18/10/2004

“Esta terra é nossa”, proclamam índios brasileiros


por Larry Rohter


Em Uirumutã, Roraima


 


Reservas indígenas servem aos propósitos de colonos brancos


Segundo os mapas oficiais, essa região remota da Amazônia é uma reserva indígena, destinada a ser o lar de meia dúzia de tribos. Teoricamente, isso a torna proibida para visitantes não convidados.


 


Mas colonos brancos ignoraram os cartazes que afirmam que o grupo de aldeias é “terra protegida” e construíram uma pista de pouso, uma escola técnica, uma prefeitura e lojas, tudo protegido por uma nova base militar.


 


Mais ao sul, extensas plantações de arroz desviam a água de rios onde os índios pescam e se banham, e florescem as minas clandestinas de ouro e diamantes. Em toda a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, com cerca de 2.600 quilômetros quadrados, o assentamento branco se acelera e torna-se mais ousado.


 


Agora os recém-chegados a essa terra que faz limite com a Venezuela e a Guiana e inclui o monte Roraima – o pico de mais de 2.700 metros que inspirou o romance “O Mundo Perdido” de sir Arthur Conan Doyle -, estão usando o sistema judiciário para tentar expulsar os índios de partes da reserva. Aproveitando-se da morosidade burocrática e de brechas na lei, essas pessoas, lideradas por poderosos plantadores de arroz e pecuaristas, convenceram alguns juízes a ordenar que os índios saiam da terra que, segundo os povos tribais, eles ocupam há muitas gerações.


 


“Estávamos aqui antes de o Estado brasileiro se formar”, protestou Secundino Raposa, de 61 anos, morador de uma aldeia indígena macuxi chamada Javari. “Nossos avós criaram nossos pais aqui. Quando eu era criança, caçávamos aqui em dezembro e não havia nenhum branco. Os brancos chegaram ontem. Então como podem dizer que esta terra é deles?”


 


O confronto constitui o primeiro grande teste da política indígena do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, observado de perto por defensores dos índios dentro e fora do Brasil. Até agora, segundo esses defensores, Lula preferiu cortejar os adversários dos índios em vez de cumprir antigas promessas feitas aos grupos tribais e aplicar leis já aprovadas.


 


Criar uma reserva indígena no Brasil é um procedimento complexo, que pode facilmente se estender por uma década ou mais. No caso da Raposa Serra do Sol, uma demarcação formal do território a ser destinado aos índios foi feita em 1998. Quando Lula assumiu o cargo em 1º de janeiro de 2003, um decreto certificando formalmente o registro da reserva, o último passo do longo processo, estava sobre sua mesa, faltando apenas a assinatura.


 


Mas Lula, líder do Partido dos Trabalhadores e o primeiro presidente de esquerda eleito no Brasil, não tomou medidas em seu primeiro ano de governo além de confirmar seu apoio à causa indígena. Desde janeiro, percebendo a hesitação em Brasília, proprietários de terras brancos moveram vários processos em sua campanha para bloquear o registro formal da reserva.


 


Os líderes indígenas dizem que se sentem traídos. Eles lembram que Lula visitou a região mais de uma década atrás, manifestou apoio a sua causa e prometeu que se chegasse ao poder concederia seu pedido.


 


“Desde que Lula assumiu a presidência as coisas só pioraram para nós”, disse Jacir José de Souza, o chefe indígena macuxi que também é diretor do Conselho Indígena de Roraima. “Ele é muito falso, muito inconfiável. Ele é pior que o último governo, porque diz uma coisa e faz outra.”


 


O gabinete de imprensa da Presidência se recusou a discutir a polêmica, enviando o pedido de comentários feito pelo repórter ao Ministério da Justiça. Falando sob a condição de anonimato, uma porta-voz disse que o governo continua comprometido com o registro da reserva e a indenizar os fazendeiros brancos pelas propriedades que eles teriam de ceder, mas está agindo cautelosamente para evitar choques violentos.


 


Mas amigos dos índios consideram proposital a atitude letárgica do governo. Os estimados 15 mil índios que vivem em Raposa Serra do Sol, segundo eles, provavelmente se tornarão vítimas da negociação política nos bastidores, à moda antiga.


 


“Infelizmente a reserva está sendo usada como moeda de barganha para interesses locais e nacionais”, disse Saulo Ferreira, do Conselho Indígena Missionário, um grupo de defesa. “Os verdadeiros motivos do atraso são políticos, e não jurídicos. Em vez de emitir imediatamente a aprovação, como podia ter feito facilmente, o governo está negociando o apoio da bancada de Roraima no Congresso, e os índios acabaram sendo usados.”


 


Depois que Lula chegou poder, o governador de Roraima, Flamarion Portela, anunciou que estava aderindo ao PT de Lula. Como ele controlava grande parte da bancada do Estado e se opunha ao estabelecimento da reserva indígena, houve muita especulação aqui e em Brasília de que haviam feito um acordo: seu apoio em troca de adiar a homologação da reserva.


