Reforma Agrária, lições do passado e tarefas do presente
Marco Aurélio Weissheimer* Valência – Um dos méritos mais estratégicos do Fórum Mundial da Reforma Agrária, aberto oficialmente na manhã deste domingo (5), foi apontado logo de início pelo reitor da Universidade Politécnica de Valência (UPV), Javier Sanz. Pela primeira vez na história, representantes de movimentos sociais, organizações não-governamentais, governos e especialistas acadêmicos reúnem-se em um encontro desta magnitude para debater os desafios que envolvem as lutas por reforma agrária em todo o mundo. Mais de 550 delegados, vindos de 70 países, lotaram o auditório do Colégio Galileu com um objetivo central: reposicionar o tema da reforma agrária diante da nova realidade econômica mundial e impulsionar um processo de internacionalização das lutas sociais no campo. O tema e seus desafios não são novos. Como observou Francisco Amarillo, diretor-geral de Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura, Pesca e Alimentação da Espanha, há pelo menos 2 mil anos fala-se de reforma agrária. Há quem pense que, no início do século XXI, falar de reforma agrária é algo anacrônico. Um rápido inventário dos problemas relacionados à estrutura agrária mundial deixa claro que o tema é mais atual e urgente do que nunca: concentração de terras, fome, pobreza e exclusão social crescente no campo (especialmente na África, Ásia e América Latina, regiões que concentram o maior contingente populacional do planeta); modelo agroexportador baseado em grandes áreas de monocultura; progressiva destruição do meio ambiente e da biodiversidade, patenteamento de formas de vida, racismo, violência no campo. A lista poderia prosseguir. A ampla agenda da questão agrária O questionamento sobre os limites e contradições do modelo agrário hegemônico na imensa maioria dos países do mundo atravessa também, das mais variadas formas, os debates contemporâneos sobre acordos comerciais. Isso ficou evidenciado na fala do deputado socialista Enrique Borón, ex-presidente do Parlamento Europeu, que, ao mesmo tempo, concordou com a necessidade de uma política agrícola européia baseada na noção de segurança alimentar, criticou o paradigma produtivista e o capitalismo selvagem no campo, e defendeu uma política de abertura do acesso aos mercados agrícolas com a derrubada de barreiras alfandegárias, posições que apresentam contradições entre si, como lembrou, de modo irônico, uma representante da Confederação Camponesa da França. A amplitude da agenda atual que caracteriza e dá corpo às lutas por reforma agrária em todo o mundo foi destacada pelo ministro do Desenvolvimento Agrário do Brasil, Miguel Rossetto, principal autoridade governamental presente ao Fórum de Valência. Rossetto defendeu a atualidade e a urgência dessa agenda, lembrando que ela está diretamente relacionada a uma estratégia de desenvolvimento. E que está relacionada também a uma tradição de lutas sociais. “Somos herdeiros de um incansável processo de lutas. Somos herdeiros de lutas mais recentes, quando fomos capazes de dizer não às políticas neoliberais, causadoras de opressão e injustiça”, disse Rossetto, demarcando que essa agenda não se define como um problema técnico a ser resolvido por especialistas e tecnocratas, mas sim como uma questão eminentemente política, relacionada à disputa de poder na sociedade. Um modelo carregado de contradições O Fórum de Valência, observou ainda o ministro brasileiro, assume uma enorme responsabilidade ao pretender constituir um espaço de unidade e interlocução fundamental para todos os agentes sociais que lutam por reforma agrária. A concretização desse espaço de articulação internacional aparece como uma condição necessária para o fortalecimento de uma luta que põe em xeque a própria estrutura de poder político e econômico da sociedade global. Rossetto citou o exemplo do Brasil, um país que é hoje um dos maiores produtores de grãos do mundo, que é o maior exportador líquido de alimentos e que, no entanto, apresenta altíssimos índices de concentração de terra e de renda, um processo crescente de exclusão social e pobreza, de violência no campo e um modelo produtivo predatório dos recursos naturais. “Há, portanto”, acrescentou, “uma agenda a ser enfrentada, uma agenda que expressa essas contradições e esses problemas”. “Devemos ter uma estratégia produtiva, sim, mas