06/10/2004

Parecer ao Projeto de Lei Complementar Nº 151, de 2004, por Paulo Machado Guimarães

I. A proposição legislativa


 


Com o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 151, de 2004, o Deputado Alceste Almeida pretende que sejam reconhecidos como de relevante interesse público da União, para efeito do que estabelece o § 6º do art. 231 da Constituição Federal (CF): “os núcleos populacionais consolidados como lugarejos, vilas ou cidades, bem como as glebas nas quais sejam desenvolvidas atividades agrícolas, ou estradas, localizados na faixa de fronteira”. Além disso, propõe, como parágrafo único do art. 1º da proposição legislativa em questão, que sejam: “reconhecidos os efeitos jurídicos da ocupação, do domínio e da posse, em áreas urbanas e rurais, localizadas na faixa de fronteira”.


 


Justificando sua proposta, o Deputado Alceste Almeida observa que:


“Assim, o projeto de lei complementar, que ora estamos apresentando, tem como objetivo definir os casos de relevante interesse público da União. Sob o ponto de vista estratégico, os núcleos populacionais consolidados como lugarejos, vila ou cidades bem como as áreas de atividade agropecuária e as estradas são indispensáveis para a vivificação das fronteiras. De fato, essa presença humana nessas regiões fronteiriças deve ser estimulada para que os núcleos populacionais sirvam como verdadeiros pelotões civis, guarnecedores de nosso solo pátrio em favor da soberania e defesa nacionais.


 Por fim, queremos enfatizar que o presente projeto de lei complementar não tem como finalidade criar obstáculos ao processo de demarcação das terras indígenas. Visa, tão somente, reconhecer os núcleos populacionais localizados na faixa de fronteira como de relevante interesse público, para os finsa que se refere o § 6º do art. 231 da Constituição Federal”.


 


II. Parecer na CDHM


 


Esta proposição, por decisão do Presidente da Câmara dos Deputados, tramitará nas Comissões de Direitos Humanos e Minorias; Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural e Constituição e Justiça e de Cidadania.


 


No momento, a matéria encontra-se submetida a apreciação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, com parecer favorável, do Relator da proposição, o Deputado Geraldo Thadeu, o qual ainda não foi submetido à votação, que opina nos seguintes termos:


Bastante oportuna a proposição ora em apreço, pois ao regulamentar o § 6º do art. 231 da Carta Magna, resolve questão que vem gerando grande insegurança jurídica aos moradores das regiões fronteiriças passíveis de serem demarcadas como reservas indígenas.


Ademais, a não regulamentação ocasiona grande perda a todos os brasileiros, na medida em que deixa o país desguarnecido e suscetível a toda sorte de ilícitos, principalmente na região amazônica, que responde por extensas áreas em faixa de fronteira, cerca de 1 milhão de hectares. Vale ressaltar que o processo de ocupação dessas áreas passa por sua fase mais crítica, com a ocorrência de inúmeros conflitos sociais decorrentes, também, dos confrontos entre indígenas e não indígenas.


Como bem ressalta o nobre Deputado Alceste Almeida em sua justificação, a presença humana nas regiões fronteiriças deve ser estimulada já que os núcleos populacionais consolidados, as áreas de atividade agropecuária e as estradas têm importância estratégica para a vivificação das fronteiras e, nisso, para a defesa do território nacional.


O que aqui se propõe é a soma de ações em prol da prevenção de possíveis conflitos possessórios, da consolidação da ocupação na região fronteiriça e da promoção da justiça social. Além disso, a proposição não cria obstáculos ao processo de demarcação de terras indígenas, visto que resguarda apenas os núcleos populacionais localizados em faixa de fronteira, não impedindo que ocorram demarcações nesta região”.


 


III.    Necessidade do PLP 151/2004 tramitar em conjunto com o PLP 260/1990


 


Preliminarmente, deve-se destacar que o PLP 151/2004, é da mesma espécie e pretende regular matéria idêntica ou correlata ao do PLP 260/1990, originário do Senado Federal, dispondo sobre “hipótese de relevante interesse público da União, para os fins previstos no artigo 231, parágrafo 6º da Constituição.


 


O art. 142 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) é expresso ao dispor que:


Estando em curso duas ou mais proposições da mesma espécie, que regulem matéria idêntica ou correlata, é lícito promover sua tramitação conjunta, mediante requerimento de qualquer Comissão ou Deputado ao Presidente da Câmara…[1]


 


Por esta razão, o PLP 151/2004, deverá tramitar em conjunto com o PLP 260/1990.


 


IV.   As garantias constitucionais aos Povos Indígenas


 


No mérito, convém considerar que o PLP 151/2004 atenta contra o disposto no § 6º do art. 231 da CF, além de revelar grave risco de estimular a violação de direitos indígenas.


 


O texto constitucional reconhece aos índios sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crencas, tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcar essas terras e fazer com que seus bens sejam respeitados.


Consideram-se terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do § 1º do art. 231 da CF, segundo seus usos, costumes e tradições:


1.    as por eles habitadas em caráter permanente;


2.    as utilizadas para suas atividades produtivas;


3.    as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; e


4.    as necessárias a sua reprodução física e cultural.


