã Dorothy, hoje associada a Dema, Brasília, Adelaide, Josimo, Margarida, Gringo e tantos outros, nos faça realmente fiéis ao Espírito de Deus, que agora soprou fortemente este vento da Justiça e da Paz, vento que inflamou a chama da pequena vela de Anapu no coração dos povos da terra e das águas e no coração do povo brasileiro.


 


Brasília, 16 de fevereiro de 2005.


 










Dom Erwin Kräutler


Dom Tomás Balduino


Bispo Prelado do Xingu, PA


Presidente da Comissão Pastoral da Terra


 

Fonte: CPT - Comissão Pastoral da Terra
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