uma estratégia que aponte para uma outra agenda de desenvolvimento, que tenha a reforma agrária como uma proposta central”. E ela é central, enfatizou Rossetto, por que tem a ver com a ocupação de nosso território, com a produção de alimentos de qualidade, com a geração de emprego e renda no campo, e, sobretudo, com a ruptura com uma tradição cultural de dominação que vê o campo fundamentalmente como um símbolo de atraso, útil apenas para a acumulação e reprodução de capital. Uma agenda, então, que tem a ver também com as formas de vida que queremos construir para nosso futuro. E uma das coisas que o encontro em Valência já demonstrou em seu primeiro dia é que essa agenda está mais viva do que nunca no calendário de lutas da esquerda mundial. E permanece viva por que os problemas que justificam sua existência estão se agravando. Rossetto sintetizou do seguinte modo essa percepção: “As grandes cidades, hoje, são incapazes de oferecer uma estratégia de segurança e desenvolvimento ao nosso povo. O neoliberalismo construiu um conjunto de grandes mentiras. Todas as suas grandes promessas se revelaram mentirosas. A agenda da guerra voltou com força. Mas a maior das mentiras foi dizer que a esquerda tinha acabado. Ela vive e segue lutando pela democracia, pela justiça social, pela reforma agrária e pela paz”. Banco Mundial e OMC, adversários globais A concretização dessa agenda em formas de luta deve se materializar nos próximos meses com o enfrentamento às políticas do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio (OMC) relacionadas ao tema agrário. Rafael Alegría, da Via Campesina, classificou essas políticas como pernas de um modelo econômico perverso, onde a agricultura e os alimentos são transformados em mercadorias com o único objetivo de gerar lucro. Afirmando que os movimentos sociais conseguiram barrar a última reunião de cúpula da OMC em Cancún, Alegría assegurou que o mesmo deverá ocorrer no próximo encontro da entidade, marcado para Hong Kong. “Estaremos em Hong Kong para desferir mais um duro golpe na OMC”, prometeu o líder camponês hondurenho. Alegría também criticou o rumo dos debates sobre a política agrícola européia. “Não se trata de subsídios, mas sim do modelo de agricultura que deve ser implementado. Essa é o central que nos interessa”, resumiu. Ao declarar apoio à iniciativa do Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária, o representante da Via Campesina ressaltou que ele deve resultar em uma proposta concreta: o fortalecimento de uma aliança global em defesa da reforma agrária que articule uma campanha mundial em torno dessa agenda. Lições do passado e tarefas do presente Ministro da Agricultura de Portugal entre 1975 e 1976, durante a Revolução dos Cravos, Fernando Oliveira Batista deu uma importante contribuição para o êxito dessas iniciativas. Ao comentar as falas da conferência de abertura, ele lembrou algumas lições do passado que não deveriam ser esquecidas por todos aqueles que lutam pela reforma agrária. A primeira delas é que o debate econômico não basta. “Se não houver uma alteração das estruturas de poder local e nacional não há chance de uma verdadeira reforma agrária”, resumiu. O segundo ensinamento do passado é que também não há reforma agrária sem políticas agrícolas adequadas. E, por fim, lembrou o tema do esquecimento da mulher. “Nas grandes lutas campesinas, as mulheres sempre estão na linha de frente. As reformas agrárias do século XX mostraram que elas sempre acabam ficando marginalizadas. Desse modo, tampouco é possível uma verdadeira reforma agrária”, defendeu Fernando Batista. A reforma agrária, concluiu o professor de Economia Agrária e Sociologia Rural da Universidade Técnica de Lisboa, é uma condição para a luta contra a pobreza e para a construção de um novo padrão de regulação da ordem econômica mundial. Para isso, porém, advertiu, é cada vez mais urgente que as organizações que lutam pela reforma agrária saiam de si mesmas e passem a falar com a sociedade de um modo mais amplo. “Sensibilizar a opinião pública é uma condição para o sucesso de uma campanha mundial em defesa da reforma agrária. Sem a construção de alianças com a opinião pública local, essa luta será infrutífera”, destacou. Pelo que se viu no primeiro dia do Fórum em Valência, essas lições e tarefas têm um terreno fértil para frutificar. * Agência Carta Maior