 


Os índios têm o direito à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos existentes nas terras por eles tradicionalmente ocupadas, conforme prescreve o § 2º do art. 231 da CF, sendo ainda inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis, os direitos sobre essas terras, nos termos estabelecidos pelo § 4º do art. 231 da CF.


 


O § 6º do art. 231 da CF, reitera o que o art. 198 do texto constitucional de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional (EC) de 1969, dispunha no sentido de que: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes….não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.


 


No entanto, em razão de disputa verificada no processo constituinte, as forças políticas e parlamentares em 1987, firmaram acordo, no sentido de ressalvar à nulidade prevista no § 6º do art. 231 da CF, os atos de relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar.


 


Com efeito, para que um ato seja considerado juridicamente válido em uma terra tradicionalmente ocupada por índios, deverá estar previamente previsto numa lei complementar e ser um ato de interesse da União.


 


No caso do PLP 151/2004, importa considerar, que “núcleos populacionais consolidados como lugarejos, vilas ou cidades, bem como as glebas nas quais sejam desenvolvidas atividades agrícolas, ou estradas, localizadas na faixa de fronteira”, não podem ser considerados atos de interesse jurídico da União.


 


Os núcleos populacionais consolidados como lugarejos, vilas ou cidades, são agrupamentos humanos de interesse particular e municipal. Sendo, no mínimo embriões de uma unidade da federação.


 


As glebas nas quais sejam desenvolvidas atividades agrícolas, ou estradas, localizadas na faixa de fronteira, são atos de interesse particular e no máximo municipais e estaduais, pelos potenciais tributos devidos em razão da exploração econômica das glebas onde se desenvolvam e pela utilização das estradas.


 


A alegada “vivificação da fronteira”, justificada pelo proponente do Projeto de Lei Complementar, como sendo o propósito final da proposição em análise não pode ser considerado fundamento jurídicamente válido, por ausência de previsão constitucional.


 


A circunstância constitucional das faixas de fronteiras serem consideradas, pelo que estabelece o § 2º do art. 20 da CF, fundamentais para a defesa do território nacional, não autoriza o Poder Legislativo a considerar como ato de relevante interesse da União, destinado à concretização de uma concepção de defesa estratégica do território nacional, a posse e a ocupação de terras indígenas por particulares, sem qualquer interesse público da União, como mecanismo de uma altamente discutível “vivificação da fronteira”.


 


Admitir que a ocupação ou posse, por particulares, sobre terras tradicionalmente ocupadas por índios, consolidando-se lugarejos, vilas, ou cidades, como distritos municipais ou sedes de municípios, bem como que atividades agrícolas particulares e estradas municipais ou estaduais possam ser considerados atos de relevante interesse da União, representa grave afronta ao que o constituinte originário previu, como forma de equacionar limitações de interesse nacional sobre as terras indígenas, que impliquem na restrição permanente sobre a posse da terra e sobre o usufruto exclusivo das riquezas naturais nelas existentes.


 


Aceitar que lugarejos, vilas ou cidades, bem como glebas destinadas a atividades agrícolas e estradas municipais ou estaduais sejam consideradas atos de relevante interesse da União, representa estimular a que particulares possam invadir terras indígenas, construindo pequenas vilas, que posteriormente, com apoio político de parlamentares municipais, estaduais e federais, além de Chefes do Poder Executivo de Municípios e de Estados, venham a se transformar em distritos Municipais e mais tarde em Municípios, sob a alegação de serem importantes para a defesa da integridade do território federal, por representarem a concretização da tese da “vivificação da fronteira”.


 


Não é isso o que o constituinte originário e muito menos o que o texto constitucional admite.


 


Um ato jurídico, que vise a posse, a ocupação, ou domínio de uma terra indígena, no todo ou em parte, para ter validade sobre ela, deve ser de relevante interesse da União. Vale dizer, deve guardar relação de causalidade com os interesses jurídicos da União. Deve ser ato de interesse direto da União e sob sua titularidade, cuja relevância justifique a limitação da posse da terra pelos índios.


 


Atos jurídicos de particulares, ou mesmo de unidades da federação, como Municípios e Estados, não podem ser considerados de relevante interesse da União, sob pena de se estar admitindo, por vias transversas, a ampliação de hipóteses de interesse não contemplados pelo texto constitucional, residindo nessa circunstância, a inconstitucionalidade material da proposição.


 


V. Conclusão


 


Do exposto, conclui-se que:


1.    Preliminarmente, o PLP 151/2004 deve tramitar em conjunto com o PLP 260/1990, por força do que estabelece o art. 142 do RICD;


2.    No mérito, o PLP 151/2004 deve ser rejeitado, por ofender o disposto no § 6º do art. 231 da CF, além de estimular invasão de terras indígenas por interesses particulares.


 


Brasília, 05 de outubro de 2004.


 


Paulo Machado Guimarães


Advogado e


Assessor Jurídico do


Conselho Indigenista Missionário – CIMI






[1]Nos termos do parágrafo único do art. 142, do RICD: “A tramitação conjunta só será deferida se solicitada antes de a matéria entrar na Ordem do Dia ou, na hipótese do art. 24, II, antes do pronunciamento da única ou da primeira Comissão incumbida de examinar o mérito da proposição”. O art. 24, II, do RICD ressalva, em sua alínea “a”, os projetos de lei complementar.


 

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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