 


Portela foi destituído em agosto, por causa de um escândalo que envolve a geração de milhares de empregos fantasmas que custam milhões de dólares mensais ao Estado. Mas o governo Lula, ainda tentando alcançar a maioria em ambas as câmaras do Congresso, continua buscando o apoio dos três senadores de Roraima, que são contrários à reserva.


 


Lúcio Flávio Pinto, editor do boletim “Amazon Agenda”, citou um fator adicional na mudança de posição de Lula. Como esquerdistas, ele disse, o presidente e seu partido foram vistos com suspeita pelas forças armadas no passado, que também não gostavam da idéia de uma reserva indígena ocupar uma área de fronteira delicada.


 


“O verdadeiro problema de Lula são os militares, que por causa de grandes cortes orçamentários foram privados de aumentos salariais e novos equipamentos”, disse Pinto. “Mas as forças armadas também têm preocupações de segurança nacional que ele pode atender mais facilmente. Eles temem a balcanização da Amazônia, a criação de um Estado separado ou uma ‘área liberada’ sob controle estrangeiro.”


 


Líderes indígenas comparam essa retórica nacionalista com a realidade do que eles descrevem como um florescente mercado negro de gasolina da Venezuela, onde o combustível custa US$     0,05 o litro, menos que um décimo de seu preço no Brasil. Além disso, existem amplos indícios de que maconha, ouro e diamante são contrabandeadas pela fronteira da Guiana e enriquecem os interesses locais.


 


“Nós mesmos estamos aplicando as leis aprovadas que o governo nada faz para aplicar”, queixou-se Dejacir Melchior da Silva, líder da Água Branca, uma comunidade na fronteira. “Estamos cansados de esperar a ação da Polícia Federal ou dos soldados. Existem muitas coisas no papel, mas ninguém se incomoda em colocá-las em ação.”


 


Em menos de uma década várias aldeias indígenas foram cercadas por uma guarnição do exército e um assentamento branco clandestino que cresceu rapidamente e há pouco tempo recebeu o estatuto de município. Os residentes indígenas queixam-se de que os soldados assediam as mulheres, contrabandeiam bebida alcoólica para uma zona que deveria ser livre de álcool e invadem suas casas sem permissão.


 


“Queremos que essa base saia daqui”, disse Euzébio de Souza Oliveira, que mora em uma das aldeias indígenas. “Eles a construíram tão perto de nós que não podemos mais caçar e pescar, e os soldados derrubaram as cercas que colocamos para proteger nossos animais. Isso é muito ruim para nós.”


 


Outros poderosos interesses políticos e econômicos locais não hesitaram em usar a violência para expressar sua oposição à reserva. Desde que Lula assumiu, eles bloquearam estradas e ocuparam escritórios do governo. Mércio Pereira Gomes, presidente da Fundação Nacional do Índio, a agência do governo encarregada de assuntos indígenas, descreve a atividade como “uma espécie de rebelião local, um choque após o outro”.


 


Ele acrescentou: “Os ânimos estão exaltados e a situação política foi exacerbada”.


 


Outro grupo de executivos empresariais e políticos, incluindo alguns do partido do governo, disseram que estão dispostos a permitir a formação de uma reserva, desde que não seja contígua. Mas líderes indígenas, antropólogos e grupos de direitos humanos se opõem unanimemente a uma série de “ilhas” indígenas rodeadas por brancos hostis e ávidos para expandir seus domínios.


 


Embora o Ministério da Justiça tenha apelado de decisões que ordenaram a saída dos índios de partes da reserva, líderes tribais afirmam que a demora resultante só reforça a posição dos invasores brancos.


 


“O governo está nos dizendo para sermos pacientes, que tudo será decidido nos tribunais e no final sairemos vitoriosos”, disse Souza, o líder macuxi. “Mas, enquanto esperamos, vemos que estamos perdendo espaço. Cada vez mais fazendeiros, plantadores de arroz e garimpeiros estão ocupando nossa terra, ganhando força e ficando mais violentos.”


 


Até agora os índios permaneceram pacíficos, apesar do desaparecimento ou da morte de alguns deles, o que atribuem a pistoleiros contratados por fazendeiros. Mas os líderes indígenas prometem resistir se a polícia ou o exército agirem para aplicar ordens de tirá-los de suas terras ancestrais.


 


“Não vamos mais atacar, mas se formos atacados nos defenderemos”, disse Severino Oliveira Brasil, chefe da aldeia Javari, onde vivem várias centenas de índios. “Não temos medo. Se morrermos defendendo o que é nosso, não há problema. Nossa principal arma é a palavra de Deus, mas estamos bem equipados à maneira indígena. Temos nossos arcos e flechas.”


 


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves



 

Fonte: The New York Times
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